Essa matéria oriunda de Guaianases, é a oitava de uma série sobre o impacto da pandemia do coronavírus no dia a dia das favelas, em parceria com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego.
Eu moro em Guaianases, um bairro que fica 30km do Centro, no extremo Leste de São Paulo. Apesar de estar na mesma cidade, muitas vezes citada como o centro econômico da América Latina, esse dinheiro não chega aqui. De acordo com o censo de 2010, 268.000 pessoas vivem onde moro. Parte significativa dessa população é composta por migrantes nordestinos. Nos últimos anos, bolivianos, nigerianos, angolanos e haitianos também passaram a compor o quadro de moradores da região.
No meu bairro não tem teatro, cinema ou variedades de atividades culturais. O Estado parece que desconhece o lugar onde fica a minha casa. Aliás, isso acontece nas outras periferias como Capão Redondo, Grajaú, Jova Rural, que também ficam nas bordas da cidade, quebradas de onde eu escrevo na Agência Mural.
Eu fiquei sabendo da primeira morte do coronavírus na porta de casa, quando uma amiga da minha mãe comentou “sobre aquela doença que era uma gripe”. Sem mencionar o nome, ela disse que “a doença” tinha chegado ao país, mas segundo ela, não chegaria em Guaianases. “A gente mora tão longe que a doença não alcança”. No início de março, ainda em meio a muita confusão de informações e desinformações, também ouvi por algumas vezes que, se a Covid-19 chegasse no nosso bairro, o mundo inteiro já teria sido infectado. Isso porque Guaianases, na cabeça dos meus vizinhos, é longe de tudo.
Os dias se passaram e algumas medidas como o isolamento social foram anunciadas. Eu, que sempre faço várias coisas na rua, no Centro da cidade, fui ficando em casa. Eventos e reuniões na Agência Mural foram cancelados. Por fim, quando veio a indicação para que eu trabalhasse de casa, percebi que a coisa era mais grave do que supunha.
Guaianases tem casas sem saneamento básico. Tem gente que mora na frente de córregos e há ruas sem asfalto. Aquela doença que começou longe e, que parecia que não ia nos alcançar, em meados de março já afetava a rotina, mas não parou a cidade.
Os noticiários informarem sobre o aumento de mortes e a expansão de casos na periferia de São Paulo, mas aqui tem muitas mulheres que trabalham como empregadas domésticas, e elas não podiam optar por ficar em casa para cuidar dos próprios filhos. Independente das orientações médicas, tenho vizinhos que passam fome, e álcool em gel ou água e sabão são artigos de luxo.
À medida que fui vendo a cidade parar, os governantes foram alertando para o perigo, e aqui nada mudando, fiquei preocupado. Quase acreditei na teoria de que morava longe o suficiente para a doença não chegar.
Migrantes e Imigrantes, um Mesmo Lar e Desigualdades
Madalena e Jonas são haitianos. Eles chegaram por aqui em 2014. Sem visto, com medo de serem obrigados a voltarem para a terra natal, tiveram Josi Marrie, a menina que lhes garantiu o direito de ficar no Brasil. Como eles, centenas de outros, que também vivem na região.
Este também é o caso de Ronal, haitiano, ele veio para Guaianases para tentar seguir a vida após o terremoto, que atingiu seu país. Com as notícias nos jornais, na tevê e nos grupos de WhatsApp, ele passou a ter medo do impacto da pandemia sobre o bairro, sua família e amigos. Em uma conversa que tivemos, ele disse que aquilo o preocupava muito, pois eles eram muito pobres. Sem dinheiro e com filhos para cuidar, Ronal comentou que não conseguiria ficar sem sair todo dia do bairro, contrariando o isolamento social pedido pelas autoridades públicas.
Por aqui, e ainda perdidos, os haitianos do bairro, as diaristas, e todos os trabalhadores informais que conheço, agora estão buscando o auxílio emergencial do governo de R$600 por três meses.
No início de abril, apesar da movimentação normal no bairro, percebi a realidade quando um amigo procurou um posto de saúde, porque estava com suspeita da doença. “O coronavírus chegou na favela”, disse ele, com um misto de nervosismo e brincadeira.
Até a segunda semana de abril, perto da estação de trem ficavam vários ambulantes vendendo fones de ouvidos, comida e outras bugigangas. No dia 15 de abril, os ambulantes foram retirados de lá pela fiscalização da prefeitura. O auxílio emergencial começou a ser pago no dia 14 de abril e de lá para cá— apesar da retirada dos ambulantes no dia 15—há aglomerações, pois centenas de autônomos, dentre outros, se dirigem para as agências da Caixa em busca do auxílio emergencial, prometido pelo governo. Os problemas no aplicativo do banco e a falta de dinheiro são os motivos das filas imensas.
Por fim, entendi que a preocupação com a doença demorou para chegar aqui. Essa demora em reconhecer a gravidade da Covid-19, mais do que no restante da cidade, diz muito sobre a desigualdade social de São Paulo e do país. Nas pesquisas anuais que comparam as estruturas dos bairros, minha região sempre fica com os piores índices, em relação aos bairros centrais. De acordo com a pesquisa Viver em São Paulo: Trabalho e Renda, publicada pela Rede Nossa São Paulo e Ibope, em 2019, cerca de 20% dos moradores da Zona Leste levam mais de duas horas no trajeto entre casa e trabalho. Já no campo da cultura, em 2018, 65% dos moradores da Zona Leste nunca frequentaram salas de teatro na capital paulista. É o pior índice da cidade.
Moro na cidade considerada o centro financeiro do país. A Covid-19 chegou por aqui em Guaianases. Na última atualização da Prefeitura da Cidade de São Paulo, do dia 27 de abril, entre casos suspeitos e confirmados, foram contabilizados 28 casos no bairro, isso sem levar em conta os casos não-notificados. A Zona Leste lidera os números de mortos. Foram 1.098 óbitos confirmados ou suspeitos por coronavírus até a o dia 24 de abril. 1.098 vidas!
A pandemia está nas nossas ruas. Nem o Ministro da Saúde Nelson Teich, o Governador João Dória (PSDB) ou o Prefeito Bruno Covas (PSDB) ofereceram um plano de ação para Guaianases. Sem políticas públicas, voltadas aos mais pobres, como nós—moradores de casas minúsculas, sem saneamento básico e com poucas condições de comprar álcool em gel, ou mesmo tomar outras medidas de proteção—vamos nos proteger da morte, provocada pelo vírus, que encontra em nós um alvo fácil.
Lucas Veloso é formado em Jornalismo e é um dos co-fundadores da Agência Mural, uma iniciativa que tem como missão minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias da Grande São Paulo. Com passagem no portal Alma Preta, atualmente, Lucas é repórter na Agência Mural e escreve no site Papo de Homem.