Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos nas favelas.
No dia 4 de junho, a Usina de Valores, projeto lançado para facilitar o diálogo a respeito dos direitos humanos e criado pelo Instituto Vladimir Herzog, transmitiu uma live no Instagram chamada “Correria Favelada”. Os espectadores assistiram à Deise Pimenta, uma educadora da Usina de Valores, entrevistando Gizele Martins e Raphael Cruz. Os entrevistados contaram sobre suas experiências de ativismo comunitário nas favelas do Complexo da Maré durante a pandemia da Covid-19. A conversa focou nas soluções inovadoras que Raphael e Gizele e seus aliados desenvolveram em favelas, com ênfase na comunicação local e campanhas de conscientização pública.
Gizele Martins: Sobre Organização Comunitária e Comunicação
Gizele, jornalista e ativista da Maré, com seus 15 anos de experiência e editora chefe do jornal local O Cidadão, enfatizou a importância das vozes dos cidadãos da Maré, especialmente para contra-atacar as falsas e estereotipadas narrativas divulgadas pelo governo. Para tais fins, “nós temos que escrever nossa própria história”, ela disse. Gizele é uma liderança da Frente de Mobilização da Maré, a qual tem distribuído suprimentos essenciais e cestas básicas a moradores da área, assim como divulgado informações confiáveis a respeito da Covid-19.
Desafios na Distribuição de Suprimentos e Cestas Básicas
Em resposta às perguntas de Deise sobre as dificuldades enfrentadas pela Frente de Mobilização da Maré, Gizele chamou a atenção ao tamanho da Maré—16 favelas abrigando 140.000 moradores—o que torna a distribuição uma tarefa enorme. Embora Gizele lamentou que “não é possível atender a todo mundo”, a Frente de Mobilização da Maré já conseguiu fornecer a 3.000 famílias os suprimentos necessários. Gizele ressaltou que, para abordar a Covid-19, sua comunidade “precisa da solidariedade, senão a gente não sobrevive” afinal, ela disse, “não é o governo que vai salvar nossas vidas”.
Falando de sua experiência como escritora sobre segurança pública, Gizele discutiu o status das operações policiais nas favelas durante a pandemia. A Maré, agora um epicentro da Covid-19, já sofre há muito tempo pelas fatais operações policiais. Operações como essas aumentaram tanto em frequência quanto em letalidade no Estado durante abril e maio, muitas vezes inviabilizando os esforços de assistência aos moradores. Gizele refletiu sobre o assassinato do jovem de 19 anos, Rodrigo Cerqueira, alvejado pela polícia durante uma distribuição de cestas básicas na favela da Providência, no Centro. Ela também salientou que já houve um razoável número de operações policiais que interromperam a distribuição de cestas básicas. Gizele explica que casos como esse revelam que “o governo não quer que a gente sobreviva”. Ao contrário: “nós somos um laboratório para a política da morte”.
Divulgando Informações Confiáveis em Meio ao Combate às Fake News
Gizele destacou a importância de encontrar soluções criativas para compartilhar informações sobre a Covid-19 com moradores da Maré. “A comunicação comunitária não é fácil […] A gente sempre precisa nos adaptar.” A Frente de Mobilização da Maré implementou um leque de estratégias: membros da equipe dirigem um carro de som alugado pelas ruas, transmitindo recomendações de segurança para a Covid-19, descrições de sintomas do vírus e, recentemente, mensagens contendo recursos às vítimas de violência doméstica; colaboradores ajudam a entregar panfletos informacionais a cada uma das casas, e também produzem arte de rua e colocam faixas em pontos estratégicos nos arredores do Complexo da Maré.
Deise pede a Gizele que comente sobre o impacto das fake news dentro da favela, assim como o impacto da desinformação em tempos de pandemia. Muitos noticiários têm reafirmado alguns estereótipos prejudiciais ao retratar quem mora em favela. Construindo uma resposta unida à essa equivocada e defeituosa representação, Gizele explica que “é preciso a gente sempre estar tocando na questão racial, na questão ideológica, na questão de uma outra comunicação para a gente ter um outro tipo de sociedade e de mundo”.
Raphael Cruz: Sobre Usar Mídias Visuais Durante a Pandemia
Raphael Cruz, um ativista, comunicador e artista visual, criador da página do Instagram “Corona Favelado”, usa seus vídeos para disseminar recomendações na prevenção do vírus. Raphael se lamentou pelas tantas barreiras que existem em se comunicar com a favela, mas diz que está determinado em fazer com que a troca de informações corretas e diretas se torne mais fácil.
No começo da pandemia, Raphael entrou na Frente de Mobilização da Maré para criar o mural de grafite da Covid-19 da comunidade, onde a progressão dos casos e número total de mortes são registrados e atualizados regularmente. Encorajado pela importância da sua contribuição à estratégia de comunicação da Maré, meio à Covid-19, Raphael começou a criar vídeos no Instagram que “produzem um diálogo bem forte e bem real”. Logo, surgiu o Corona Favelado. Os vídeos contém o rosto de Raphael em cima de uma mulher pixelada dançando samba na famosa calçada de Copacabana, pedindo aos espectadores que usem máscaras, lavem as mãos e tomem cuidado com as fake news.
Desafios Financeiros das Artes
Raphael levantou opiniões perspicazes acerca da dificuldade que comunidades artísticas estão enfrentando, mais do que nunca, na geração de renda. Raphael refletiu sobre o fardo financeiro que a Covid-19 significou para os artistas do funk e organizadores das festas: “o baile funk é uma financeira enorme para a favela […] baile da favela não é só um baile”. Apesar da dificuldade de aplicar as precauções de segurança aos bailes, Raphael reconhece que “[aqueles] que mandam nos bailes, vão precisar voltar por causa da renda, porque eles estão sem dinheiro”.
Raphael, assim como muitos artistas visuais, teve que se reinventar durante a pandemia. As comunidades artísticas como um todo “começaram a trocar experiências para começar de novo e aprender como sobreviver de novo”, disse Raphael, que também ressaltou que esse apoio mútuo fortaleceu muitos vínculos da comunidade artística. “É o momento da gente se comunicar, falar em rede.” Embora isso tenha se provado difícil durante a pandemia, Raphael continuou a vender sua arte. Raphael disse que é importante que ele mesmo “pinte mais pelo meu território” para tal, ele tem se adaptado às necessidades financeiras de seus clientes, permitindo que paguem em parcelas. Assim como jovens ativistas e artistas da favela, Raphael e alguns outros estão encontrando jeitos “de conseguir sobreviver, […] com o que a gente gosta, a arte, o que é difícil”.