Grada Kilomba, a artista interdisciplinar portuguesa e escritora cujo trabalho investiga legados do colonialismo e do racismo, com base em elementos de performance, instalação e psicologia, encorajou uma geração mais jovem de criadores a romper barreiras de forma semelhante, em uma discussão online que foi parte da Festa Literária Urbana das Periferias (FLUP) do Rio este ano. O festival tem acontecido desde 2012 por favelas e espaços públicos da cidade.
“Nós precisamos dessa multiplicidade”, ela disse. “Todos temos nossas próprias questões, e precisamos encontrar nossas próprias respostas também… Eu acho que é isso que é o trabalho decolonial. Eu não posso obedecer a uma disciplina que me colocou como o outro”.
Grada falou de seu trabalho como parte de um projeto antirracista global, que visa abordar como pessoas negras foram “fragmentadas de nossa história e separadas”. Ela comentou que passou a acreditar que o empoderamento não vem necessariamente de “ser a melhor”, mas de “ser você mesma”.
A inclusão de Kilomba na programação digital da FLUP de 2020 se deu depois dela falar, em 2019, em um evento em parceria entre a FLUP e a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), no Museu de Arte do Rio, atraindo um grande público. Posteriormente, ela assinou centenas de cópias de seu livro, Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano, que foi a obra mais vendida na FLIP daquele ano. “Nós finalizamos a noite com o desejo incontrolável de, se não prolongar, de repeti-lo”, disse Daniele Bernardino, da FLUP, apresentando o evento deste ano.
Escritores de todo o mundo foram incluídos na programação do festival FLUP deste ano, em parte porque uma das duas escritoras celebradas pelo evento foi Lélia Gonzalez, “que já criou relações com a diáspora global nos anos 1980”, escreveram os organizadores do festival. “Nós tomamos o cuidado de ouvir mulheres negras vindas das mais diversas realidades.”
O evento com Grada ocorreu em parceria com o Festival Internacional de Autores de Toronto, e ela discutiu sobre seu trabalho juntamente com o jornalista canadense Desmond Cole, cujo livro The Skin We’re In: A Year of Black Resistance and Power, traz uma crônica do ano de 2017 através de histórias de racismo e da demonização da resistência negra em todo o Canadá em setores como policiamento, educação e sistema de imigração.
Desmond e Grada debateram o papel de escritores negros em um contexto global e as filosofias por trás de seus livros. Memórias da Plantação explora formas sutis, cotidianas de racismo como uma recriação da violência colonial e do trauma que continua a informar o presente. Seu livro foi escrito onze anos atrás, mas apenas foi traduzido de forma bem-sucedida para o português no ano passado—ele foi originalmente publicado na Alemanha, onde ela mora, em inglês. Desmond e Grada falaram de como ambos os livros narram realidades que têm um elemento atemporal e sobre a importância de dar testemunho. A cobertura de Desmond sobre racismo no policiamento ao longo dos anos o levou a Ferguson, Missouri, depois do assassinato de Michael Brown, cometido por policiais em 2014, e o livro narra o assassinato do somali-canadense Abdirahman Abdi pela polícia de Ottawa.
Quando perguntados o que fizeram para se manterem a salvo durante o processo de escrita, Grada respondeu: “Para mim, nunca foi uma questão de segurança, mas uma questão de urgência… Eu queria ter minhas perguntas respondidas, eu queria entender quem eu sou”, disse.
Desmond relatou que muito de seu trabalho se constitui por “encontrar a mim mesmo em espaços e olhar para experiências e histórias que realmente mostram como nós não estamos a salva e como este mundo não está nos oferecendo essa ideia de segurança”.
O trabalho da luta da libertação negra, ele disse, inclui sonhar grande sobre “o que a segurança seria nas atuais circunstâncias… Nós não temos que nos comprometer com um Estado que se recusa a enxergar nossa humanidade, nós temos que sonhar mais alto do que eles acreditam ser possível”.
Enquanto ativistas pressionam por mudanças grandes, sistemáticas, ele comenta que as conexões possíveis através da escrita são extremamente poderosas. “Há um senso de que estamos sendo vistos e ouvidos contando histórias”, ele disse, “de que as experiências que temos estão se tornando reais”.
Grada contou ao El País Brasil, em uma entrevista em 2019, que um método de decolonização é a “desobediência poética”—o nome de sua exibição de 2019 na Pinacoteca de São Paulo, na qual contadores de histórias africanos recontam mitos greco-romanos.
A desobediência poética é um elemento central do comportamento político brasileiro, com exemplos recentes no Grande Rio, incluindo a Ocupação Cultural Artística do Viradouro (OCA) sediada no Complexo do Viradouro, na cidade de Niterói, onde moradores protestaram contra violações de direitos humanos como o abuso da força policial, invasões de casas, espancamentos e ameaças.
Essa pode estar entre as muitas razões pelas quais o trabalho de Grada reverbera entre brasileiros e, especialmente, entre mulheres negras brasileiras. Na participação de 2019 de Grada na FLUP, durante o evento, a audiência chamou, com sucesso, para que a escritora e ícone feminista negra, Conceição Evaristo, se juntasse a Grada no palco.
“É importante lembrar a uma geração mais jovem que vocês devem ser experimentais e que não devem seguir o protocolo”, disse Grada na FLUP 2020. “Eu acho que o que é realmente urgente é quebrar as regras e ser desobediente. Criar uma nova linguagem e um novo vocabulário e um novo formato”.