Esta matéria faz parte de uma série de matérias sobre as eleições municipais de 2020, com enfoque nas perspectivas das favelas do Grande Rio.
São muitas décadas de esvaziamento e violência no processo político dos municípios da Baixada Fluminense. E é notável como a inserção política das mulheres sempre foi a mínima possível. Para mudar este cenário não basta uma política de tampa-buracos nas ruas ou a coleta seletiva em dias determinados, mas, sobretudo, é necessária a renovação política e soluções efetivas de longo prazo.
Para discorrer sobre o tema, o presente texto traz vozes de lideranças femininas do município de São João de Meriti, que segundo o IBGE, possui uma população de 472.906 habitantes, e que por ter a maior densidade populacional do país, é popularmente conhecido como o “formigueiro da América Latina“.
De acordo com Riva Nepomuceno—mulher negra, bibliotecária e moradora do Éden, São João de Meriti—a imprensa e a população em geral, na década 1980, dizia que “São João era o [município em] que mais [se] matava mulheres”. Riva, que atua na contação de histórias sobre as mulheres Meritienses, nos contou que naquela época “a resistência acontecia no samba e nas religiões de matriz africana, pois sem médico, educação, cultura e emprego, a vida da mulher ficava impossível de articular. [Ainda mais levando em conta] a sua sustentação e a dos filhos… Chegavam a [ser] 70% os lares sem marido, ou outra figura masculina com quem pudessem contar”.
De acordo com Riva, em tempos de eleições é fundamental trazer a luz que a política partidária brasileira é branca e masculina, e que esse cenário é ainda mais intenso na Baixada Fluminense, o que só aprofunda a situação de vulnerabilidade feminina. É sabido que poderes locais na Baixada Fluminense, têm a “mão pesada” em seus domínios inclusive na política local. Desde a redemocratização do Brasil, na década de 1980, as execuções políticas e atentados à bala contra opositores tornaram-se práticas políticas comuns na Baixada. Segundo O Globo, baseado em dados do aplicativo Fogo Cruzado, pelo menos 21 políticos ou candidatos foram mortos desde 2018 por motivos políticos na Baixada. Assim como o assassinato político de Marielle Franco, em 2018, 14 dos 21 inquéritos abertos não foram concluídos e nem determinaram os autores ou os mandantes dos crimes, bem como no caso da vereadora carioca.
Em 2020, até o início de novembro, pelo menos cinco candidatos foram mortos por disputas eleitorais na Baixada Fluminense. Dentre estes, uma era mulher: Tia Sandra, executada e jogada no Rio Roncador, em Magé. Dos cinco assassinados, três eram negros. Mulheres pretas estão sub-representadas na política, mas sobre-representadas na violência política.
“Me incomoda esse tipo de machismo, os discursos são violentos, tem a fala moralista e o negacionismo. A política em São João de Meriti intimida ou usa as mulheres. A pressão está tão grande que começa a se construir resistência, mas são com as mais jovens que vamos construir bases. Precisamos de representantes políticas, intelectuais—que não tenham só formação acadêmica. Precisamos dos saberes das matriarcas do samba, do Candomblé, que estão na luta, resistindo e tendo avanços”, finaliza Riva.
Nas eleições de 2016, dentre os 570 candidatos vereança em São João de Meriti, 165 eram mulheres, ou seja, 28,9% das candidaturas eram de mulheres, de vários partidos. Nenhuma foi eleita, nem mesmo Angela Theodoro e Roberta Queiroz que foram as últimas mulheres eleitas na cidade da Baixada Fluminense, como vereadoras, em 2012. Angela Theodoro e Roberta Queiroz foram as únicas mulheres presentes na Câmara dos Vereadores de São João de Meriti na última década. Um espaço, de fato, hostil às mulheres. Nas eleições de 2020, 712 candidatos concorrem à vereança em São João de Meriti, destes, 231 são mulheres, 32,4% do total. Ou seja, houve um aumento irrisório de 3,5% da participação de candidaturas femininas desde as eleições de 2016. As candidaturas femininas além de menos comuns, não são, em geral, bem sucedidas. Dependendo da legislatura, a taxa de sucesso eleitoral das candidaturas femininas varia ao redor do zero.
Cotas de Gênero na Política e Resistência Feminina
Thaísa Santos, 18 anos, fundadora do Projeto Ler Baixada—de contação de histórias para crianças e adolescentes, do Morro da Aparecida—afirma que reverter essa opressão, em potência de transformação, é uma luta da nova geração de São João de Meriti. “Não ter mulheres na política retira toda a representatividade que meninas em movimentos podem ter. Sempre eliminam a possibilidade de se tornar algo maior, uma vereadora, prefeita e afins. Tanto que a mais visível foi Marielle Franco e ela foi morta, assassinada. É claro que a juventude feminina terá medo, ninguém quer morrer a não ser que se enxergue e faça do corpo, um corpo completamente político. As ações políticas não ficam acessíveis para mulheres. Falta unir forças femininas para esse quadro tomar um rumo diferente e poder transformar a política local.”
De acordo com a legislação eleitoral federal, o Art. 10, Parágrafo 3, Lei 9.504, determina que pelo menos 30% das candidaturas lançadas pelos partidos devem ser reservadas às mulheres. É uma medida de fomento à participação feminina na política.
“Mês passado, o Projeto Inclusão recebeu na sua sede alguns candidatos à vereança e apenas uma mulher participou do debate”, disse Élida Nascimento, educadora e fundadora do Projeto Inclusão.
Em 2016, nas últimas eleições municipais, Doutor João Neto foi eleito prefeito de São João de Meriti, no primeiro turno. Cristiane Bulhões foi a única candidata e recebeu 3445 votos, um percentual de 1.52%. Nessas eleições municipais de 2020 não temos nenhuma candidata à Prefeitura de São João De Meriti, somente a vice Juliana Drummond.
Fazendo parte do conselho de cultura de São João, Barbara Souza, opina sobre o tema: “Será que nós mulheres sempre precisaremos vir na sombra de um homem? O machismo estrutural em pleno século XXI não nos deixa em lugares de destaque, ‘mulher não pode se meter em política partidária ou administrativa, mulher não serve para essas coisas’. Merecemos uma candidatura feminina, que perpetue a cultura e abrace outras mulheres, para analisar a proposta de candidatas que estejam tentando um cargo de vereadora para ter um número mais expressivo em comparação aos candidatos homens”.
Mulheres na Pandemia
Segundo dados do Painel Covid-19 da Prefeitura de São João de Meriti são 4008 casos confirmados, 3874 suspeitos, 1619 descartados e 493 óbitos de casos da doença até 10 de novembro. A conselheira no Conselho Municipal de Igualdade Racial (COMIRA) da Secretaria Municipal de Cultura, Lazer, Direitos Humanos e Igualdade Racial de São João de Meriti, Sonia Lage, acredita que houve omissão do município: “O governo da cidade, na pandemia, imediatamente fechou todas as portas que já não eram de fácil acesso às parcelas mais vulneráveis da população. A única porta de [acesso às] políticas públicas que a população tinha era através do CRAS. Fomos pegos de surpresa pela pandemia sem ter para onde correr. Aí entra o trabalho incansável e sem fim das lideranças, de mulheres em diversas frentes”.
Para Bárbara Souza, assistente de coordenação do grupo de mulheres Yepondá, outro agravante foi o aumento da violência contra a mulher. “São João De Meriti é um município populoso e passamos por período de extremo isolamento. O número de [vítimas da] violência doméstica cresceu e muitas mulheres não sabiam que estavam sofrendo violência e muitas até sabiam mas, por medo, não denunciavam. E mesmo com tudo isso, essas vítimas continuam tendo como únicas opções de voto com chances reais de ganhar, homens. Sem nenhuma representatividade. Nada melhor que uma mulher para entender as particularidades das outras.”
Poesia por Thaísa Santos:
Meu senhor, a juventude feminina está externalizando sua dor.
E mais do que tudo enaltecendo potência num campo transformador.
Mas falta… sempre falta, o reconhecimento de que o campo político é lugar para o feminino.
E a falta disso, se reflete nas obscuridades, no poder do macho opressor.
A figura de domínio se perpetua e a falta de mulheres em política nós atravessa.
Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.