Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas. Também faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental em favelas para o RioOnWatch.
No dia 9 de julho, o Grupo de Trabalho de Água e Esgoto da Rede Favela Sustentável (RFS)* organizou a aula pública online: “Quais as Perspectivas para a Transformação do Saneamento Básico nas Favelas Após a Pandemia?” Na live interativa, mobilizadores, pesquisadores e aliados técnicos das periferias do Rio e São Paulo discutiram suas experiências de acesso à água potável e ao saneamento básico durante a pandemia, e como a situação da água e saneamento nas favelas revela a necropolítica nessas cidades e possíveis soluções.
Os convidados especiais foram: Irenaldo Honório, fisioterapeuta, técnico de enfermagem e ex-presidente da associação de moradores de Pica-Pau, em Cordovil, na Zona Norte do Rio; Alexandre Pessoa, engenheiro civil sanitarista, doutor em medicina tropical e professor na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz); Otávio Alves Barros, presidente da Associação de Moradores do Vale Encantado e da Cooperativa Vale Encantado no Alto da Boa Vista; Samantha Reis, estudante de graduação na UFRJ e analista de dados e desenvolvedora do CocôZap, um projeto do Data_Labe nas favelas da Maré; Fábio Miranda, músico e permacultor, inventor de tecnologias sustentáveis no Instituto Favela da Paz, em São Paulo, e fundador do projeto Periferia Sustentável; Alessandra Alvez-Roque, terapeuta floral e fitoterapeuta, fundadora da Naturalê e gestora da iniciativa Lave as Mãos, ambas no Morro da Providência; Larissa Gama, aluna de engenharia ambiental e sanitária e coordenadora do projeto Águas da Baixada do Engenheiros Sem Fronteiras; e Ana Lúcia Britto, professora de urbanismo da UFRJ, pesquisadora do Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia e do Observatório das Metrópoles e coordenadora de projetos no Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento.
Os oito palestrantes do evento falaram para 86 pessoas via Zoom, com mais de 500 acompanhando via Facebook Live.
“A pandemia colocou uma luz sobre a situação do saneamento nas favelas”, disse Lúcia Britto. “A gente já conhece há muito tempo, mas a mídia agora está dando muito destaque.” A falta de infraestrutura básica de esgoto nas favelas produziu consequências terríveis durante a pandemia, disseram os participantes do painel, tornando a negligência do governo ainda mais letal do que antes.
Entretanto, “às vezes o conhecimento está na sua rede”, disse o permacultor Fábio Miranda. “Todo mundo tem a capacidade de desenvolver tecnologia sustentável de baixo custo. Reclamar do problema a gente reclama, mas por que não [também] criar as soluções?”
Crise Hídrica e Falta de Políticas do Estado
“Quem é o responsável pelos sistemas de esgotamento nas favelas?” Perguntou Lúcia. “No Rio de Janeiro foi feito um acordo em 2007 que falou que a Fundação Rio Águas, da prefeitura, é responsável. As pessoas nem sabem para quem reclamar. Essa coisa não está nem clara. A água é com a CEDAE, e o esgotamento sanitário é com a prefeitura. A prefeitura simplesmente não fez nenhuma obra ou estrutura de manutenção desde então!” Como este ano é um ano de eleições municipais, ela perguntou: “Qual é a proposta do novo prefeito para as favelas? O atual não tem programa nenhum de ação em favelas”.
“O governo brasileiro tem uma dívida histórica em relação à saneamento. É uma série de precariedades no manejo das águas e esgoto sanitário”, disse Alexandre Pessoa, que observou que problemas com infraestrutura e serviços são “diferentes de acordo com poder aquisitivo, cor da pele, escolaridade. Existe diferença em quem tem acesso ao direito ao saneamento básico”.
“Empresas não têm interesse em garantir saneamento nas favelas. O retorno é baixo e o custo de investimento é alto”, apontou Lúcia, que acrescentou que “tem um déficit, muito grande, de ação do poder público para promover esse direito à água. Prestadores de serviço têm essa dívida muito séria com as favelas do Rio de Janeiro”.
Questionado sobre planos de saneamento e se os investimentos estruturais seriam priorizados, Alexandre respondeu que “as favelas foram desconsideradas do plano municipal. Não houve participação da sociedade. O próprio projeto do BNDES não está considerando a universalização nas favelas. Isso é racismo ambiental, violência de Estado”.
“Saneamento nunca foi prioridade na favela. Até porque está ligado à qualidade de vida”, disse Alessandra Alvez-Roque, concordando que a “precariedade do saneamento é reflexo da desigualdade social. Isso é de antes da pandemia. [Isso] é negado há muito tempo”.
Falta de Infraestrutura Impede Sistemas de Esgoto e Iniciativas de Saneamento Básico
“Mesmo antes da situação da água da CEDAE [em 2020] sofremos da contaminação da água potável com água do esgoto”, disse Irenaldo Honório, referenciando a episódios ao longo da última década, em que água turva de esgoto saiu das torneiras de moradores e até nos chuveiros, na favela Pica-Pau, onde ele mora. “Cada vez mais moradores sofrem, porque estão bebendo água contaminada. Até hoje a CEDAE não veio fazer levantamento para ver a real situação”, ele explica. E mesmo que a CEDAE insistisse que a água está segura para beber, “muito idosos e crianças [estão] sofrendo com diarreia e coceira. [Eles] não têm condição de comprar água potável, principalmente em tempos de pandemia”, ele disse.
Os dias de hoje estão longe das primeiras crises hídricas que atingiram os moradores das favelas do Rio. A questão remonta a mais de cem anos para favelas como o Morro da Providência, destacou Alessandra. “Estamos no Centro, [somos] a primeira favela e temos um problema de esgoto muito grande.” Alexandre complementou que “bairros da Baixada Fluminense não têm acesso à água, em plena pandemia. Tem também a intermitência, lugares onde quebra um equipamento e ficam sem água. Temos desertos sanitários”.
“Outra questão é a própria estrutura das casas das favelas, [é preciso] ver tecnologias apropriadas. Há um diferencial muito grande, desde o Vale Encantado até a Rocinha e a Maré“, disse Lúcia, insistindo que “a questão central é ausência de sistemas. Na Rocinha 21% das casas não possuem canalização de água dentro de casa”.
Alessandra explicou que em algumas casas as caixas d’água não podiam ser colocadas corretamente. “Fiz um projeto para que as pessoas pudessem ter água, mas as pessoas que mais precisavam não podiam porque as casas não tinham estrutura para isso.” Alessandra também lançou um projeto em andamento no Morro da Providência denominado “Lave as Mãos”, que instala pias em espaços públicos acessíveis.
Vários dos palestrantes também observaram que mesmo quando há infraestrutura para fornecer acesso à água “se tem problema na rede de esgoto, ao puxar a água ela fica com cheiro forte de esgoto”. No Morro da Providência, disse Alessandra, “em algumas partes tem água um dia sim, um dia não”. Irenaldo descreveu uma situação angustiante, dizendo que quando chove na favela Pica-Pau “a comunidade fica como um rio [inundada]. Então, você tem cocô em todos os lugares. Não há supervisão técnica sobre como instalar uma tubulação de esgoto”. A contaminação surge no contexto da falta de suporte técnico para instalação de canalizações de água e esgoto. Na favela Pica-Pau, os moradores ficam com água suja nas torneiras, expostos a bactérias e doenças nocivas. Como muitos não têm recursos para comprar água engarrafada, eles são orientados a ferver a água antes de consumir.
Soluções das Favelas
Dada a “variedade de tipologia que a gente tem no Rio de Janeiro—favelas em encostas, favelas planas—a falta de reservatórios, e problemas de frequência no abastecimento de água”, Lúcia questionou: “Como adaptar os sistemas à tecnologias mais sustentáveis?” Ela argumentou que “não tem que ter necessariamente o mesmo sistema em todos os lugares”, mas insistiu que “têm questões que precisam ser colocadas para [podermos] entender qual seria a melhor tecnologia para lidar com essa questão”.
A falta de infraestrutura e políticas suficientes de saneamento básico nas favelas colocou, historicamente, os moradores na vanguarda de soluções de problemas hídricos, e especialmente agora durante a pandemia: “Os sistemas que foram estabelecidos não foram crescendo com o crescimento da população, e então a população estabelece novas conexões [de água], criando bombas de água, e isso cria [novos] problemas. As pessoas acabam se virando porque ninguém pode viver sem água”, explicou Lúcia.
Por meio do projeto Lave as Mãos, criado durante a pandemia, Alessandra e parceiros de sua comunidade instalaram 64 pias com sabonete no Morro da Providência e arredores. Alessandra disse que as pias mais usadas são as que margeiam o túnel de tráfego que passa sob o morro que abriga a comunidade, “porque atendem à população de rua”. O sabão é “feito com óleo reutilizado” usando uma técnica tradicional e distribuído às famílias na favela, disse ela. Alessandra já produziu 7000 litros de sabão.
Enquanto isso, no Vale Encantado, um biodigestor recebe resíduos orgânicos do restaurante cooperativo da comunidade e produz biogás. “Esse gás volta para a cooperativa para assar bolos, tortas, entre outros produtos que fazemos”, disse Otávio Barros. Enquanto isso, um biossistema, incluindo um biodigestor maior, processa cada vez mais o esgoto da comunidade. Agora, cinco das mais ou menos 40 casas da comunidade estão com o sistema instalado. Antes da pandemia, a comunidade tinha planos de concluir o sistema em 2020. “O biodigestor também gera biofertilizante, que é usado dentro da própria comunidade por ter muitos nutrientes. Esse material pretendemos engarrafar e levar para o mercado.”
Fábio Miranda, um palestrante convidado especial de São Paulo, que criou o projeto pioneiro Periferia Sustentável focado na implantação de sistemas de energia renovável, nas periferias de São Paulo e em todo o Brasil, disse, como Otávio, que eles estavam “pegando o que chamam de lixo e transformando em fonte de energia”. O músico e inventor, Fábio Miranda, mostrou participantes ao redor de seu laboratório de tecnologia sustentável no Instituto Favela da Paz em São Paulo: “Aqui é o laboratório com sistemas de automação, cortadora a laser, impressora 3D”. Ele mostrou ao público o sistema de descarga a energia solar que ele criou para o banheiro, “que usa em média 6 litros [de água]”, descrevendo como as tecnologias sustentáveis e de baixo custo podem ser integradas nas favelas.
Samantha Reis apresentou o projeto CocôZap, no qual os moradores podem denunciar problemas de saneamento. CocoZap tem um número no WhatsApp (+5521999573216), “as pessoas enviam mensagens e os dados são salvos online“. Através do uso da estrutura colaborativa, ela explicou, os moradores podem se envolver e influenciar as políticas locais.
Algumas iniciativas desenvolvidas localmente tentam atender às necessidades básicas das populações a baixo custo. Um exemplo disso é o projeto Águas da Baixada. Realizado pelo Engenheiros Sem Fronteiras Brasil, com o apoio da Tetra Tech, este projeto concentra-se em “tornar a água da chuva potável através de filtração e desinfecção”, explicou Larissa Gama.
Lúcia encerrou o debate elogiando as soluções que seus colegas membros do painel apresentaram: “Eu acho que essas formas alternativas que aparecem aqui, além de ser mais ecologicamente sustentáveis, podem ser uma forma de resistência em oposição ao modelo privatista [dos serviços públicos]. Acho que isso dá uma pontinha de esperança”.
Assista à Live interativa aqui:
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras. A RFS tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.