Feirinha da Pavuna, Patrimônio da População Negra do Rio de Janeiro [PODCAST]

Solidariedade e Sociabilidade São Características do Coração da Pavuna

Arte original por Natalia S. Flores
Arte original por Natalia S. Flores

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Enquanto tomo um café, ouço no fundo um samba e o canto dos pássaros que passeiam todas as manhãs pelas palmeiras que arejam meu quintal. Não fosse a pandemia, com certeza essa semana eu já teria frequentado algumas vezes, um dos pontos mais movimentados do bairro: a Feirinha da Pavuna. De um lado, feirantes e suas barracas de legumes, frutas e verduras. Do outro, um pouco de tudo o que é necessário em um lar.

Logo ali, bem próximo à feirinha, fica o Grêmio Recreativo Quilombo Acari, fundado na segunda metade da década de 1970 por compositores como Wilson Moreira, Paulinho da Viola, Candeia e Nei Lopes, na tentativa de romper com as grandes escolas de samba que estavam em uma crescente comercialização. Ancestralidade e identidade negras territorializadas.

O Contexto Local

No entorno da feira livre há muitas favelas, de onde vêm muitos de seus frequentadores, dentre elas os Complexos da Pedreira, do Chapadão, de Barros Filho e o de Acari. A Pavuna ocupa um lugar de destaque no imaginário carioca, em parte construído pela história oral da cultura popular negra, como no funk Endereço dos Bailes, mas também pela narrativa midiática da pobreza e da violência. É um bairro culturalmente e numericamente negro: 62,07% da Pavuna é negra, seja no asfalto (57,07%) ou na favela (68,71%), de acordo com dados levantados a partir do censo de 2010 por pesquisadores da UFRJ:

Pavuna Brancos Negros Outros Total
36,94 62,07 0,99 100
Asfalto 41,94 57,17 0,89 100
Favela 30,17 68,71 1,12 100

Composição racial da PavunaA feirinha me traz pessoalmente as mais diversas memórias da infância e da juventude em um dos bairros com o menor Índice de Desenvolvimento Social da capital carioca, de 0,790. Este baixo desempenho, devido a políticas públicas ineficientes para a região, traz consequências diferentes para os moradores de acordo com raça e classe.

A interseccionalidade das desigualdades entre pavunenses não é um fenômeno isolado do bairro. A cidade do Rio de Janeiro evidencia a mesma tendência histórica. Há diferenças entre negros e brancos quanto a postos de trabalho disponíveis, à empregabilidade, à renda e ao acesso à educação. De acordo com dados do Censo 2010, enquanto no Rio de Janeiro 61,16% dos trabalhadores empregados formalmente completaram o ensino médio, na Pavuna, o número é de apenas 50%. Níveis de escolaridade menores resultam em salários menores e possibilidades de acesso mais limitadas. Logo, partindo-se ainda dos dados do Censo 2010, dispostos desta vez, no gráfico abaixo, é possível afirmar que o bairro da Pavuna, majoritariamente negro, tem moradores com níveis de educação mais baixos que a média da cidade, assim limitando a empregabilidade dos pavunenses e forçando a média da renda na região também para baixo da média da cidade do Rio.

O racismo estrutural junto à falta de acesso à educação, e educação de baixa qualidade de forma geral, funcionam como pilar central da reprodução da desigualdade racial. São condições convenientes para a manutenção de si mesmas, elas se auto reproduzem, se auto mantêm. É como se o concreto de uma viga de um prédio se auto preservasse, eliminando a necessidade de constante manutenção. É, provavelmente, por ser tão desigual que o bairro carrega em sua história a luta e a resistência cotidiana, na busca diária pela sobrevivência.

Pavuna é um bairro de trabalhadores negros que, desde sempre, lutam por sua sobrevivência e por direitos. Na foto uma visita do presidente Dutra a Pavuna, na década de 1950.O bairro também enfrenta altos índices de violência urbana, outro produto do abandono histórico que também impacta desproporcionalmente pavunenses negros, pobres e das favelas do bairro. Em 2017, organizações como Fogo Cruzado, Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) levantaram, a partir de dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), que a região da grande Pavuna—e bairros do entorno—é a mais violenta da cidade do Rio de Janeiro. Com muita frequência acontece violência armada, com forte participação do Estado.

Feirinha da Pavuna: Patrimônio Cultural

Contudo, apesar da narrativa midiática do medo, a tradicional Feirinha da Pavuna continua sendo uma imagem clássica do subúrbio carioca. Lá se vende de tudo um pouco. A diversidade é característica central das 298 barracas do mercado. Elas funcionam praticamente todos os dias da semana, entre oito horas da manhã e oito horas da noite. Segundo o feirante Fabio de Souza, “este horário de funcionamento é um pouco mais expandido em relação a outras feiras da cidade graças ao direito de assentamento concedido à localidade pela prefeitura”. 

É difícil encontrar algum suburbano que nunca tenha ouvido falar desse mercado popular, por conta de sua importância cultural e histórica. Entre um trago na bebida, um jogo, um encontro, uma barraca e uma venda, é possível ver e ouvir o que a Pavuna tem. O comércio de rua local tem, aproximadamente, 50 anos de existência e se estende até a calçada da cidade vizinha de São João de Meriti. O limite entre o município da Baixada Fluminense e o bairro carioca é o rio que deu origem ao nome do bairro: o Rio Pavuna.

Pavuna tem sua origem na língua Tupi e significa “lugar de trevas” ou “lagoa escura, que não define o imaginário popular sobre o bairro. Marca maior é uma composição de Jovelina Pérola Negra, o samba Feirinha da Pavuna (Confusão de Legumes), composto após Jovelina ter presenciado uma briga na feira, enquanto passava pela localidade na década de 1980.

Jovelina fez história no samba, ficando conhecida por seu repertório musical e por sua voz marcante. Jovelina foi uma das poucas sambistas e compositoras a ganhar reconhecimento em um meio ainda tão masculino. A saudosa cantora deixou um enorme legado artístico para o bairro, mesmo sendo moradora do município vizinho de Belford Roxo.

Jovelina Pérola Negra

A Feirinha da Pavuna foi declarada patrimônio cultural imaterial da cidade em 2014, através da Lei N º 5.787/2014. Orgulho de muitos trabalhadores locais, que diariamente sustentam suas famílias a partir de suas vendas, a feira só teve esse reconhecimento histórico após uma forte campanha nas redes sociais mobilizada a partir da Arena Carioca Jovelina Pérola Negra, aparelho cultural popular e público mantido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, na Pavuna. Tomba-se a luta de trabalhadores e moradores da Pavuna.

Arena Jovelina Pérola Negra, toda reformada referência de produção cultural no subúrbio carioca. Fotos Marcos de Paula/Prefeitura do Rio

Não apenas como um local de compras, mas de muita sociabilidade, moradores diariamente frequentam o comércio, confraternizam, compram e criam laços na feira e em bares da localidade; negócios nascidos dos laços de solidariedade de uma população majoritariamente negra e migrante.

Outro espaço bastante frequentado na região é o Beco da Teresa, sobre o Rio Pavuna. O beco é bastante conhecido pela venda de alimentos típicos do nordeste e por frequentadores que se encontram para socializar, beber e comer pratos nordestinos. Entre uma barraca e outra, ao som de um forró, os mais antigos encontram-se frequentemente para uma conversa. 

O Coração da Pavuna por uma Frequentadora, um Trabalhador e a Associação dos Comerciantes Informais

Placa turística da Feirinha da Pavuna colocada pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Foto do Google Street View

A frequentadora Zenaide Feitosa, 64 anos, é moradora e comerciante no Parque Colúmbia, um bairro vizinho. Ela diz frequentar o espaço desde o ano de 1984, quando começou a morar na região. Atualmente, sua ida à feira ficou bastante reduzida por conta dos cuidados em relação ao coronavírus, por pertencer ao grupo de risco devido à idade. No entanto, Zenaide afirma que, mensalmente, quando tira alguns dias para pagar suas contas no banco, ela passa na feira e realiza algumas compras. 

Zenaide fala com bastante entusiasmo sobre sua relação com a feira, das lembranças das comidas a granel que comprava, de um parque infantil onde suas filhas brincavam quando pequenas. Segundo a cliente, quando não se encontra o que se quer em uma barraca, é quase certo de se encontrar no feirante vizinho, destacando a variedade de produtos vendidos.

Já Fábio de Souza, 41 anos, conta sua história enquanto trabalhador da Feirinha da Pavuna. Filho de camelô, passou a trabalhar aos sete anos como ajudante de lanterneiro, para trazer renda para casa. Fábio afirma já ter trabalhado em diversas regiões da cidade, mas nunca ter ficado parado. Já fez um pouco de tudo ao longo da vida para sustentar sua família. Fábio foi vendedor de maçã do amor, de doces, de produtos em sinais de trânsito e durante o carnaval. Depois foi camelô com seu pai na Rua dos Romeiros, na Penha, e também trabalhou no transporte público vendendo mercadorias. Fábio conta que teve uma pequena padaria e uma locadora na Pavuna, mas que precisou vendê-las por conta do alto índice de assaltos e alta generalizada de preços, o impedindo de manter suas lojas abertas.

Fábio de Souza é feirante na Feirinha da Pavuna, de onde tira todo seu sustento e de seus familiares. Foto de Fábio de Souza

Gosto pela arte da venda junto à necessidade de renda fizeram com que Fábio não desistisse do seu próprio negócio e montasse sua primeira banca na Feirinha da Pavuna em 2011. Com R$300 que pegou emprestado, Fábio começou uma pequena barraca de frutas. Ele conseguiu expandi-la depois de algum retorno financeiro. Hoje, com bastante orgulho, ele narra a importância de seu trabalho para empregar familiares, entre eles seu pai, sua esposa e seu sogro.

Fábio diz que tem clientes que vêm de Botafogo, Tijuca, Campo Grande, Cabuçu e até mesmo de Niterói. Eles fazem questão de comprar na Pavuna porque o preço é bem mais em conta. “Eles pedem para reforçar a bolsa porque eles estão vindo de longe”. Para ele, a feira é “o coração da Pavuna, de uma importância não só econômica, mas também social, porque [veja só] há quanto tempo estamos ali, fazendo de tudo para regularizar o mercado, mantendo o preço da mercadoria mesmo quando às vezes sobe demais. Baixamos nossa margem, mas mantemos o mesmo preço… o óleo… [e outras] coisas duplicaram de valor e nós continuamos com o sacolão a R$1,99. E não é porque nós estamos pagando mais barato não! É porque estamos mantendo o preço. Vamos ao mercado, levantamos de madrugada, rodamos várias horas no Ceasa e brigamos por preços para poder manter o melhor para o morador da Pavuna e dos bairros vizinhos”.

Cátia Santana, 47 anos, feirante, ocupa atualmente a vice-presidência da Associação dos Comerciantes Informais da Pavuna (A.C.I.P.), instituição que busca ordenar o comércio e luta por políticas públicas para os trabalhadores do mercado popular a céu aberto. Ela também fala da ausência do poder público: “Muitas coisas precisam ser feitas para nós, trabalhadores informais, pois não temos nenhum tipo de assistência, estamos abandonados pelo poder público… eles só vêm aqui fazer apreensões de mercadorias e barracas. Precisamos de parcerias de trabalho com o poder público… tentamos ordenar a Feirinha da Pavuna, mas não temos suporte. Assim junto com os diretores da A.C.I.P. tentamos dar tranquilidade aos trabalhadores informais”.

Ela lembra da relação de gerações de sua família com a feira: “comecei trabalhar na Feira da Pavuna com nove anos de idade, com minha mãe. Graças a Deus e à Feira da Pavuna minha mãe me criou, eu criei meu filho e ele cria os dele”.

É possível encontrar nas falas de Cátia e Fábio, trabalhadores da Feirinha da Pavuna—ambos feirantes, trabalhadores que se articulam para assegurar a permanência da feira, melhorias e dignidade—uma forte ligação social e política com o território, suas corporeidades e narrativas. Ao longo de gerações, solidariedades e lutas territorializadas no espaço suburbano dão origem à Feirinha da Pavuna, patrimônio da população negra do Rio de Janeiro.

Sobre a autora: Ingra Maciel, moradora de Acari, tem 28 anos e é formada em História pela UFRJ, pós-graduada em ensino de História da África, pelo Colégio Pedro II e auxiliar de pesquisa do Medialab da UFRJ. Na graduação desenvolveu sua pesquisa acerca da criminalização do funk carioca e o seu processo de resistência, e atualmente vem estudando o funk carioca a partir da perspectiva pedagógica.

Sobre a artista: Natalia de Souza Flores é cria da Zona Norte e integrante das Brabas Crew. Formada em Design Gráfico pela Unigranrio em 2017, trabalha como designer desde 2015. Lançou a revista em quadrinhos coletiva ‘Tá no Gibi’, em 2017 na Bienal do Livro. Sua temática principal é afro usando elementos cyberpunk, wica e indígena.

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