Esta matéria faz parte de uma série de matérias sobre as eleições municipais de 2020, com enfoque nas perspectivas das favelas do Grande Rio.
“A gente não pode esperar mais dez anos [para ter mulheres negras eleitas]”, disse Marielle Franco, horas antes de ser assassinada em março de 2018, durante o seu mandato como vereadora do Rio de Janeiro. Dois anos depois, o Instituto Marielle Franco, criado em sua memória, aciona ao legado da vereadora, ao apresentar, em julho deste ano, a Plataforma Antirracista nas Eleições (PANE) com o objetivo de fomentar a entrada de mulheres negras nos espaços de decisão, pressionando os partidos a viabilizarem o maior número de candidaturas possíveis com pautas antirracistas.
Anielle Franco, irmã de Marielle e dirigente do Instituto, explicou ao site UOL como a primeira ação—em parceria com a Educafro, o Movimento Mulheres Negras Decidem e a Coalizão Negra por Direitos—consistiu na luta pelo financiamento de candidaturas negras. Com o apoio de mais de 10.000 pessoas e centenas de organizações, no dia 25 de agosto, a plataforma teve sucesso, e os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovaram a distribuição proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral para candidatos negros, com entrada em vigor a partir de 2022. Mas a segunda vitória veio no dia 9 de setembro, quando o Ministro do Ricardo Lewandowski decidiu que a cota seria aplicada já nas eleições municipais de 2020. Isto significou que os partidos políticos tiveram que repartir os recursos do fundo eleitoral e tempos de rádio e TV de forma equitativa entre candidatos brancos e pretos, já nas eleições deste ano.
Acerca destas novas medidas, Anielle escreveu no site UOL: “Garantir os recursos necessários para as campanhas de mulheres negras, assim como tempo proporcional de propaganda é urgente. Nós, mulheres negras, sabemos o quanto que essa disputa é desigual e o quanto a falta de recursos prejudica ainda mais essas candidatas e candidatos que vêm de territórios vulnerabilizados desse país”. Os números corroboram o seu discurso: segundo dados de Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre a divisão de financiamento da eleição de 2018 para a Câmara dos Deputados, embora as candidatas negras fossem 13% das candidaturas, estas receberam metade do financiamento: só 7% do orçamento. Em contraste, 60% do financiamento foi entregue a candidatos homens e brancos, embora representassem menos de metade das candidaturas (43%).
No Brasil em 2016, apenas 15,4% dos candidatos a vereador e 4,1% dos candidatos à prefeitura eram mulheres negras. Em 2018 houve um aumento no número de candidaturas de mulheres negras, inspirado pelo legado de Marielle Franco. Neste ano de 2020, houve um crescimento de 1,4% no número de candidatas negras à vereança face às últimas eleições, além de um tímido aumento de 0,4% nas candidaturas de mulheres negras à prefeitura. Dentre as 19.123 candidaturas registradas no TSE para disputar as prefeituras em 2020, 13,05% (2495) são de mulheres e apenas 4,5% (857) das candidaturas à prefeitura são de mulheres negras (pretas ou pardas). Num país em que as mulheres negras representam 23,4% dos brasileiros, estes números ficam aquém da diversidade necessária para a criação de políticas públicas inclusivas.
Lançamento da Agenda Marielle
A segunda iniciativa do Instituto Marielle Franco surge como solução a esta realidade. No dia 14 de setembro, a família de Marielle lançou a Agenda Marielle, uma agenda pública com pautas antirracistas, feministas e populares a partir do legado de Marielle, para as eleições de 2020. As pautas, criadas através do estudo dos projetos de lei, ações e discursos de Marielle na Câmara dos Vereadores, e das falas das assessoras do seu gabinete, podem ser assinadas pelos candidatos às eleições que, desta forma, se comprometem a seguir o projeto social de Marielle. Esta é também uma forma de agregar o que era a visão política da vereadora, e assim desincentivar figuras públicas a usar o legado de Marielle sem estarem realmente alinhados com o que ela defendia. Os cidadãos podem ainda inscrever-se como defensores da agenda, e assim cobrar dos candidatos.
É ainda possível ver no site da Agenda Marielle quem são os 753 candidatos de todo o Brasil que se comprometeram a respeitar a Agenda Marielle—no município do Rio de Janeiro, são 42 candidatos, entre eles estão as candidatas à prefeitura Benedita da Silva (PT) e Renata Souza (PSOL), ex-assessora de Marielle.
A agenda, constituída por sete pautas sociais—Justiça Racial e Defesa da Vida, Gênero e Sexualidade, Direito à Favela, Justiça Econômica, Saúde Pública Gratuita e de Qualidade, Educação Pública, Gratuita e Transformadora, Cultura, Lazer e Esporte—aglutinam as lutas que Marielle defendeu durante a sua vida. “É triste pensar que ela estaria completando quatro anos de mandato, que tinha uma vida de sonhos e projetos pela frente. Talvez ela pudesse estar concorrendo à prefeitura ou apoiando candidaturas”, relembrou Anielle, em entrevista.
Um contador de tempo no site do Instituto Marielle Franco marca o quanto se passou desde o assassinato da vereadora. Parece querer relembrar-nos que, face à dor, é preciso fazer o tempo valer, e continuar o trabalho de Marielle, para que não tenhamos que ficar apenas esperando pela justiça que insiste em tardar.