Este relato traz a vivência e as reflexões de um jovem morador do Complexo do Salgueiro sobre a precariedade do fornecimento de energia em sua comunidade. Faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio. A matéria também faz parte de uma parceria com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para que seja utilizada como um recurso pedagógico em escolas públicas de Niterói.
Quem está na ponta e sofre com a desigualdade socioeconômica, entende que a realidade do seu local de moradia é diferente em comparação a de lugares ricos. Sou morador de favela desde quando eu nasci, presenciei e até hoje sofro na pele o abandono da população de baixa renda e vejo que essa questão fundamental, que só acirra a desigualdade, deve ser pautada na sociedade.
Eu moro no Complexo do Salgueiro, São Gonçalo, e sempre enfrentei muitos desafios por inúmeros motivos, e um deles é o fato de viver sem as garantias de direitos básicos. A precariedade dos serviços prestados nas favelas é uma ameaça crônica a uma boa condição de vida. Falar sobre a segurança energética nas favelas, a falta de energia elétrica, e os impactos da ausência deste serviço para as pessoas em situação de vulnerabilidade social se faz necessário e urgente.
Diversas são as lembranças que tenho da minha experiência com a falta de luz: de repente as lâmpadas ficavam todas apagadas, minha mãe rapidamente acendia as velas para clarear os cômodos da casa. Para quem sofre constantemente com a queda de energia, não podem faltar velas para iluminar as residências em meio à escuridão, mesmo em um tempo tão “moderno”. Nestes momentos, a minha família se reunia na calçada junto com a vizinhança à luz do luar, e assim ficávamos por horas nos entretendo com brincadeiras, músicas e histórias, à espera da energia elétrica voltar.
Apesar do momento agradável compartilhado em comunidade, no final das contas a vivência é muito difícil. Popularmente chamada de “queda de luz”, essa questão já faz parte da rotina de muitos, e a bastante tempo. A invisibilidade dos mais pobres resulta em inúmeras famílias, no escuro, no calor, sem alimentos refrigerados e a água gelada. E em plena época em que a internet se torna cada vez mais importante, a conexão é interrompida, impossibilitando a gente de utilizar esse meio digital para estudar, trabalhar e navegar nas redes sociais. Tais vivências e realidades aumentam as dificuldades da rotina diária daqueles que já são marcados pelo medo, fome, e desamparo. Infelizmente, o desemprego no Brasil só cresce, e isso atinge diretamente essa parcela da população.
“A falta de luz na minha vida é apavorante, porque eu não gosto de ficar no escuro. É muito ruim. Além do calor, nós temos que enfrentar as picadas dos pernilongos, afeta a qualidade do sono, e estraga o pouco de alimento que tem na geladeira.” – Antônia*, moradora antiga do Salgueiro
Com a precariedade do fornecimento de luz no Salgueiro, as pessoas buscam outras formas de sobreviver, optando por uma solução emergencial, utilizando ligações elétricas clandestinas, o famoso, “gato”. Os “gatos” põe as famílias em risco de perder o pouco que têm, e é comum isso acontecer. A perda por queima de equipamentos como televisão, ventilador e geladeira ocorre devido a rede estar ligada à eletricidade de alta voltagem. Tanto por ser um direito, quanto pelos altos riscos que o não fornecimento de energia impõe às comunidades, é fundamental o acesso seguro aos serviços de fornecimento de energia—que são necessários e devem ser garantidos pelo poder público para dar uma vida digna a quem sofre na pele esse problema.
“O uso do gato é prejudicial para a gente… mesmo precisando usar desse meio. Nós aderimos ao gato por não termos condições financeiras: ou pagamos a conta de luz ou compramos comida… e quando há alguma queima de eletrodomésticos, por conta disso, não temos [mais acesso] à garantia de perda [do aparelho].” – João*, morador do Salgueiro
Mesmo diante dessas dificuldades, uma solução, já existente e que pode remediar esse problema, é a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE). Criada pelo Governo Federal para famílias de baixa renda, o programa oferece descontos na conta de energia. “A tarifa terá um desconto de 65% para os primeiros 30 kWh consumidos no mês. Para o consumo de 31 a 100 kWh/mês, o desconto será de 40%. Finalmente, a parcela de consumo entre 101 e 220 kWh no mês terá 10% de desconto”, informa o site da ANEEL. No entanto, uma notícia veiculada no jornal RJ2 da TV Globo informa que no Rio de Janeiro, 250.000 clientes da Light podem receber a TSEE, porém não fizeram o pedido. Isso se deve ao fato de que apesar de existirem algumas iniciativas para promover a justiça energética, a escassez de conhecimento sobre direitos ainda é um obstáculo entre a população de baixa renda para ter acesso à TSEE, dentre outros direitos.
A acessibilidade no fornecimento de energia elétrica de qualidade é um dos muitos desafios nas vidas de quem mora na favela. A questão é preocupante por se tratar de quem sempre é ignorado, e nunca foi priorizado. As autoridades devem exercer suas responsabilidades, criando mais projetos de políticas afirmativas, voltadas para temáticas socioeconômicas e que dialoguem, ouçam e compreendam as reais necessidades e realidades de quem vive nesses territórios.
Em uma sociedade mais justa e em consonância com os anseios de um novo século, os governantes deveriam estar atentos à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU—que traz um plano com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável “para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, dentro dos limites do planeta”—e no que diz respeito à justiça e segurança energética esta atenção deveria estar voltada para o Objetivo 7: “energia acessível e limpa”, o que significaria expandir a infraestrutura, modernizando ou adaptando a tecnologia para o fornecimento de serviços de energia modernos e sustentáveis para todos, inclusive nas favelas onde esta é uma questão precária e desafiadora mesmo em um período tão moderno e tecnológico.
“Eu acredito que a utilização de energia solar, através da implantação de placas solares nas casas da favela, poderá ser muito benéfica… [seria bom] oferecer palestras para os moradores sobre a conscientização do uso adequado dos eletrodomésticos, e assegurar o acesso à energia elétrica de qualidade para pessoas de baixa renda.” – Luciana Pereira, moradora do Salgueiro
A vida nunca foi fácil para quem sobrevive diante dos riscos que se têm em ser pobre, preto e favelado, nesse mundo das desigualdades e preconceito. O que nos resta é batalhar para atravessar as fronteiras que impedem a gente de sonhar com um futuro, onde todos possam ter os seus direitos à energia acessível e limpa realizados.
*Antônia e João são nomes fictícios usados nesse relato para resguardar a identidade dos moradores que vivem no Complexo do Salgueiro.
Sobre o autor: Gabriel dos Santos Pereira Lima, 20 anos, morador do Complexo do Salgueiro em São Gonçalo-RJ é graduando em ciência ambiental, na UFF. Gabriel acredita que através da educação, podemos encontrar caminhos para transformações de vidas.
Sobre o artista: Rodrigo Binarts, 38 anos, é artista plástico e músico percussionista nascido e criado em Olavo Bilac, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Rodrigo atua com trabalhos de grafite e percussão na ONG Terra dos Homens e C.E. Guadalajara, onde é coordenador do núcleo de cultura.
Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.