A morte de 28 pessoas no Jacarezinho, favela na Zona Norte, foi nomeada pelas forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro como operação policial, mas resultou em uma chacina. O evento ocorrido no dia 6 de maio se tornou a maior chacina da história da capital fluminense. Diversas denúncias sobre execuções sumárias, tortura, invasão de casas e até confisco de celulares estão sendo investigadas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro e pela Polícia Civil.
A chacina ocorrida não pode ser denominada operação porque não objetivou responsabilizar criminalmente os suspeitos e, por ventura, encaminhá-los para averiguação com vida. Foi uma incursão que resultou, somente, na aplicação de uma pena de execução sumária. Os detidos que se renderam foram executados sem oferecer ameaça ou resistência. Entre os mortos, apenas quatro eram alvos da investigação que motivou a operação. (editado)
A dinâmica ocorrida na favela do Jacarezinho se repete, também, em outros territórios. Nos últimos cinco anos, a Baixada Fluminense contabilizou, ao menos, 12 chacinas em oito cidades. Os dados são de um levantamento realizado pelo Fórum Grita Baixada, por meio de relatos noticiados pela imprensa. O massacre ocorrido na comunidade da Zona Norte tem uma vítima a menos se comparado a maior chacina já registrada no Estado.
Em março de 2005, 29 pessoas foram assassinadas em uma única noite em diferentes localidades de Nova Iguaçu e Queimados. As investigações demonstraram que as vítimas foram mortas aleatoriamente, por conta da insatisfação de um grupo de policiais com a troca de comando no Batalhão de Duque de Caxias. As investigações e eventuais punições na corporação teriam sido o estopim da matança.
Chacina é o termo usado para a ocorrência de múltiplos assassinatos em uma mesma ação, em um mesmo local, mas ela não tem uma tipificação específica no Código Penal. Por isso, a Polícia Civil não a contabiliza como tal, mas como homicídio doloso (quando há intenção de matar) e, por consequência, o Instituto de Segurança Pública (ISP) segue este padrão na sistematização dos dados oficiais. A inexistência do termo “chacina” como indicador—da mesma forma que os desaparecimentos forçados são tipificados numa terminologia mais generalista como “pessoas desaparecidas”—tem como efeito imediato a invisibilidade dos casos, além de dificultar a produção de políticas públicas que mirem a redução desses crimes.
Na ausência de um indicador preciso, as chacinas são incluídas em estatísticas pouco qualificatórias como “homicídio doloso” e crimes violentos letais intencionais (que agrega homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e latrocínio). Isso reflete mais uma redundância estatística do que, de fato, o cenário real desses crimes no Estado do Rio. De acordo com o ISP, as 13 cidades que compõem a região da Baixada Fluminense registraram, juntas, 965 homicídios dolosos em 2020. E até o primeiro trimestre de 2021, haviam sido registrados 264. Já os crimes violentos intencionais na região somaram 1.002 casos em 2020 e mantêm tendência de estabilidade nos três primeiros meses de 2021, com 274 ocorrências.
Há, no entanto, um limbo entre os dados oficiais e o cenário real. É preciso considerar que os registros têm origem na denúncia de moradores que, por vezes, vivem nos territórios periféricos onde os crimes ocorreram. Para oficializar qualquer tipo de denúncia nesses lugares é necessário adentrar, por exemplo, delegacias que funcionam em áreas dominadas por milícias, o que significa se expor a um risco de morte, conforme explicou o sociólogo José Claudio Souza Alves—autor do livro Dos Barões ao Extermínio, uma história de violência na Baixada Fluminense, e um estudioso sobre o comportamento das milícias há mais de 25 anos—em uma Audiência Pública Homicídios e Desaparecimentos Forçados na Baixada Fluminense em 2019.
Baixada Fluminense, uma Dimensão Geopolítica Propícia para a Produção de Morte
A Baixada Fluminense é uma região que concentra 13 cidades, onde vivem quase 4 milhões de pessoas, segundo o último censo populacional, realizado em 2010, pelo IBGE. Nesse conjunto de territórios, as chacinas e os desaparecimentos forçados tiveram sua gênese ainda com os esquadrões da morte, no período da ditadura civil militar (1964-1985), e continuaram a se desdobrar entre os inúmeros assassinatos nos anos 1980 e 1990, organizados por grupos de extermínio.
Na década de 2000, embora não seja consenso entre os especialistas em segurança pública, o advento da política de segurança das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na capital, gerou um espraiamento da violência por todo o Estado e o fortalecimento de grupos de milicianos. Ao todo, foram instaladas 38 UPPs, das quais apenas uma estava em área dominada pela milícia, na comunidade do Batan, Zona Oeste da capital.
Em comum, tanto as chacinas quanto os desaparecimentos forçados vêm funcionando a partir da articulação de três elementos: o aparato policial que compõem os grupos e que assassina; o financiamento por grupos econômicos; e o suporte do Estado, por meio de agentes externos às forças de segurança, que atuam como legisladores, gestores públicos e integrantes do judiciário e garantem o funcionamento do grupo, e se valem de seus serviços.
Na segunda metade da década de 2010, a Baixada Fluminense já se estabelece como um celeiro de grupos milicianos, criados na região ou que tenham ramificações oriundas de outros pontos do Estado, como as zonas Norte e Oeste do município do Rio. Em pouco mais de dez anos, seis grupos paramilitares, oficialmente conhecidos na região, ultrapassaram a área dominada por facções do tráfico. Os grupos milicianos se expandiram três vezes mais rápido do que as facções criadas por civis, que se estabeleceram no comércio varejista de drogas no estado do Rio nos últimos 35 anos.
Fórum Grita Baixada Mapeou 12 Chacinas nos Últimos Cinco Anos
Abaixo listamos as 12 chacinas mapeadas pelo Fórum Grita Baixada, um movimento social, constituído por uma rede de organizações e pessoas da sociedade civil articuladas em prol de iniciativas voltadas aos direitos humanos, justiça e a uma política de segurança pública cidadã para a Baixada Fluminense:
Chacina em Guapimirim, 3 de abril de 2016. Quatro pessoas foram mortas próximo à Praça Sapê, em Belford Roxo. Ravel Plácido de Paula Simões, de 19 anos, foi preso suspeito de cometer o crime. Ele já tinha registros por lesão corporal culposa, causada por um acidente de carro, por ameaça e por incendiar uma casa, que seria de uma das vítimas da chacina. As motivações do crime não foram esclarecidas.
Chacina em Paracambi, 31 de março de 2017. Quatro pessoas foram mortas às margens do Rio Lages. As vítimas seriam usuárias de drogas e teriam sido mortas por um grupo de extermínio que atua na região. O mesmo grupo seria, também, responsável por matar outro quatro usuários de drogas numa casa abandonada no bairro Chacrinha em Japeri, em setembro de 2012.
Chacina em Nova Iguaçu, 9 de abril de 2018. Quatro pessoas foram mortas no bairro da Luz, em Nova Iguaçu. Segundo testemunhas, as vítimas praticavam pequenos furtos em um dos acessos à Via Light, rodovia que corta a região. Os responsáveis pelo crime não foram identificados.
Chacina em Duque de Caxias, 28 de abril de 2018. Cinco pessoas foram mortas a tiros na saída de um baile funk na Praça Governador Paulo Torres, no bairro Vila Operária, em Duque de Caxias. Testemunhas contaram que homens encapuzados passaram atirando em direção às vítimas, duas mulheres e três homens, que estavam em um trailer.
Chacina em Nova Iguaçu, 13 de abril de 2019. Nove pessoas foram mortas no intervalo de poucas horas em diferentes bairros de Nova Iguaçu. A maior parte das vítimas foi atingida na cabeça. Três corpos de homem e o de uma mulher foram encontrados na Estrada de Adrianópolis; mais quatro na Estrada Carlos Sampaio e outro na Estrada da Limeira. Oito das vítimas eram do Morro São Simão, onde facções rivais disputavam o controle do tráfico de drogas na comunidade.
Chacinas em Miguel Couto, Nova Iguaçu. Em, 28 de setembro de 2019, três homens foram encontrados mortos na garagem de uma empresa de ônibus, no bairro Miguel Couto. Pouco mais de um mês depois, em 1º de novembro, outros quatro jovens, entre 20 e 23 anos, foram assassinados também a tiros. O crime ocorreu a dois quilômetros do local da primeira chacina. No dia 23 de abril de 2020, outras três pessoas foram executadas. Segundo testemunhas, homens passaram de carro atirando contra as vítimas. A suspeita é que todos os crimes tenham sido cometidos por uma mesma milícia.
Chacina em Belford Roxo, 29 de junho de 2019. Tiros efetuados contra frequentadores de um bar, no bairro Vila Daguimar, deixou quatro mortos e 13 feridos. O alvo seria um miliciano da região.
Chacina em Nova Iguaçu, 14 de outubro de 2020. Uma operação da Polícia Civil para tentar prender milicianos que estariam reunidos na região conhecida como KM 32, terminou com cinco suspeitos mortos. De acordo com a Secretaria de Polícia Civil, a ação foi uma das iniciativas da força-tarefa criada pela corporação para combater as milícias na Baixada Fluminense.
Chacina em Itaguaí, 16 de outubro de 2020. A polícia matou 12 suspeitos em um confronto com a milícia. O grupo estava em um comboio que foi interceptado na Rodovia Rio-Santos, na altura de Itaguaí, por uma força-tarefa criada para garantir a segurança nas eleições no estado do Rio. Entre os mortos está o ex-PM Carlos Eduardo Benevides Gomes, o Cabo Benê, um dos homens mais procurados do estado, apontado pela polícia como um dos chefes da milícia em Itaguaí na época.
Chacina em Mesquita, 3 de maio de 2021. Um ataque em um bar deixou cinco pessoas mortas e outras três feridas na Travessa Marina, no bairro Jacutinga, em Mesquita. Segundo testemunhas, os responsáveis passaram em um carro atirando com pistolas e fuzis contra as vítimas.
Matéria escrita por Fabio Leon e produzida em parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio é jornalista e ativista de direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é uma coalização de organizações e pessoas da sociedade civil articuladas em prol de iniciativas voltadas aos direitos humanos e a segurança pública, tendo na Baixada Fluminense seu olhar e seu território de ação.