Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas e parte de nossa parceria com o The Rio Times. Para a matéria publicada no The Rio Times, clique aqui.
O estado do Rio de Janeiro superou, no dia 15 de junho, o patamar de 80.000 casos confirmados de Covid-19, segundo boletim diário da Secretaria Estadual de Saúde, com quase 5.090 destas mortes ocorreram dentro da capital fluminense.
Dado a subnotificação generalizada da doença, especialmente nas favelas da cidade, os números reais são muito maiores. O levantamento feito pelo Voz das Comunidades, mostra que somente nas 15 favelas monitoradas pelo jornal, ao todo, já são 1.832 moradores de favelas infectados e o número de mortes devido ao vírus chegou a 397. O Rio de Janeiro possui 1018 favelas, de acordo com a Instituto Pereira Passos. Poucas estão sendo monitoradas.
Mesmo diante deste cenário de luto e contágio pelo vírus, por dois domingos consecutivos, a população negra, pobre, favelada e periférica do Rio, ocupou as ruas para protestar em atos antirracistas. Em 31 de maio, os manifestantes foram para frente do Palácio da Guanabara, residência oficial do governador, gritar: “Vidas Negras Importam!”, “Vidas Faveladas Importam!”.
Em 7 de junho, outro ato antirracista, organizado pelo Movimento Favela na Luta—com a participação de coletivos de periferias e da comunidade negra—levou para a principal via da cidade, a Avenida Presidente Vargas, quase 1.000 pessoas novamente as ruas. Mas, por que se arriscar ao contágio por coronavírus em protestos físicos?
Vozes de favelas ouvidas pelo RioOnWatch foram taxativas: os manifestantes foram empurrados às ruas pela revolta, mas também por estratégia, em decorrência da vulnerabilidade social intensificada pela crise de saúde pública e econômica ocasionada pelo novo coronavírus, além da violência policial nas favelas que não cessaram, mesmo com a pandemia da Covid-19.
Renata Trajano, do Coletivo Papo Reto e do Gabinete de Crise do Complexo do Alemão, afirma que não existe “essa coisa da favela não ir para a rua”, quando “a única certeza é a morte. Fomos para a rua porque se você não derrubar o sistema, ele acaba derrubando você”, opina. Ao contrário de grande parte das metrópoles no mundo, a pandemia no Rio de Janeiro não produziu o efeito de aumentar a sensação de segurança nas favelas cariocas.
Em abril, as operações policiais cresceram 27,9%, deixando um rastro de 177 mortos, segundo relatório da Rede de Observatórios da Segurança. O número de mortos por intervenção de agentes do Estado cresceu 43% em relação ao mesmo período em 2019, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP).
O Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, tem uma das forças policiais mais letais do mundo. É nesta condição entre morrer de fome, de vírus ou de fuzil, que as favelas se viram em um impasse em meio à pandemia da Covid-19. Nesta equação entre medo, dor e luto, para diversas lideranças, não ocupar as ruas devido ao risco de contágio, não se justifica.
“O importante hoje é se manter vivo para que minha favela possa ter arroz e feijão, porque o Estado não está aqui, como sempre. A única coisa que chega à favela [vinda] do Estado é o poder bélico da polícia do Rio de Janeiro. Se a gente não estiver nas ruas falando para parar de nos matar, a gente vai estar todo dia de carrinho na mão carregando corpos! Penso na Pandemia? Penso, mas eu tenho que pensar em como vou sobreviver primeiro, ficar viva… para depois poder dizer que sobrevivi à pandemia”, explica Renata Trajano.
Mãe e chefe de família, mulher negra , ativista de direitos humanos e moradora do Complexo do Alemão, Zona Norte, Renata avalia que “ser linha de frente do combate da Covid-19” apesar de gratificante, também é “extremamente dolorido”.
Renata sai de casa todos os dias para cadastrar famílias para receberem cestas básicas doadas por diversas empresas e pela sociedade civil em geral, para o Gabinete de Crise do Complexo do Alemão. “A gente tem um Estado que diz para a gente ficar em casa, mas não dá assistência nenhuma. E a maior parte da minha favela é feita de mulheres pretas, chefes de família. O Estado não tá fazendo nada… e ainda pede para a gente continuar em casa morrendo à bala. É um descaso coletivo”, denuncia.
Dois dias após participar do ato antirracista no Rio, em 9 de maio, Renata foi parada em uma blitz policial quando, justamente, faria uma distribuição de cestas básicas no Morro dos Mineiros, no Complexo do Alemão.
Estava visivelmente irritada com toda aquela situação, fuzis e pistolas apontados como se fôssemos criminosos. Nosso único crime sair de casa pra fazer o bem pra nossa gente. Depois de quase 20 minutos de revistas fomos liberados
— Nega Rê 🏴 (@RenataTrajano1) June 9, 2020
Sobreviver ao racismo sistêmico do Estado, conta Renata, não permite isolamento físico ou distanciamento social no cotidiano das favelas. “Não dá pra chegar aqui e executar 13 pessoas, e vem dizer que foi troca de tiro, porque todos os mortos estavam com tiro nas costas, na cabeça ou foram mortos a facadas. A gente está nas ruas porque é um acúmulo de revolta”, afirma. No dia 15 de maio, as forças de segurança do Estado mataram oficialmente 13 pessoas dentro do Complexo do Alemão, em uma ação que durou duas horas.
A Pauta de Luta da Favela é Racial
Gizele Martins, jornalista e membro da Frente de Mobilização da Maré, explica que o movimento de luta de favelas é um ato antirracista, e que a pandemia da Covid-19 demonstrou o quanto o Estado não se importa com a população das favelas. Ao invés de cuidar e assistir, destina para as favelas e periferias uma política de segurança de morte.
“É a nossa população que tem morrido e tem sido mais infectada com o novo coronavírus justamente porque essa população não tem escolha: tem que ir trabalhar, tem que se expor, porque senão, passa fome. Seus empregadores preferem que eles trabalhem no lugar de estarem resguardando as suas vidas em casa”, ressalta.
“Mesmo assim, o governo estadual com essa política dita de ‘segurança’ não para de matar a nossa população também a base de tiro, de helicóptero, de blindados e outros materiais bélicos. Essa é uma política de genocídio: onde tem um corpo negro, o tiro de fuzil, deste Estado racista e fascista, vem para matar”, protesta Gizele.
Ela explica que a campanha das frentes de combate à Covid-19 nas favelas não mudou. O pedido feito por lideranças, coletivos, comunicadores comunitários e moradores, segue sendo para as pessoas obedecerem as recomendações da Organização Social da Saúde (OMS): ficar em casa, quem pode. Inclusive, nos atos antirracistas, uma comissão da organização além de orientar todos a usarem máscaras e álcool gel, também vigiavam para que os manifestantes ficassem entre um a dois metros de distância uns dos outros.
A questão é que: “A polícia quer nos matar! A nossa população está sem atendimento médico, sem teste, sem comida, sem gás, sem alimento, sem casa porque não tem dinheiro para pagar aluguel. Então, a gente pergunta: Como ficar em casa se agora nem casa tem? Como ter máscaras se tem gente que não tem dinheiro para comprar comida? A gente está vivendo um verdadeiro caos nas favelas e nas periferias. Não ir para as ruas não foi uma opção. A gente precisou ir”, diz Gizele.
Black Lives Matter Porque Vidas Faveladas Importam
O depoimento da jornalista é uma narrativa de gestão da morte pelo Estado através do racismo que evidencia a necropolítica. Segundo análise do professor Silvio Almeida, autor da obra O que é racismo estrutural?, a pandemia tem tornado visível e revelado a todas como o racismo organiza a vida em sociedade. As favelas foram às ruas, apesar do medo do contágio, por não suportar mais o cotidiano de violência letal do Estado aprofundada pelo racismo diário em meio à pandemia.
“Tem se intensificado ainda mais as mortes das pessoas. Uma vida não vale mais que a outra. Ninguém tem que morrer, mas morre. Essas mortes não são nos prédios ricos, são, principalmente, nas favelas, onde têm gente preta”, desabafa Naldinho Lourenço, fotógrafo e morador da Maré, Zona Norte. Para ele é insustentável que o Estado aumente ainda mais a falta de estrutura e desigualdades em espaços onde já renega a existência.
“Por falta de ações de governos mesmo diante da pandemia, a favela está produzindo estratégias de sobrevivência: distribuindo cestas, máscaras, água para o povo, coisas que são negadas à favela, porque o único direito que é dado para a gente [pelo Estado] é a ponta do fuzil o tempo todo. A gente está na rua porque é necessário, porque durante a pandemia o que dificulta mais a luta da favela são essas operações policiais que não cessam”, reclama Naldinho.
A pandemia produziu um xadrez de sobrevivências que deixou negros, pobres, favelados e periféricos sem escolhas. A marcha antirracista no Rio de Janeiro, foi iniciada após uma sucessão de casos de mortes de jovens negros por operações policiais nas favelas, como: a do adolescente João Pedro Pinto Matos, de 14 anos, no Complexo do Salgueiro, São Gonçalo; a chacina no Complexo do Alemão, com assassinato de 13 jovens; o de Rodrigo Cerqueira durante a distribuição de cestas básicas no Morro da Providência; e a morte de outro jovem, João Vitor Gomes da Rocha, que ocorreu em uma troca de tiros em meio a outra distribuição de cestas básicas na Cidade de Deus.
“A gente decidiu construir esse ato com toda a questão de segurança, atendendo as recomendações da OMS e [de modo] pacífico, porque o que a gente quer é externar a nossa indignação pela quantidade de pessoas assassinadas nas favelas por Covid-19 ou a tiros. Nestas últimas semanas, tivemos diversas pessoas morrendo, inclusive pessoas até entregando comida para nossa gente, entregando cesta básica. A gente precisava gritar! Tem que dar um basta! E o que a gente podia fazer? A gente precisava estar na rua, porque a rua é ainda uma ferramenta que cria mais potência”, opina Naldinho.
Mônica Cunha, coordenadora e fundadora do Movimento Moleque, que perdeu seu filho para a violência policial, diz que no Brasil assim como nos Estados Unidos “os negros também não conseguem respirar”, em alusão ao assassinato de George Floyd. “Eu não consigo respirar” foram as últimas palavras de Floyd clamando pela própria vida para policiais da cidade de Minneapolis, nos EUA. A morte dele por sufocamento provocou a insurgência de um levante negro pelo movimento Black Lives Matter e atos antirracistas, que se espalharam pelo mundo.
Mulher negra e ex-empregada doméstica, Mônica tem comparecido aos atos antirracistas no Rio de Janeiro, mesmo sendo do grupo de risco pela idade e por ser hipertensa. Ela participa desde o primeiro ato antirracista #VidasNegrasImportam, realizado em 31 de maio.
“A situação das favelas e dos negros por causa da pandemia por si só está um pandemônio no Rio. O caso de George Floyd foi só um estopim porque a sensação aqui é a mesma: ninguém na favela consegue respirar porque o Estado não deixa negros crescerem e viverem”, reclama. Participante também da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência—seu filho foi assassinado pela polícia em 2006— ela diz que as mulheres negras não aguentam mais chorar.
“Estão matando nossos homens de qualquer idade. Os com cinco anos como o Miguel que despencou de nove andares porque a mãe preta não pôde se isolar em casa e teve que ir trabalhar; os com 23 anos como os jovens do Complexo do Alemão; os de 18, 19 anos como os mortos em distribuição de cestas; nossos velhos estão morrendo no hospital por falta de respiradores; nosso adolescentes em casa como João Pedro. A gente foi para a rua gritar porque a gente quer o povo negro vivo! A gente fala da juventude, porque sente na pele que são nossos jovens que o fuzil mais bota no chão, mas de forma geral, os homens pretos estão morrendo e as mulheres pretas adoecendo”, protesta.
Considerada uma griot pela juventude de favelas—manifestação viva de uma memória transmitida de geração em geração—ela destaca que: “O quilombo que queremos reconstruir precisa não apenas das mulheres negras, mas dos homens negros vivos, e de todas as idades”.
Nas Redes e Nas Ruas
Atos e protestos virtuais pelas redes sociais, para estas vozes ouvidas pelo RioOnWatch, não bastam. Apesar da visibilidade e mobilização promovida pelas redes como Twitter, o espaço das ruas não pode ser abandonado. Redes e ruas precisam estar juntas para ampliar as potências.
“A gente tentou. Fizemos um ato virtual onde conseguimos mobilizar o país todo, mas não foi o bastante. A gente estava de luva, de máscara, álcool gel tentando se proteger dentro de nossas casas, mas fomos obrigados a lutar pelas nossas vidas fora de casa para tentar nos salvar dentro das casas, porque os tiros e a Covid-19 não paravam de chegar! É por isso que estamos nas ruas gritando ‘Vidas Negras Importam!’”, ressalta Mônica.
Naldinho concorda. Para ele, a rua é o palco da reivindicação e visibilidade da importância da luta. “É por isso que a gente foi, no primeiro ato, onde mora ou supostamente mora o governador. A gente precisava ir lá para dar um recado. Dizer que a gente estava lá, mas a gente não quer morrer. A gente vive na favela, mas a gente não quer morrer, mano. Se o governador não ouve na rede social, a gente vai na porta da casa dele gritar. É isso!”