Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio e sobre o coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
A população brasileira vivencia uma recessão histórica, exacerbada pela crise sanitária do coronavírus. Segundo dados divulgados pelo IBGE, a taxa de desemprego chega a quase 15%. A incerteza de um salário regular, a diminuída também no trabalho informal e o baixo valor ou ausência do auxílio emergencial aumentam a pressão sobre os trabalhadores que precisam garantir o sustento financeiro para si e seus familiares.
Dentre as dificuldades geradas pela pandemia e pela necessidade do isolamento social está o aumento no preço do gás de cozinha. Para entendermos como ocorreu esse acréscimo, voltaremos em abril de 2019, quando o ministro da economia Paulo Guedes, afirmou em entrevista que o valor do gás reduziria pela metade em dois anos. Na ocasião o preço médio do botijão era de R$69,42. Dois anos depois, o botijão de gás chega a mais R$100 em algumas capitais, e recentemente, no dia 14 de junho, o gás de cozinha teve mais um aumento de quase 6%.
Mudança na gestão da Petrobras, preço internacional do barril de petróleo e variação do dólar são as explicações para a alta na precificação do gás. Antony Devalle, diretor do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro, explica que “mesmo o Brasil sendo um grande produtor de petróleo, tendo capacidade instalada para produzir muitos derivados e para produzir basicamente em reais, a política do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) favorece os importadores de derivados [com o preço em dólar] e a privatização do sistema Petrobras, com destaque para a privatização das refinarias. Como consequência, o encarecimento do botijão de gás pesa no bolso do pobre e muitas famílias estão tendo que improvisar com alternativas como lenha e querosene, de forma bastante arriscada. O Brasil, mesmo com dimensões continentais, é um país sobretudo rodoviário. O diesel mais caro significa comida mais cara e, portanto, mais fome.”
Mobilizações Nacionais para o Acesso ao Gás de Cozinha
Esse quadro levou a Federação Única dos Petroleiros (FUP) e seus sindicatos a realizarem ações, onde ofertaram botijões de gás de cozinha por menos da metade do valor médio que vem sendo cobrado em todo o país no escopo da campanha “Combustível a Preço Justo“, em parceria com a Central de Movimentos Populares (CMP) e outras organizações locais. As mobilizações ocorreram no dia 29 de abril, em 11 cidades.
No Rio de Janeiro a campanha “Combustível a Preço Justo” promoveu uma ação com a venda de botijões de gás por R$40,00, no Quilombo da Gamboa, na Região Portuária, área da cidade que carrega um simbolismo ancestral. Foram vendidos cerca de 180 botijões de gás e, respectivamente, 180 famílias da região foram atendidas.
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De acordo com a FUP, “o principal objetivo da campanha ‘Combustíveis a Preço Justo’ é alertar a população sobre como a política adotada pela Petrobrás em outubro de 2016, baseada no Preço de Paridade de Importação (PPI), vem afetando não apenas os preços dos combustíveis, mas também causando um efeito cascata de elevação de preços em outros setores da economia, como os de alimentos e transportes”.
Neste cenário, quem têm suas vidas seriamente impactadas são pessoas periféricas como Regina Célia Batista, 44 anos, moradora do Morro da Aparecida, em São João de Meriti na Baixada Fluminense. Regina, que sente o impacto da pandemia em suas diversas esferas, diz: “Eu acredito que o governo realmente precisa intervir para baixar esses preços. Estamos vivendo de forma indigna pois não podemos comer direito e agora não temos condições de comprar um gás. Aqui em São João de Meriti o gás custa em torno de R$82,00 à vista. Se for no carro tem acréscimo. Eu conheço uma pessoa que mora em Bangu, que teve que fazer comida no fogão à lenha pois não tinha dinheiro para comprar no dia. Muitas pessoas não estão conseguindo comer com o valor do auxílio emergencial. Eu não tive a sorte de receber, não entrei na lista. Existem muitas famílias que hoje não têm pão e leite para alimentar seus filhos. Eu, como mãe solo, há sete meses sem trabalhar e sem renda, vivo de bicos. Está difícil pra tanta gente brasileira. Nosso país está vivendo uma epidemia de pobreza também”.
Mobilização Comunitária pelo Gás no Morro da Providência
No início da pandemia, em março de 2020, Cosme Felippsen—ativista, guia de turismo comunitário, morador do Morro da Providência e criador do tour histórico Rolé dos Favelados—perdeu uma grande parte da sua renda, devido o cancelamento das atividades de turismo. Com a queda brusca de renda, ele ficou sem recursos para comprar gás para sua família e teve que contar com a solidariedade de uma amiga.
Em março de 2020, Cosme e seus vizinhos criaram o Comitê de Crise SOS Providência. Ele conta que, na ocasião, nos grupos de WhatsApp da comunidade os integrantes do comitê ouviam com muita frequência a reclamação da falta de gás, e receberam relatos que algumas famílias estavam utilizando carvão para fazer fogo e cozinhar seus alimentos. Foi a partir desta escuta e da sua experiência, que Cosme detectou que as ações de doações de cestas básicas e itens de higiene não eram suficientes, pois também era necessário gás para cozinhar os alimentos. Com base nesta realidade, o SOS Providência criou a campanha “Um Gás para as Mulheres da Providência”.
A primeira ação da campanha foi organizada pelo Rolé dos Favelados, em agosto de 2020, com o objetivo de entregar R$100,00 para 100 mulheres da Providência. Através da divulgação e cadastramento, via redes sociais e WhatsApp, a ação conseguiu arrecadar R$6.879,03 e atender a 66 mulheres, 77% delas negras ou pardas e somente 1% com ensino superior.
No dia da entrega do recurso para o gás, a campanha “Um Gás para as Mulheres da Providência” trouxe mais um gás para as mulheres contempladas, na forma de palestras com mulheres negras expoentes. As convidadas foram: a arquiteta e urbanista, vereadora Tainá de Paula; a artista plástica Dayse Gomis; e Rute Sales uma das fundadoras do Movimento Moleque. No encontro também estiveram presentes várias integrantes do movimento Mães de Manguinhos.
Em novembro de 2020, ocorreu a segunda ação da campanha “Um Gás para as Mulheres da Providência”, desta vez organizada em ampla parceria com grupos integrantes do SOS Providência, sendo eles o Rolé dos Favelados, a Casa Amarela, o Rio Memória Ação e a Galeria da Providência. A ação atendeu 100 mulheres. O encontro, para a entrega do apoio de R$100,00 para o gás, contou com palestras das convidadas: Deize Carvalho, fundadora do Núcleo de Mães Vítima Pavão-Pavãozinho e Cantagalo; Jessica Castro, jongueira e poetisa; Isadora Gran, poetisa e Viviane Azevedo, assistente social e pastora. Também estiveram presentes várias integrantes do Mães de Manguinhos.
Hugo Oliveira, que mora na Providência desde criança, é coordenador do SOS Providência e diz que ver tantas famílias beneficiadas fez ele sentir alegria e indignação: “Alegria por poder fortalecer algumas das mulheres que nos viram crescer e que são referências diretas e indiretas para nós, por ser mães, tias e avós dos nossos amigos; e a oportunidade de devolver para o nosso território um pouco do carinho e cuidado que recebemos durante nossa criação. [Isso] é a manutenção do senso comunitário. A indignação é ver um governo incompetente em atender a classe mais necessitada e ver fazerem muito pouco, para não dizer nada, em favor do cuidado e proteção de parte da população que sustenta a base da estrutura social. Temos que ser nós, novamente, a ter que enfrentar operação policial e exposição ao vírus para não deixarmos os nossos passarem necessidades”.
Uma das beneficiadas da campanha “Um Gás para as Mulheres da Providência”, Silmara dos Santos, 33 anos, mãe de dois adolescentes, conta como está sendo superar a crise financeira com a ajuda de mobilizadores da comunidade: “Com essa crise de desempregos estamos com muitas dificuldades para arrumar um trabalho. As dificuldades aparecem a cada dia, não somente a falta do gás, mas também temos muitas outras preocupações. Foi muito gratificante poder ter essa grande ajuda do Rolé dos Favelados. Eu consegui fazer o alimento para os meus filhos. Já para nós mulheres da Providência também foi maravilhoso participar daquela linda palestra sobre as mulheres. Desde já agradeço à ajuda”.
Para a conscientização a campanha “Um Gás para as Mulheres da Providência” criou o panfleto, abaixo, com dicas para economia de gás.
Atualmente, o SOS Providência está iniciando uma campanha mais ampla, que visa atuar em quatro pilares: território, saúde, educação e soluções. Conheça e apoie a campanha aqui.
Romantização da Pobreza e a Naturalização da Precariedade
A chegada da pandemia trouxe à luz problemas existentes como o sucateamento da saúde pública, e reativou problemas históricos como a fome. Mesmo com o risco iminente de ser contaminado pela Covid-19, muitos brasileiros são submetidos a transportes públicos lotados, poucos equipamentos de segurança individual e principalmente a desumanização do indivíduo. Um estudo feito em 2019 e publicado pelo IBGE mostrou que 75,2% entre os mais pobres são negros. Logo, podemos deduzir que a maioria das pessoas mais prejudicadas pelo aumento do gás de cozinha são pessoas pretas.
Com mais de 8.000 seguidores no Instagram, Joyce Salvador, moradora do bairro Olavo Bilac, em Duque de Caxias, mãe solo de duas crianças, recebe diariamente mensagens de mães de favelas contando a realidade que estão vivendo nestes tempos de pandemia:
“Eu moro na casa do meu avô, minha renda vem de publicidade que faço, mas o que me segura é o auxílio emergencial de R$375,00. Vejo muitas pessoas próximas falando como é possível economizar o gás com a compra de fogão elétrico para assar ou esquentar comida, o que acaba tendo um custo na conta de luz. A mídia em geral só mostra o que quer sobre favela e pobreza. Esses meios de comunicação colocam os mais desfavorecidos como coitadinhos. A gente se vira como pode porque não temos ajuda de nenhum governante.
Todos os dias chegam recados nas minhas redes [sociais] de mães pretas cheias de incertezas do que vão colocar na mesa no dia seguinte. Então, você acha mesmo que uma mãe gostaria de acordar na madrugada para preparar o almoço a base de fogão a lenha que só ficaria pronto às 12h, com madeira nociva para os pulmões? A resposta é clara e óbvia: não. Queremos um mínimo de conforto para nossa família.
No período de isolamento social contei com a ajuda de cestas básicas dos coletivos da Baixada Fluminense como o Movimenta Caxias e não tenho vergonha de pegar [as cestas]. Eu só tenho dois filhos e para mulheres que têm cinco crianças ou mais, com certeza uma cesta de alimento por mês não é o suficiente. Precisamos parar de romantizar o que não é nada romântico.”
Roberto Gomes Iberu, coordenador estadual da CMP-RJ, morador do Santo Cristo—que atuou na campanha “Combustível a Preço Justo”, em abril no Quilombo da Gamboa—também se manifestou quanto à romantização da luta pela sobrevivência da população economicamente vulnerável da cidade, que leva a naturalização da precariedade:
“Nesse período de grande caos no mundo, principalmente nos países chamados de ‘periféricos’, observamos o quanto é cruel, quando responsabilizamos os próprios sujeitos de construir seu próprio destino. Sabemos que não é bem assim dentro de uma sociedade capitalista, e porque não dizer também atravessada pelo racismo estrutural. Não há qualquer dignidade ao vermos famílias inteiras nas ruas das grandes cidades, catando papelão, para garantir suas refeições diárias. Muitos [indivíduos] acham ‘lindo’ ao ver tal cena nas ruas, mas não reconhecem que o Estado não cumpre seu papel.
Mesmo dentro do sistema capitalista, minimamente, os menos favorecidos precisam ter dinheiro, para ter a mínima dignidade que seja. Quando muitas vezes ouvimos que grana não traz felicidade, certamente quem reproduz tal falácia, nunca viveu em um estado de miserabilidade, mas se regozijam, quando dizem que os pobres têm que aceitar suas vidas do jeito que a mesma é. Com a chegada da pandemia, tais romantizações se tornaram mais evidentes. Mídias diversas fazem questão de evidenciar em suas reportagens que é ‘lindo’ ver famílias inteiras vivendo em situação de rua, cozinhando sua própria alimentação nas esquinas e debaixo de marquises. Seria mesmo [isso] algo natural?”
Aspectos Energéticos e Sociais do Gás Domiciliar
O gás de cozinha, gás liquefeito de petróleo (GLP), é resultado do refinamento do petróleo cru e do gás do subsolo, e é composto basicamente de propano e butano. Por sua origem ser do petróleo, sua fonte de energia não renovável. O gás possui grande aplicabilidade com alto poder calorífico, e quando comparado a outras fontes advindas do petróleo, tem um menor impacto ambiental. Um estudo feito pelo Sindigás mostrou que mais de 95% da população do país utilizava o GLP em 2011, sendo mais comum nas residências do que água e luz elétrica. Só com esse dado é possível perceber a importância desse tipo de energia.
Alessandra Gonçalves, 23 anos, graduanda em Química Industrial pela UFRRJ, moradora de Seropédica, nos explica como os estudos sobre o gás domiciliar vão além das tradicionais matérias física e química:
“Acredito que é possível lidar com essa questão de maneira interdisciplinar, visto que o aumento do gás de cozinha pode conversar com a história, geografia e até sociologia. Dessa forma seria possível avaliar os impactos desse evento de uma forma geral, de maneira a entender a realidade na sua totalidade, visualizando todas as influências e pormenores e, por fim, analisar as consequências geradas. Além disso, acredito que não só o valor do gás e seus motivos deveriam ser aplicados ao ensino, mas diversas outras questões como o estudo da constituição, noções financeiras, questões de sustentabilidade, sexualidade, inflação e muitos outros assuntos.
Nos tornamos adultos que sabem a fórmula de Bhaskara, mas não aprendemos sobre nossos direitos e deveres civis, nem sobre a função de um deputado. Adultos sem pensamento crítico, que por consequência aceitam as condições impostas pelo governo. Segundo a constituição, todo poder emana do povo. Então, como é possível um povo tão sofrido ainda estar no mapa da fome? Nossos representantes estão ganhando e roubando aos montes e, infelizmente, o mais interessante para eles é que continuamos um povo sem visão holística de nosso país, usamos antolhos invisíveis.”
Sobre a autora: Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.
Sobre o colaborador: Cosme Felippsen é morador do Morro da Providência, guia de turismo, criador do Rolé dos Favelados—um guiamento que já levou mais de 7.000 pessoas a conhecer a história do Morro da Providência—, e coordenador do comitê de crise SOS Providência. Atualmente, o SOS Providência está iniciando uma campanha mais ampla, que visa atuar em quatro pilares: território, saúde, educação e soluções. Conheça e apoie a campanha aqui.
Sobre a artista: Anna Paula Rodrigues é designer e ilustradora freelancer, formada em desenho industrial pela UFRJ. Anna Paula—que atua com a questão antirracista quanto a estética e beleza—trabalha como designer gráfica em diversas ONGs do Rio de Janeiro.
Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.