Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas, e é a segunda de duas matérias que analisa a complexidade da pandemia da Covid-19 nas favelas do Rio, trazendo vozes de lideranças e moradores de favelas que participaram da última coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas. Para a parte 1, clique aqui.
Esta segunda parte aponta a falta de estratégia do poder público para lidar com questões sociais, econômicas, culturais e de saúde pública, nas favelas, que se agravaram com a pandemia.
Problemas Ocultos Intensificados na Pandemia
Cada favela tem sua própria dinâmica socioespacial, composta, dentre outros fatores, por sua localização, sua história, seus moradores. Isso gera demandas específicas, que endossam a utilização de diversos mecanismos para dar conta de compreender e atender às suas realidades. Porém, como tem sido visto desde o início da pandemia no Brasil, não há formulação de estratégias e diretrizes para combater a situação, principalmente nas favelas, onde resoluções globais como distanciamento social e higienização recorrente das mãos não conseguem ser aplicadas de forma homogênea.
Essa “pandemia oculta” engloba inúmeras questões sociais, econômicas, culturais e de saúde pública da favela que raramente são colocadas em foco pela divulgação da grande mídia e muito menos dos governos. Segundo relatos de lideranças comunitárias, presentes na última coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, nos últimos meses houve grande diminuição no número de doações de cestas básicas para as famílias das favelas. O teórico patamar de estabilidade que o Rio de Janeiro atingiu em relação ao número de casos e óbitos, e a consequente flexibilização instaurada pelo Prefeito Marcelo Crivella, dão aos que doaram nos primeiros meses a sensação de que “o pior já passou” e que não há mais necessidade. Infelizmente, ainda existem muitas famílias com dificuldade para comprar alimentos, ou mesmo passando fome.
A jornalista Karen Melo, do Voz das Comunidades, e moradora do Complexo do Alemão, relatou que além da dificuldade do acesso às cestas básicas, muitas vezes elas ainda vêm com mantimentos estragados: “recebi um vídeo de uma moradora que mostrava para a gente o leite em pó que a criança recebeu e o leite não se misturava com a água, e ela falava: ‘Como eu vou dar isso para o meu filho de oito meses de idade?’”
Essa questão alimentar fica ainda mais preocupante frente à dificuldade no acesso ao auxílio emergencial prometido pelo governo. Os R$600,00 de auxílio emergencial não estão chegando como deveriam às famílias de baixa renda e àquelas cujo responsável está impossibilitado de trabalhar nesse momento. Muitos trabalhadores das favelas são autônomos ou profissionais informais, e a pandemia automaticamente colocou suas funções em suspenso. O atraso e a dificuldade que estão enfrentando para retirarem seu auxílio emergencial as deixa sem nenhum tipo de fonte de renda, gerando a volta prematura ao trabalho (quando isso é possível) e, consequentemente, ao maior risco de exposição à Covid-19.
Outra problemática intensificada pela pandemia diz respeito a mães das favelas. O número de famílias brasileiras chefiadas por mulheres cresceu 105% no período entre 2001 e 2015 e isso não é diferente dentro das favelas. Boa parte dessas mulheres são trabalhadoras autônomas e mães solo, o que gera a cruel pergunta que muitas já tiveram que se fazer: se trabalha em meio à pandemia para alimentar seus filhos, arriscando contágio, ou fica em casa e os veja passando fome. Segundo dados do Data Favela, 84% delas sofreram com queda de renda, 87% estão cortando gastos, e 73% relataram que não serão capazes de manter seu padrão de vida caso parem de trabalhar.
Além disso, segundo relatos de lideranças comunitárias, algumas famílias que dependem do auxílio-reclusão, estão sem assistência quando os presos falecem dentro das penitenciárias devido à Covid-19. Os dados sobre a situação dos presidiários frente à pandemia também estão desatualizados, mas sabe-se que as condições de higiene são péssimas e que não há atendimento médico adequado.
Mas o atendimento médico adequado não falta apenas dentro dos presídios. O atual sistema de saúde facilita as ilegalidades dos mais diversos tipos. Alguns moradores também apresentaram relatos a respeito da falsificação de atestados de óbitos de suspeitos de Covid-19. Como a liberação do corpo demora mais tempo em caso de confirmação de Covid-19 e o enterro precisa ser realizado sob o protocolo do Ministério da Saúde, os familiares são impelidos a aceitar o atestado de óbito com outra causa mortis que não o novo coronavírus.
Negacionismo
Existem inúmeras dificuldades que tornam a situação da Covid-19 ainda mais preocupante no nosso contexto. O negacionismo é comumente uma resposta humana frente à uma situação desafiadora e assustadora como a atual pandemia tem se mostrado. Lidar com o problema como se não houvesse problema não é uma característica exclusiva do Brasil. Alguns países autoritários e alguns líderes agem na contramão do bom senso, da ciência, da ética e das recomendações da OMS. O resultado é visto em números, como do início do mês, quando o Brasil chegou a triste faixa dos 100.000 mortos.
Com toda dificuldade de testagem que o Brasil enfrenta, estima-se que o número de casos é bem maior e o de óbitos ainda permanece uma incógnita—há estudos que, numa determinada projeção, apontam 122% a mais do que os dados oficiais e numa outra projeção, 801% a mais de óbitos—o que torna a realidade ainda mais desumana.
O futuro pós pandemia é um desafio a ser enfrentado por todos e sob os olhares das lideranças comunitárias, presentes na coletiva, obtivemos diferentes respostas. Para Anna Paula Sales, da Associação de Mulheres de Itaguaí Guerreiras e Articuladoras Sociais (A.M.I.G.A.S.), é preciso conscientizar, informar e mobilizar as comunidades para compreenderem que a vida não voltará ao “antigo normal”. Para Seimour Souza, do LabJaca, o “novo normal” só será sentido por alguém que não tenha perdido nenhum ente querido para o vírus.
A situação brasileira atual, e principalmente nas áreas de favelas, pede por ações estratégicas que visem primordialmente a saúde de seus habitantes, mas também a manutenção das suas condições econômicas e sociais de vida. É urgente ouvir os moradores de favelas sobre a sua realidade e a suas necessidades durante a conjuntura pandêmica. Como colocado anteriormente, as demandas da favela não são as mesmas do asfalto e requerem um olhar aguçado e sensível em direção às suas particularidades.
Esta é a segunda de duas matérias que analisa a complexidade da pandemia da Covid-19 nas favelas do Rio, trazendo vozes de lideranças e moradores de favelas que participaram da última coletiva do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas. Para a parte 1, clique aqui.
Assista à Coletiva aqui:
Amanda Scofano é mestre em Geografia, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio, e pesquisadora com ênfase em geoprocessamento e vulnerabilidades socioambientais.