O Racismo Velado na Criminalização do Funk, Parte 2: ‘Não Tenta Destruir Isso!’ [VÍDEO]

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Esta é a segunda de uma matéria de duas partes sobre a criminalização do funk. Esta segunda parte aborda depoimentos do MC Poze, a visão do cantor Emicida sobre a criminalização do funk e traz uma série de posts, fotos e vídeos de todos os artistas mencionados na matéria. Não deixa de ler a parte 1 aqui.

Ainda Sobre o Artista Poze: “Estou Livre. A Favela Venceu”

Em uma entrevista para a TV Record, Poze fala sobre sua carreira e como se sente ao ser acusado por envolvimento com o varejo de drogas. “Foi tudo [conquistado] sozinho. Tive dificuldade no início, mas sempre sozinho procurando fazer um show ali, fazer um show ali, e graças a Deus consegui conquistar o mundo com esse talento que eu tenho. Mas todos veem que não tenho envolvimento nenhum… Tenho minha família, e vivo em paz hoje em dia… Eu rodo o Brasil todo, fazendo shows e [com] isso já dá pra ver que não tenho ligamento com o tráfico de drogas.”

Perguntado sobre o que passou pela cabeça ao ser acusado, o MC disse: “Temos família e a família sofre por uma notícia que tá dando ali, totalmente contrária [à realidade]”. MC Poze, que teve sua prisão decretada pelo TJ-RJ no dia 6 de julho de 2020, entrou na lista de procurados pelo Estado do Rio de Janeiro e passou a ser considerado foragido da justiça. Até que tivesse sua prisão revogada, no dia 14 de julho de 2020. Segundo o G1 em uma de suas redes sociais o artista agradeceu pela decisão: “Deu tudo certo. Obrigado papai do céu. Estou livre. A Favela venceu.”

Em outro trecho da entrevista o cantor completa dizendo: “Quando era morador de favela… [a gente] frequentava isso constantemente, então só cantava o que via com nossos próprios olhos”. E conclui: “Minha defesa está correndo atrás disso aí… porque o certo é que eu não tenho nada a ver com isso aí… Isso vai virar música!” Em 16 de outubro de 2020, de fato virou. O nome do funk é o mesmo da campanha online #mcnãoébandido, pedindo a liberdade de MC Poze e de outros MCs presos, como o MC Pelé Johnson, foragido desde 2016 e preso em setembro de 2020, também sob a acusação de apologia ao tráfico.

A Constante Estigmatização de Narrativas Realistas da Música Negra

O cantor diz que, quando era morador de favela, enxergava tudo que traz nas letras de suas canções. Em contrapartida, o judiciário brasileiro vem alegando nos últimos 30 anos o envolvimento da cultura funk—e de outras produções culturais negras e de favela—com a ilicitude, sobretudo através da “apologia ao tráfico de drogas” ou da “associação ao tráfico”. Foi com esse questionamento que, no programa Roda Viva do dia 27 de julho, o rapper Emicida foi perguntado se o rap era condescendente com o crime organizado. Tal pergunta poderia ter sido sobre o funk, já que era focada nas produções culturais faveladas. Segundo a jornalista, Vera Magalhães, essa questão aparece muito no Twitter do programa afirmando que o rap “deixa de fazer uma crítica mais dura ao crime organizado do que faz, por exemplo, às forças policiais e ao Estado”.

Respondendo a isso, o cantor declarou:

“Desde quando narrar uma determinada situação que está vinculada ao crime faz de você um apologista daquela situação?… Se isso fizer de você um apologista daquela situação, então você tem que começar a pegar o Datena, que faz isso todo dia na televisão… A música faz um retrato do lugar onde as pessoas vivem. Apologia ao crime é a forma como o brasileiro vive.”

A constante estigmatização e criminalização da música negra, perpassa todos os ritmos da cultura preta na diáspora. Seja com os spirituals e o jazz, ou com o samba, o jongo, a capoeira, as músicas de terreiro, o funk e também o rap. Um caso centenário dessa criminalização da cultura negra é o de João Machado Guedes (1887-1974) conhecido como João da Baiana. Conhecido como um grande pandeirista, o sambista teve seu instrumento musical, o pandeiro, quebrado em uma festa da Igreja da Penha, no subúrbio do Rio de Janeiro, pela polícia em 1908.

Cem anos depois, esta não é uma lógica ultrapassada. Ela tem sido cada vez mais usada como uma ferramenta, operada pelo Estado brasileiro, colocando atividades culturais na ilegalidade e encarcerando os artistas. À imagem do que se fez com o samba, o racismo estrutural é quem dá a nota. É como aponta a Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB-RJ, ao fim de seu relatório: “resignar-nos a conviver harmonicamente com condenações como a do Rennan [da Penha] levaria-nos ao desconfortável reconhecimento de que a presunção de inocência é um privilégio de poucos”.

Conheça os Artistas Criminalizados Citados Nesta Matéria

MC RÔMULO COSTA – Nascido em Cuiabá, Mato Grosso, o organizador de bailes funk e apresentador de shows e de programas de televisão, e um dos fundadores da Furacão 2000, foi preso em novembro de 2000 por suposto envolvimento com o tráfico de drogas do Morro do Chapadão, em Costa Barros, Rio de Janeiro. Foi inocentado por falta de provas.

MC SAPÃO – Cria do Complexo do Alemão, foi preso por associação ao tráfico em 1999, ficando preso oito meses.

MC Sapão. Foto: Instagram/@sapao.

MC COLIBRI – Cria da Serrinha, foi acusado de associação ao tráfico de drogas. Ficou preso de 2006 até 2009.

MC FRANK – Cria do Complexo do Alemão, o MC foi denunciado e preso por meses em 2010 por apologia ao tráfico. Foi libertado por decisão do STJ, por falta de provas.

MC SMITH – Cria do Complexo do Alemão, foi denunciado e preso em 2010 por apologia ao tráfico. Foi libertado por decisão do STJ, por falta de provas.

MC TIKÃO – Cria da Vila Kennedy, foi denunciado e preso em 2010 por apologia ao tráfico. Foi libertado por decisão do STJ, por falta de provas.

MC MAX – Cria do Complexo do Alemão, foi denunciado e preso em 2010 por apologia ao tráfico. Foi libertado por decisão do STJ, por falta de provas.

MC DIDO – Cria do Morro do Borel, indiciado e preso por associação ao tráfico, apologia ao tráfico e formação de quadrilha, e também, em outro momento, detido por porte de drogas pela UPP Borel.

DJ IASMIN TURBININHA – Cria da Mangueira, foi convocada a depor em inquérito da Polícia Civil sobre sua suposta relação com o Comando Vermelho na Nova Holanda, no Complexo da Maré, graças a uma edição do baile da Nova Holanda que ela nem chegou a ir, apesar de haver sido anunciada como uma das atrações.

DJ POLYVOX – Cria da Maré, foi convocado a depor em inquérito da Polícia Civil sobre a suposta relação do Comando Vermelho com o baile funk da Nova Holanda, no Complexo da Maré, e a ligação do DJ com a facção.

MC PELÉ JOHNSON – Cria do Pavão-Pavãozinho, era considerado foragido da justiça desde 2016, até ser preso em setembro de 2020, também sob a acusação de apologia ao tráfico.

MC GALO – Cria da Rocinha, preso em 2010 depois de ser considerado foragido por onze anos, desde 1999, quando a Justiça expediu um mandado de prisão em nome dele por associação ao tráfico de drogas, incitação ao crime e apologia as drogas.

MC CABELINHO – Cria da Nova Holanda, na Maré, foi intimado a depor no dia 29 de outubro de 2020 por suposta apologia ao tráfico. O MC nega essa alegação e aponta racismo como base do inquérito policial. O MC produz obra artística ficcional.

MC MANEIRINHO – Cria do Morro do Serrão, em Niterói, foi intimado a depor no dia 29 de outubro de 2020 por suposta apologia ao tráfico. O MC nega essa alegação.

DJ RENNAN DA PENHA – Cria do Complexo da Penha, o DJ foi denunciado e preso por atuar na organização criminosa como “olheiro” ou “atividade”, por relatar nas redes sociais, segundo o judiciário, a movimentação de policiais na favela da Penha. Foi solto depois de meses na prisão, dias da decisão do STF sobre sua prisão em segunda instância.

MC POZE – Cria da Favela do Rodo, denunciado e preso no estado do Mato Grosso por tráfico de drogas, organização criminosa, associação ao tráfico, incitação ao crime, apologia ao crime, corrupção de menores e fornecimento de bebidas alcoólicas a menores, em 2019. Foi libertado por falta de provas. No Rio de Janeiro, chegou a ser considerado foragido depois de ter mandado de prisão expedido por apologia ao tráfico, em 2020. Responde ao processo em liberdade por enquanto.

Ingra Maciel, moradora de Acari, tem 28 anos e é formada em História pela UFRJ, pós-graduada em ensino de História da África, pelo Colégio Pedro II e auxiliar de pesquisa do Medialab da UFRJ. Na graduação desenvolveu sua pesquisa acerca da criminalização do funk carioca e o seu processo de resistência, e atualmente vem estudando o funk carioca a partir da perspectiva pedagógica.


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