Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
Um mês após as primeiras medidas de isolamento serem introduzidas no Brasil para conter a pandemia da Covid-19, a contra-narrativa difundida pelo Presidente Bolsonaro negando a crise e a percepção dos moradores de favelas de que essa é apenas mais uma luta entre muitas, estão levando cada vez mais aqueles em maior risco a retomarem suas vidas normais. Ainda assim, dados mostram que a crise é real, e que o isolamento físico precisa ser implementado com seriedade para evitar consequências catastróficas, particularmente nas favelas.
À medida que a pandemia começa a se espalhar no Brasil, é fácil imaginar que ela não vai impactar a nós mesmos ou à nossa comunidade até que seja tarde demais, simplesmente porque nenhum de nós já viveu algo assim. De fato, a experiência mais similar na história recente foi a Pandemia da Gripe Espanhola, de 1918, e quantos de nós estávamos aqui para vivenciá-la?
Em seguida, nós compartilhamos dados atuais para responder dez perguntas sobre por que este vírus é tão perigoso, particularmente nas favelas, e por que ele já está mais disseminado do que o relatado. Nós examinamos a ideia equivocada de que precisamos escolher entre a economia e as vidas humanas, e como prevenir o cenário mais grave. De casos individuais aos riscos coletivos, da situação atual às estratégias que adotamos, esta matéria busca esclarecer por que metade do mundo está ficando em casa, e por que o Brasil e suas favelas deveriam também.
1. O que pode acontecer se você pegar o vírus?
A maioria dos infectados pelo vírus apenas desenvolvem sintomas leves ou moderados (56%), ou mesmo não desenvolvem sintoma nenhum (30%), e não sabem que estão doentes. Estas pessoas precisam ficar em casa e se auto isolar, para evitar contaminar outros que podem desenvolver sintomas mais graves. O fato de muitas pessoas apresentarem sintomas tão leves é uma das razões pelas quais o vírus é tão perigoso.
Porque para os casos mais graves (14%), com sintomas fortes como febre alta, dor contínua no peito e dificuldade de respirar, é necessária a hospitalização, geralmente por uma semana ou até mais. Nos piores casos de problemas respiratórios, ventiladores mecânicos são necessários, com ajustes a todo momento e monitoramento 24h por dia por uma equipe qualificada e preparada. Para cerca de 7% da população mundial testada, a doença progrediu para uma pneumonia ou falência múltipla de órgãos, levando à morte.
2. Está contagiado? Para quantas pessoas você pode transmitir?
Pessoas infectadas pelo vírus são bastante contagiosas durante as duas primeiras semanas, e aqueles que são assintomáticos ou que estão no período de 2-14 dias de incubação geralmente não sabem que o contraíram. Muitos seguem com suas vidas enquanto transmitem o vírus para diversas outras pessoas, para quem o vírus será letal em cerca de 1 em 14 casos confirmados. Portanto, em comunidades onde várias gerações dividem uma casa, jovens que podem achar que o vírus não é perigoso para eles, e que não apresentam sintomas, podem acabar contaminando seus avós ou outros parentes mais vulneráveis sem saber, que passam a correr risco de vida por causa da doença em si ou por um tratamento médico inadequado.
Estima-se que cada pessoa que contrai o vírus transmite-o para 2 ou 3 pessoas em média, mas esse número será maior para aqueles que vivem em locais com dificuldade de isolamento. Esta é a taxa de transmissão. Ela depende das medidas de higiene e isolamento físico implementadas e o quanto elas são respeitadas pela população. A taxa de transmissão precisa ser abaixo de 1 para frear a propagação do vírus. Atualmente, há poucos lugares que conseguiram reduzir a taxa de transmissão, e é por isso que grande parte do mundo está em quarentena.
3. O vírus não vai parar sozinho?
As contaminações vêm aumentando exponencialmente, resultando na pandemia diante de nós. O número de casos confirmados no Brasil dobrou nos últimos 10 dias, sem sinal de desacelerar. E isso é baseado nos dados oficiais, que são subnotificados. O vírus não vai parar sozinho.
Comparado ao resto do mundo, o Brasil não está melhor. Pode inclusive estar pior, ou no processo de piorar. O número de casos confirmados por habitantes está crescendo quase tão rápido quanto na China durante o começo da pandemia. No entanto, após vários meses e muitas medidas implementadas, as autoridades chinesas conseguiram pará-la. O Brasil não conseguiu e não vai conseguir fazer isso sem uma mudança drástica na política.
Nas favelas do Rio, os casos foram identificados mais tarde do que no resto da cidade, pois os primeiros casos foram encontrados nos cidadãos mais ricos que tinham viajado para o exterior. Porém, desde que a Covid-19 penetrou nesses bairros desassistidos, os casos aumentaram num ritmo maior por conta das condições de muitos destes territórios: alta densidade populacional, falta de infraestrutura de saneamento para aplicar as medidas de higiene, impossibilidade de renunciar ao trabalho, e a forte presença de fatores de comorbidade entre os moradores, entre outras particularidades.
Na Rocinha (a favela que teve o maior número de testes e precisão de resultados), os casos já estão explodindo, com um aumento de 483% em menos de uma semana. Um novo surto do vírus também ocorreu na Zona Norte da cidade.
4. Por que já existem muito mais casos do que nós imaginamos?
Existe uma diferença significante entre o número de novos casos diagnosticados diariamente e a verdadeira quantidade de novos casos por dia. Já foi demonstrado que pessoas são diagnosticadas em média 12 dias após serem infectadas pelo vírus. Isso significa que, em qualquer dia, sempre há muito mais pessoas que estão com o vírus do que aquelas que mostram sintomas, e que portanto são testadas. O verdadeiro número diário de casos de coronavírus só pode ser determinado se olharmos para o passado e assegurarmos uma coleta de dados precisa. No gráfico abaixo, as barras cinzentas mostram o que as autoridades pensam que sabem—o número oficial de casos diagnosticados por dia—enquanto as barras vermelhas mostram o que realmente está acontecendo.
Esse também é o motivo de levar tempo para que efeitos das medidas e esforços implementados fiquem visíveis, e por isso para retirar essas medidas também leva tempo.
Os resultados dos testes também levam de vários dias a semanas para serem divulgados, em diferentes partes do país, tornando a distância entre casos confirmados e a realidade ainda maior.
Além disso, no Brasil, outra dificuldade em determinar o número de casos e mortes é a inconsistência entre os dados divulgados pelos diferentes níveis de governo. Dados do Ministério da Saúde, Governo do Estado, prefeituras municipais e cartórios locais geralmente são contraditórios.
O número de casos também é fortemente subnotificado porque muitos não são diagnosticados ou testados. O Brasil é um dos países que realizam menos testes, e portanto tem uma contagem bastante baixa dos casos confirmados. No início de abril, 127.000 casos suspeitos estavam aguardando para serem testados, e ainda mortes suspeitas estão esperando para serem investigadas.
Em suma, é estimado que apenas 1% a 8% dos casos de coronavírus no Brasil estão sendo oficialmente reportados. Em 11 de Abril, a quantidade de casos era provavelmente 15 vezes maior que os números oficiais, o que significa que haviam cerca de 300.000 casos. Cerca de meio milhão de pessoas podem estar contaminadas hoje no país.
Com uma avaliação tão imprecisa da escala e ritmo da crise, o Brasil não pode implementar as medidas corretas para salvar a população e preparar a economia para os próximos passos após a quarentena.
5. Por que a subnotificação de casos é ainda pior nas favelas?
De acordo com o painel Covid-19 nas favelas do Rio, criado pelo canal Voz das Comunidades e baseado nos dados divulgados pelo município, há agora 147 casos confirmados em 12 favelas da cidade e 20 mortes (24 de Abril). Mas existem mais favelas contando casos confirmados de acordo com os dados municipais (ex: Vigário Geral, Complexo Caju, Complexo do Lins, Parada de Lucas e Complexo da Penha). E ainda mais com casos e mortes suspeitas (ex. Rio das Pedras, Complexo São Carlos, Complexo da Pedreira, Vilar Carioca), de acordo com a imprensa. Quando se pergunta aos líderes comunitários, o número aumenta ainda mais.
A Rocinha parece ser a mais impactada até agora, com 54 casos confirmados. Entretanto, o número alto de casos confirmados pode estar vinculado a uma campanha de testagem que ocorreu lá e não em outras favelas.
Dentro de cada uma delas, o número de casos será altamente subnotificado, considerando a falta de testes. No Complexo do Alemão, onde quatro casos foram confirmados, a clínica da família Zilda Arns identificou 941 casos suspeitos, 5 mortes suspeitas e 37 pessoas hospitalizadas por sintomas típicos da Covid-19 (23 de Abril).
Além disso, a porcentagem de mortes em relação ao número de casos confirmados nas favelas do Rio é quase o dobro do que o da cidade como um todo, e até 2,5 vezes maior no Complexo do Alemão, e 4,5 vezes maior no Complexo da Maré. Isso significa que o número de casos é particularmente subestimado nas favelas, que as instalações de saúde estão negando aos moradores de favelas a mesma qualidade de tratamento do que ao resto da cidade, e/ou que moradores de favelas são mais vulneráveis e portanto mais propensos a se tornarem vítimas do vírus.
6. Por que precisamos desacelerar a pandemia?
Para evitar um massacre dos pobres urbanos do Rio, e sobrecarregar ainda mais um sistema de saúde cronicamente sobrecarregado, é fundamental evitar demasiados casos simultâneos. O Brasil hoje, com 210 milhões de habitantes, tem um total de 50.000 leitos de UTI. Destes, metade são públicos e metade privados. Mas 170 milhões de brasileiros dependem do sistema público, o que significa que metade dos leitos são deixados para apenas 19% da população. Já que aqueles que são mais propensos a se tornarem vítimas da Covid-19 são também aqueles que dependem da infraestrutura do sistema público de saúde, e já que casos graves precisam de respiradores e monitoramento 24h por dias, à medida que as capacidades dos hospitais são excedidas, muitos pacientes da classe trabalhadora não vão receber tratamento e morrerão. É por isso que a prioridade é achatar a curva, em outras palavras: implementar medidas para prevenir um rápido aumento no número de casos.
Sem intervenção, o Rio pode passar de 41 a 93 dias sem vagas nos leitos hospitalares de terapia intensiva. A capacidade do sistema municipal já foi atingida e hospitais podem em breve ter que escolher a quem salvar.
7. Por que o isolamento físico é necessário?
Para conter a proliferação do vírus, a medida protetiva mais eficiente é evitar o contato físico entre as pessoas. Quando as pessoas não interagem umas com as outras, o vírus não se espalha.
De acordo com um estudo conduzido pelo Imperial College de Londres, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, que se tornou uma referência mundial, uma estrita estratégia de supressão para toda a população é necessária para barrar a circulação do vírus e salvar vidas.
Cientistas mostraram que, na ausência de estratégias de isolamento, o Brasil pode sofrer mais de 1,15 milhões de mortes por conta da Covid-19. Este número pode ser reduzido para 44.200 através de medidas estritas de distanciamento físico.
Um confinamento severo tornando obrigatório ficar em casa, exceto para necessidades essenciais, é a estratégia mais recomendada e já funcionou em diversos países, se implementada de forma estrita, em apenas algumas semanas.
8. Existem outras soluções além do confinamento?
Nas favelas, existem diversas dificuldades que os moradores vivenciam na tentativa de fazer o isolamento físico, como a alta densidade de habitações e arquitetura comunitária, e uma impossibilidade de parar de trabalhar sem sofrer com a fome e com outras consequências brutais.
Quando ficar em casa não é realmente uma opção, parece que ao menos usar uma máscara é a forma mais eficiente de reduzir a propagação do vírus de acordo com um simulador criado pelo grupo comunitário Favela Contra Corona (veja abaixo). Ele mostra o efeito de diferentes medidas que poderiam ser implementadas nas favelas, como transferir temporariamente moradores para hotéis, subsídios ou renda básica para a compra de produtos de higiene, estruturas sanitárias de emergência, expansão da disponibilidade de leitos de UTI, e uso de máscaras faciais protetivas. A ferramenta mostra a importância de combinar essas diferentes medidas para reforçar sua eficiência.
O Rio de Janeiro deve então implementar um amplo isolamento físico, higiene, uso de máscaras e todos os outros meios necessários para prevenir o pior, especialmente nas favelas.
Medidas alternativas ao confinamento generalizado se provaram eficientes em alguns países, em particular: testagem em massa, rastreamento dos contatos feitos e isolamento focalizado. Mas estas requerem um nível de capacidade e testagem muito distantes da realidade brasileira.
9. O colapso econômico trazido pela quarentena não vai causar mais danos do que o vírus?
Medidas de isolamento insuficientes ou breves, em parte por não proporcionar aos trabalhadores impactados com o suporte necessário e informações precisas para ficar em casa, vão apenas prolongar a crise sanitária e econômica. De fato, não há como salvar a economia até que a pandemia termine, por diversas razões, incluindo o fato de que a incerteza é prolongada, e poucas coisas são mais prejudiciais à economia que a incerteza.
É isso que 32 economistas proeminentes argumentaram em uma carta comum: “Salvar vidas e salvar a economia não estão em conflito agora; nós vamos apressar o retorno para uma economia robusta tomando medidas para conter a propagação do vírus e salvar vidas”.
A maneira mais eficaz de minimizar a gravidade dos prejuízos econômicos—e as vidas perdidas—é aplicar um confinamento severo em um primeiro momento, uma estratégia de supressão levando as infecções para próximo de zero, fechar a economia por algumas semanas ou meses, e voltar ao normal o mais cedo possível.
Uma pesquisa dos principais economistas da Iniciativa do Fórum de Mercados Globais descobriu que a vasta maioria (80%) acredita que abandonar as medidas drásticas de confinamento agora iria levar a um “maior dano econômico total”. Entretanto, nenhum discordou.
10. O que posso fazer para me prevenir?
Individualmente, a prioridade é seguir as recomendações de isolamento social para frear a propagação do vírus. Muitos materiais foram desenvolvidos por coletivos de favelas para explicar o que os moradores precisam fazer para evitar a disseminação: sair apenas para necessidades essenciais (ex. compras no mercado) e sempre usando máscara, ficar isolado de outros em uma parte separada da casa se apresenta sintomas, ficar ao menos a um metro de distância dos outros quando sair, lavar as mãos com frequência, evitar tocar o rosto, tomar cuidado com superfícies tocadas porque o vírus pode sobreviver nelas até três dias (um dia no papelão, três no metal e plástico, apesar de que em temperaturas altas este período é menor).
Levar as medidas de combate à proliferação do vírus a sério é vital para salvar vidas, ainda mais nas favelas. Particularmente, este é o caso se o confinamento no Brasil não for encorajado pelo governo federal. Para a nossa sobrevivência, todos precisam se auto regular e reduzir as interações físicas o máximo possível. Entender o porquê é essencial para ampliar a consciência coletiva e salvar vidas.