A Pandemia Oculta: Os Relatos por Trás dos Números da Covid-19 nas Favelas, Parte 1 [VÍDEO]

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Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas, e é a primeira de duas matérias que analisa a complexidade da pandemia da Covid-19 nas favelas do Rio, trazendo vozes de lideranças e moradores de favelas que participaram da última coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas. Para a parte 2, clique aqui.

Esta primeira parte traz fatores da pandemia no contexto das favelas e exemplos de mobilizações comunitárias no combate à pandemia da Covid-19.

Desde o mês de março, a população brasileira passou a vivenciar uma nova realidade devido à pandemia da Covid-19. A cidade do Rio de Janeiro e a sua Região Metropolitana mesmo com a defasagem nos dados oficiais apresentam altos números tanto de casos quanto de óbitos. Além disso, não há nenhum tipo de sistema de testagem em massa para atender todas as pessoas com suspeita ou não de contaminação.

Em grande parte das favelas cariocas e fluminenses a situação é ainda mais complexa por conta da alta densidade demográfica, do saneamento básico irregular ou inexistente, da dificuldade de abastecimento de água em muitas localidades dentro delas e também pela dificuldade de acesso aos serviços de saúde básicos. A ausência do poder público nessas localidades faz com que a ação de lideranças comunitários e de coletivos seja ainda mais necessária e importante.

Por sua vez, as unidades hospitalares que deveriam estar preparadas para atender os cidadãos com todo tipo de equipamento, testagem, cuidados e profissionais de saúde, vivem uma realidade caótica onde médicos, enfermeiras e auxiliares trabalham com salários atrasados, com equipamentos quebrados e com a falta de insumos básicos, como medicamentos e outros materiais.

A moradora de Acari, Maria Cristina Porte da Silva, por exemplo, que passou pela Covid-19, não conseguiu atendimento nem na Clínica da Família próxima, nem no Hospital Municipal Ronaldo Gazola. Ela teve que ser socorrida na emergência do Hospital Municipal Francisco Sales e, posteriormente, encaminhada para o Hospital de Campanha no Leblon. Em contrapartida, no Hospital de Campanha, Maria Cristina disse que teve o melhor tratamento disponível e numa de suas falas realizada na última coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas no dia 13 de agosto de 2020, ela disse que se as pessoas tivessem o auxílio médico ao qual eu tive, muitos não teriam morrido”.

Somando-se a todos esses fatores, ainda existe a dificuldade interna do poder público entre as suas três esferas—federal, estadual e municipal—que não conseguiram chegar a um discurso uníssono capaz de dialogar com a população, conscientizá-la e fornecer instrumentos para o seu combate contra a Covid-19. Isso gerou nas pessoas a sensação de que o sucesso na atuação contra a pandemia dependeria apenas da sua ação individual e, consequentemente, tirou parte da responsabilidade que cabia aos órgãos governamentais nessa situação.

A Resposta da Favela: Mobilização Comunitária no Combate à Covid-19

A percepção por parte da população das favelas acerca da limitação da ação pública, fosse em auxílio financeiro, fosse em divulgação dos reais dados de casos e óbitos por Covid-19, gerou a mobilização de diversos grupos sociais já organizados na direção do combate ao novo coronavírus. Ao contrário do que foi reafirmado pela mídia de forma estigmatizada em relação à pandemia nas favelas, como se elas fossem focos da Covid-19, o movimento nas favelas está sendo, na verdade, uma reunião de coletivos que nelas atuam, criando uma rede de apoio aos moradores.

Na coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, a imagem preconceituosa que a mídia vende das favelas foi pontuada pela fala de Rafael Oliveira do coletivo Favela Vertical, em Gardênia Azul, ao dizer que desde o começo a gente tinha uma falácia de que as comunidades seriam propulsoras da Covid dentro do Rio de Janeiro, uma fala racista e sem escrúpulos”. Seimour Souza, do LabJaca, e morador do Jacarezinho, apontou como a favela é invisibilizada pela grande mídia e pelo poder público, e que não é apenas na pandemia da Covid-19 que isso acontece, mas também de outras doenças, como a tuberculose por exemplo.

Para Douglas Heliodoro, do coletivo Conexões Periféricas, em Rio das Pedras, a cobertura da mídia que inicialmente soava como uma preocupação, na verdade só intensificou o estigma da favela frente à pandemia. Além disso, Douglas também pontuou a organização em rede de projetos sociais já existentes em Rio das Pedras, como a Corrente do Bem, Cine Rock, Projeto Semeando Amor, Aliança do Bem, Coletivo Semente, ONG Social Beat, dentre outros, que se uniram para angariar informações sobre a Covid-19 na comunidade, através de formulários online disponibilizados no Google. A entrevista em cada domicílio não era uma alternativa pois Rio das Pedras atualmente conta com mais de 100.000 moradores.

A líder comunitária do grupo A.M.I.G.A.S. (Associação de Mulheres de Itaguaí Guerreiras e Articuladoras Sociais), Anna Paula Sales, deu seu relato sobre o enfrentamento da pandemia pelas mulheres que fazem parte da Associação. Segundo a líder comunitária, o trabalho de identificação das pessoas contaminadas foi feito de forma intuitiva e empírica, sem compromisso algum com as ciências exatas, como as estatísticas… [foi feita] a nível de informação de base comunitária”. Nesse verdadeiro trabalho de campo realizado por elas, os demais moradores foram entrevistados e, mesmo com a falta de aparatos tecnológicos como notebooks e acesso fácil à internet, essas mulheres contabilizaram rua por rua em suas respectivas favelas.

No Jacarezinho, através da Campanha Jaca Contra o Corona, houve a arrecadação e distribuição de cestas básicas, material de higiene e limpeza, kits de bebês, EPIs e material de divulgação. Além disso, inicialmente (antes do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas), foi feito o cadastro de famílias, as características de raça e cor e se essas pessoas já haviam sido testadas ou tiveram algum tipo de sintoma.

Já na Maré, como relatou Dani Moura da Redes da Maré, houve a percepção de que a distribuição de cestas básicas feita inicialmente precisava avançar de alguma maneira. Foi criado então um programa de teleatendimento, o Conexão Saúde, composto por médicos gerais e psicólogos, para atender às pessoas em situação de vulnerabilidade, ou mesmo contaminadas, por conta da pandemia. Através do programa de teleatendimento (que já está em prática), iniciou-se também, um programa de testagem em massa numa parceria com a Fiocruz.

Na grande mídia foram relatadas algumas ações dos próprios moradores como a limpeza da comunidade, instalação de bicas, distribuição de máscaras e sabonetes, e também a contagem de casos e óbitos dentro das favelas. A dificuldade no acesso à água é um dos principais problemas na atual conjuntura, segundo Nill Santos, presidente da Associação de Mulheres de Atitude e Compromisso Social (AMAC), Duque de Caxias. Na favela onde mora foram os próprios moradores que arrecadaram dinheiro para comprar 25 canos que levassem água até áreas que não recebem água pela CEDAE.

Nill também expôs que o maior desafio dos líderes comunitários atualmente é conscientizar as pessoas a cuidarem de si mesmas, principalmente os negacionistas. O maior negacionista atual, infelizmente é o governo, que na fala dela, tentou nos silenciar, não quer nos ouvir. Não nos ajuda, mas somos nós que estamos salvando esse país. Somos nós das comunidades, nós das redes, que estamos transformando nosso país. Não estamos sozinhos, somos muitos e estamos aqui verdadeiramente resistindo.

Esta é a primeira de duas matérias que analisa a complexidade da pandemia da Covid-19 nas favelas do Rio, trazendo vozes de lideranças e moradores de favelas que participaram da última coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas. Para a parte 2, clique aqui.

Assista à Coletiva aqui:

Amanda Scofano é mestre em Geografia, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio, e pesquisadora com ênfase em geoprocessamento e vulnerabilidades socioambientais.


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