Ativismo, Arte e Solidariedade Fortalecem o Orgulho LGBTI+ em Favelas do Rio em Tempos de Pandemia

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Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos nas favelas.

Histórias pautadas por conquistas, sobrevivência, lutas e resistência são vivenciadas por milhares de membros da comunidade LGBTI+ que moram nas favelas do Rio e nas periferias do Brasil afora. Em tempos de pandemia, ouvimos diversos ativistas e artistas LGBTI+ compartilhando questões importantes na caminhada para um sociedade mais tolerante e inclusiva.

Violência e Sobrevivência

Uma importante organização da área no Rio de Janeiro, o grupo Conexão G de Cidadania LGTB de Favelas completou 14 anos de trabalho no Complexo da Maré em março 2020. Liderado por Gilmara Cunha, 36 anos, uma mulher trans negra e favelada como ela se define, o grupo nasceu para apoiar uma comunidade que se sente marginalizada: “A sociedade foi construída para as classes média e alta, as políticas públicas não são voltadas para os pobres. Surgimos com um projeto piloto na Maré para transformar o território. Hoje, vejo que estávamos criando uma estratégia de sobrevivência porque entendíamos que as políticas nunca iriam chegar aqui e a gente precisava manter a nossa população viva”, relembra ela.

O sentimento é compartilhado por Carol Flávia Esteves, mulher trans nascida e criada na Cidade de Deus. “Sofri todos os tipos de violações dentro e fora de casa. Foi uma grande luta chegar até aqui, aos 43 anos e viva. Passei por episódios de pedradas, pauladas, todo tipo de LGBTfobia, mas venci.” Ela conta que começou desde cedo a mediar conflitos na favela—ou a “desenrolar o bagulho”, como ela prefere dizer, quando o assunto é a comunidade LGBTI+. Após participar do documentário Favela Gay, dirigido por Rodrigo Felha, a ficha caiu. “O filme abriu muito a minha mente e me fez conhecer outras pessoas, ativistas de outras favelas. Foi quando eu vi que já era ativista sem saber”, explica Carol.

Outra consideração feita pelas entrevistadas é que mesmo políticas públicas importantes, como a criminalização da LGBTfobia em 2019, tem um impacto menor nas favelas porque essas políticas não considerarem as particularidades desses territórios. “Tivemos um avanço no Supremo Tribunal Federal com a criminalização da homofobia, mas posso garantir com toda certeza, que essa lei não vai ser aplicável no território de favela. O agressor mora três casas depois da minha. Onde vamos colocar essa família depois de fazer a denúncia?” questiona Gilmara. Ela também enfatiza o abismo social que a medida expõe e o uso do punitivismo carcerário que pode prejudicar ainda mais os moradores das favelas: “Também faço uma leitura que, mesmo na sociedade como um todo, essa lei não vai ser aplicável, os ricos preconceituosos não vão ser presos, quem vai continuar sendo preso são os pobres, negros e favelados, vai ser mais uma política de encarceramento em massa. Como a gente pensa a garantia de vida dessa população nas favelas?”

De acordo com o último boletim da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgado em junho, 89 pessoas trans foram assassinadas no Brasil nos seis primeiros meses de 2020, um aumento de 39% em relação ao mesmo período do ano passado. A falta de dados consistentes vindos dos governos federal e estaduais referentes à violência contra a população LGBTI+ evidencia que, na maioria dos casos, não existe política de estado permanente, apenas políticas de governo que podem deixar de existir quando novos governantes são eleitos.

Ex-Coordenador da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBTs do Ministério dos Direitos Humanos e hoje diretor do Centro LGBTS+ de Brasília, Julio Pinheiro Cardia explica o problema: “Mesmo com os dados de violência disponíveis, que são poucos, não temos uma noção do comparativo quando colhemos os dados. São mortes relativas a quê? Qual o número de pessoas? Qual a quantidade de LGBTIs? Precisamos ter uma ideia melhor do universo para conseguirmos iniciar um trabalho com mais entendimento sobre a nossa população”. Para resolver parte do problema, o Centro LGBTS+ de Brasília encabeça a campanha “Existo”, para incluir orientação sexual e identidade de gênero no censo de 2021.

Coronavírus nas Favelas

Durante a pandemia do coronavírus, travestis e transexuais que moram em favelas sofrem ainda mais. Carol Flávia lidera os trabalhos na Cidade de Deus. “Sabemos que a maioria delas [travestis e transexuais] sai à noite e muitas têm vergonha de se expor durante o dia, do preconceito que podem passar numa fila, por exemplo.” Por isso, para que possam receber cestas básicas e kits de higiene, Carol criou uma alternativa para a retirada da ajuda com dia e hora agendados, evitando assim as filas e a exposição.

No Complexo da Maré, os apoiadores do Conexão G estão trabalhando em suas casas e também fazendo entregas de cestas básicas. “Outros projetos foram paralisados, não tinha como continuar. Estamos buscando doações, captando recursos. A população trans está muito vulnerável, elas não podem parar de trabalhar porque pagam aluguel. Nem isso a gente tem, esse privilégio de ficar em casa e se resguardar como pessoa,” reflete Gilmara.

No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH) continua atendendo durante a pandemia em seus oito Centros de Cidadania LGBTI+. Eles oferecem acolhimento e atendimento social, psicológico e jurídico aos grupos e têm aumentado o número de casos recebidos. Ao todo, os centros registraram 2.611 atendimentos de janeiro a maio de 2020, enquanto no mesmo período de 2019 foram 1.283. Entretanto, apenas um dos centros está localizado na capital fluminense, o que é pouco para uma cidade de mais de 6 milhões de habitantes.

Educação e Empoderamento

Artistas que já atuaram como atores, produtores e diretores, Gabriel Horsth (23 anos) e Paulo Victor Lino (25 anos) estão à frente do Grupo Pantera de teatro. Os dois foram criados na Favela Nova Holanda, Complexo da Maré, e encenaram o espetáculo Questão de Gosto em uma parceria com o SESC Madureira, que levou a montagem a nove escolas. Eles exploraram a temática do cyberbulling e os aplicativos de encontro para o público gay. Agora estão partindo para uma segunda fase de pesquisa para atualizar o espetáculo e incluir outros grupos da comunidade LGBTI+. “Percebemos que tínhamos muita pouca pesquisa sobre as outras siglas, sobre como as trans, lésbicas e bissexuais usam os aplicativos, por isso estamos pensando na remontagem e com algumas ideias para montar na quarentena”, revela Paulo Victor.

Gabriel ressalta a importância das trocas entre grupos de diferentes comunidades. “Estamos sempre tentando estabelecer essa ponte com outras favelas, é importante para mantermos o trabalho vivo. No início da montagem do ‘Questão de Gosto’, fizemos intercâmbio com um grupo de Nova Iguaçu, o Ponto Chic, distante dessa região central do Rio. Aquele diálogo foi muito necessário para que aqueles jovens se entendessem como LGBTIs. Nova Iguaçu é um bairro muito cristão, tem muitas igrejas, você via naquele grupo jovens com muitas questões. Esse diálogo rompeu barreiras e fortalecemos os nossos trabalhos.” Ele também explica como estão trabalhando durante a pandemia. “Temos trocado muito sobre o que produzir nesse período de quarentena. Com essas ferramentas virtuais conseguimos conectar cada vez mais as narrativas, produzir e estudar.”

Paulo Victor relembra que durante a montagem do espetáculo Questão de Gosto, eles sofriam ameaças de jovens nas próprias escolas, principalmente vindos de estudantes que apoiam o Presidente Jair Bolsonaro. Por outro lado, alunos LGBTIs+ puderam se ver retratados pela primeira vez em uma obra de arte dentro dos seus espaços escolares, que muitas vezes não criam oportunidades de diálogo sobre questões de gênero e orientação sexual. Paulo também destaca a diferença de realidade: “Cada dia é um dia de sobrevivência, sobrevivência ao governo, sobrevivência ao coronavírus, sobrevivência ao Estado, como ele atende às favelas e como está atendendo nesse período de pandemia. Aqui na favela é uma outra realidade, uma cidade dentro de outra cidade. Isso é muito louco, mas acho que a gente tem tentado se encontrar e criar para se fortalecer”.

Sobre os eventos em comemoração ao mês de junho, do orgulho LGBTI+, Carol Flávia conta que todos os que seriam presenciais foram cancelados devido à pandemia para evitar aglomerações. “Aqui as pessoas já vivem aglomeradas, então não têm nem condições de fazer um evento como a parada. Foram feitas alguma lives e postagens nas mídias sociais para comemorarmos o mês do orgulho LGBTI+”.

No Complexo da Maré, o Conexão G promove ações educativas ao longo do ano, criando um espaço de reflexão para que os moradores cisgêneros e heterossexuais entendam a realidade da população LGBTI+, partindo da ideia de que muitos ali compartilham experiências. “É uma cadeia, o opressor em algum momento foi o oprimido, ele vai reproduzindo a violência inconscientemente. Muitos homens cis negros são preconceituosos com a população LGBTI+, na cabeça deles eles fazem parte de uma branquitude desse sistema, só que ele também é oprimido o tempo todo, mas não se dá conta”, sustenta Gilmara.

Conquistas

“A favela melhorou muito em relação ao preconceito”, constata Carol da Cidade de Deus. “A favela é uma grande mãe, a favela abraça. Por mais que sua família te renegue, vai sempre ter alguma família dentro da comunidade que vai te apoiar. Tem essa coisa do aconchego, do carinho, do amor ao próximo na favela.” Gilmara Cunha também aponta avanços importantes no Complexo da Maré: “A minha conquista é ver a população LGBTI+ na rua fazendo essa transformação e esse trabalho de ajuda, não tem coisa melhor. Essa conquista de poder transitar, ter o direito de ir e vir dentro da sua própria comunidade é muito importante”.

Gabriel Horsth enxerga que muitos espaços foram historicamente negados à população LGBTI+, mas avalia que o trabalho conjunto de ONGs e redes de apoio nas comunidades é uma forma de combate ao preconceito através do diálogo. “Acho que primeiro temos que comemorar o fato de estarmos vivos, mais do que tudo. E se orgulhar também do que você é e de como se identifica. Foi a eleição em que mais elegemos parlamentares LGBTIs+. Nossos  amigos LGBTIs+ das favelas estão entrando nas universidades, temos que comemorar isso também. Tento me manter positivo com as notícias boas e com os movimentos que estamos criando”, conclui ele.


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