A Sustentabilidade da Comunicação Comunitária Impressa nas Favelas

Fala Roça, Maré de Notícias, Voz das Comunidades, O Cidadão, A Voz da Favela São Entre Os Impressos Críticos Para Nossa Democracia

Jornais comunitários das favelas do Rio de Janeiro. Foto: Michel Silva

Click Here for English

Do fechamento de gráficas até a falta de rentabilidade de mídias em favelas, comunicadores comunitários vivem o desafio de manter o jornalismo popular nas favelas cariocas vivo há 40 anos.

O jornal O Favelão—A Voz dos Favelados, fundado pela Pastoral de Favelas e lideranças comunitárias, em função da luta contra a remoção do Morro do Vidigal, em 1978de acordo com dados levantados pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), segue em atividade. Mas, apesar de supostamente ainda circular de forma irregular, o projeto no formato original no qual moradores de favelas são os protagonistas da voz política da favela sucumbiu em 1986.

O desafio do jornal de abarcar todas as favelas do Rio de Janeiro era ousado, principalmente, quando pensamos que o jornal almejava representar todos os moradores de favela, ser “a voz dos favelados”.  No entanto, o fim do projeto de jornalismo no formato impresso do jornal está ligado diretamente ao término da viabilidade financeira, garantida à época pela Fundação Ford. Produzir um jornal impresso é caro. É necessário, para além do trabalho e da remuneração justa dos comunicadores comunitários, arcar com os custos de diagramação, fotografia, impressão em gráfica e distribuição.

A sustentabilidade da comunicação comunitária e popular, especialmente em formato impresso, segue sendo uma missão travada por jornalistas e comunicadores comunitários até hoje nas favelas. O Fala Roça, por exemplo, é um jornal comunitário que nasceu através de um grupo de jovens da Rocinha que participaram de atividades criativas da Agência de Redes Para Juventude. Teve sua primeira versão impressa lançada em maio de 2013.

Os irmãos Michel e Michele Silva entregando exemplares do Fala Roça na Rocinha. Foto: Kita Pedroza

O jornal impresso foi pensado como forma de penetrar offline na população da favela. O nome do jornal é uma homenagem à população de origem nordestina do morro. Com o avanço da tecnologia, o Fala Roça foi se remodelando e criou um site. Passou a produzir reportagens também para a versão digital e vídeos, mas não abre mão de circular em versão impressa. No entanto, a produção e distribuição do jornal impresso é irregular devido à dificuldade de sustentabilidade financeira.

Com uma equipe fixa de cinco pessoas, o jornal conseguiu ter uma sede em 2021 e ministrou um curso de comunicação popular para formação de novos comunicadores populares. Porém, a versão impressa do jornal, com oito páginas coloridas, não circula na favela desde outubro do ano passado.

Michele Silva distribuindo o jornal de beco em beco da favela da Rocinha. Foto: Kita Pedroza“Tivemos que cortar custos, mas estamos correndo atrás para voltar. Acreditamos que em 2022, em pleno ano eleitoral, não podemos… [deixar de] ter mais um meio de informação na pista. Vivemos uma onda de desinformação. O impresso chega além da internet, dentro da casa das pessoas como uma fonte confiável e que mantém credibilidade ao longo dos anos”, destacou Michele Silva, diretora do Fala Roça.

Ela completa:

“É imprescindível que existam veículos locais, com a visão de comunicadores criados ali para informar e contrapor o que a imprensa hegemônica fala, e cobrir o que ela deixa de fora”.

A tiragem do Fala Roça era de 10.000 exemplares.

O custo de impressão de um jornal impresso varia de acordo com o valor cobrado pela gráfica, mas sofreu aumento principalmente porque “o preço do papel é atrelado ao dólar”, explicou Michel Silva, editor do Fala Roça. A alta do dólar causou o fechamento de diversas gráficas no Rio de Janeiro, o que elevou ainda mais os custos de impressão do jornal.

Segundo Michel, “não é fácil rentabilizar um jornal feito na favela, do ponto de vista publicitário, porque as marcas e o comércio local não entendem o alcance que esse tipo de mídia tem na favela”, seja para sustentar os custos da produção em formato online ou conseguir sustentabilidade financeira para arcar com os custos do formato impresso. No entanto, de acordo com ele, a circulação de jornais impressos nas favelas “ainda tem um poder de representatividade e diálogo com a favela muito importantes.”

Michel Silva do Fala Roça

O Fala Roça tem uma campanha permanente de apoio ao jornal com assinaturas no valor de R$10 até R$80, com recompensas exclusivas para cada valor de apoio—um modelo de gestão e sustentabilidade que vem crescendo entre iniciativas de mídia independente. Ainda, como estratégia de sustentabilidade, o veículo é inscrito para participar de projetos de financiamento por editais e vende espaços publicitários.

Entretanto, a renda gerada não suporta o custo para produção do jornal impresso. E agora, toda a operação da mídia comunitária, inclusive a versão online, corre o risco de ser paralisada no segundo semestre de 2022, por falta de recursos para pagar a equipe fixa com cinco pessoas.

O Fala Roça é atualmente uma das principais mídias comunitárias da Rocinha e atuou para combater a fome e salvar vidas de moradores da comunidade durante a pandemia do coronavírus, distribuindo kits de higiene e cestas básicas. O jornal também foi o responsável pelo furo de reportagem que denunciou a instalação de um tomógrafo no estacionamento da Igreja Universal do Reino de Deus, congregação religiosa do ex-prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, em 2020.

Sendo uma associação de comunicação comunitária, o Fala Roça ainda é uma voz cultural da favela sendo o responsável pelo Mapa Cultural da Rocinha. “Se para o Google, Microsoft e os mapas oficiais da prefeitura somos meros borrões verdes que sinalizam floresta, o mapeamento local mostra muitas histórias de vidas”, afirmou o editorial do jornal. Até junho de 2022, será lançada a versão atualizada do mapeamento cultural.

Jornais Impressos nas Favelas

De acordo com Dani Moura, editora do jornal Maré de Notícias, o jornal impresso nas favelas “tem muita relevância no território porque atende a um público que não tem acesso à internet”. Ela contou que a versão impressa do Maré de Notícias, por exemplo, é a “única fonte de informação crítica de qualidade para a população idosa no conjunto de favelas”. O Maré de Notícias fará 13 anos em 2022.

O jornal teve o nome escolhido pelos mareenses e tem uma equipe mista, formada por moradores do Complexo da Maré e também tecedores da Redes da Maré. O jornal é uma iniciativa da organização, que produz conhecimento, elabora projetos e ações para garantir políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos moradores das 16 favelas do complexo há mais de 20 anos.

Por uma única vez, durante sete meses, o Maré de Notícias não foi impresso por falta de verba. Na pandemia, a produção e circulação do jornal impresso também foi suspensa por três meses em 2020 e por dois meses em 2021, porém, foi uma decisão editorial devido ao alto grau de contágio de coronavírus. O jornal tem uma tiragem de 50.000 exemplares, de acordo com a editora, e conta com uma versão digital disponível para download.

Dani Moura, editora do jornal, em apresentação do projeto do Maré de Notícias.

“Hoje temos vários canais de sustentabilidade, entramos em diversos editais, temos campanhas ativas de doações coletivas, além de parceiros diversos onde trocamos conteúdo, informações e também fonte de investimento. Nosso desafio hoje é cobrir as 16 favelas com apuração técnica e eficiente com o tamanho e a verba que temos. Mas temos certeza que chegaremos lá por meio do núcleo de formação que estamos pensando em implementar ainda este ano.” — Dani Moura

A distribuição começa todo primeiro dia útil do mês e conta com doze distribuidores. É durante a distribuição que acontece um processo popular de construção de pautas. É entregando o jornal de beco em beco, de viela em viela e nas ruas principais das favelas que a equipe recebe diversas sugestões de pautas. O jornal impresso nas favelas é um processo vivo e em movimento.

Distribuidores escutam as sugestões de moradores e levam para as reuniões com a equipe no Maré de Notícias

René Silva, fundador do jornal impresso e online mais famoso das favelas do Rio de Janeiro, o Voz das Comunidades, destaca que o impresso cumpre um papel diferente do online e precisa seguir existindo. “Muitas pessoas dentro das favelas ainda se informam por veículos da grande mídia que, infelizmente, são muito tendenciosos”. Para ele, a circulação do impresso dentro das favelas significa a democratização do acesso à informação, uma vez que “há muitos lugares hoje nas favelas que ainda não têm sinal de internet com Wi-Fi e de operadoras de telefonia”.

O jornal começou em 2005 com uma tiragem de 100 exemplares que René entregava de porta em porta. Hoje, o jornal tem 15.000 exemplares de tiragem e é distribuído gratuitamente, nas localidades do Complexo do Alemão e da Penha, ambos na Zona Norte do Rio de Janeiro, além do Morro do Vidigal—localidade da segunda sede do jornal.

A versão impressa do jornal deixou de circular diversas vezes seja por falta de verba ou por decisão editorial, como ocorreu entre 2011 e 2014—quando, com a ocupação das favelas da região, foi tomada a decisão de apostar no site e redes sociais como canal de comunicação sobre a ocupação. Essa decisão em meio à ocupação foi tomada para aproveitar a visibilidade midiática gerada para o Complexo do Alemão. Focou-se no online com o intuito de denunciar as violações e as ausências de políticas públicas nas favelas do Complexo de maneira mais efetiva, com maior repercussão.

Arte do Voz das Comunidades para as redes sociais, informando que o jornal impresso está mais uma vez em circulação. Redes sociais

No dia a dia, publicações no Twitter do Voz das Comunidades causavam mais efeito para as reivindicações de direitos, respondendo de forma mais rápida aos problemas da comunidade pela capacidade das redes sociais em expor publicamente agentes públicos como prefeitos, governadores e secretários.

Em 2015, a versão impressa do jornal voltou a circular com suporte financeiro da venda de anúncios locais para comerciantes e para grandes marcas como a Coca-Cola. Porém, os recursos acabaram e o jornal impresso parou de circular novamente por falta de verba. Entre idas e vindas, o jornal impresso Voz das Comunidades completou 16 anos em agosto de 2021.

Nesta nova versão do jornal, que possui 15 páginas, os jornalistas comunitários levantam informações sobre os principais assuntos de relevância para os moradores. Desde temas relacionados à saúde, como a importância da vacinação; à educação e segurança; à falta de serviços públicos, como a falta de água; e política, até entretenimento e esportes:

“Voltamos com o Voz das Comunidades impresso para que mais pessoas tenham acesso. É preciso levar os debates de maneira geral, políticos, de gênero e raça para dentro das favelas e para todos os locais das favelas. Trabalhamos esses assuntos dentro do Voz das Comunidades impresso, além dos problemas sociais do nosso cotidiano, do nosso dia a dia, dentro da favela.” — René Silva

Melissa Cannabrava, coordenadora de jornalismo, e René Silva, fundador do jornal. Reprodução Twitter

O Voz das Comunidades segue sendo um dos principais canais de notícias sobre as favelas do Rio de Janeiro. Com versão impressa, site de notícias e agora também com um aplicativo de notícias para smartphones, publica todos os dias reportagens do cotidiano das favelas.

Para Gizele Martins, doutoranda em Comunicação e Cultura, da UFRJ, comunicadora popular há 20 anos na Maré, falar de mídia comunitária é pensar na formação e na qualidade de informação para moradores de favelas, e também de trabalho e sobrevivência.

“Quando a gente fala de informações a gente está falando de trabalho, que precisa ser contínuo para além daquela verba que você recebe de um determinado projeto. Porque geralmente projeto social tem um início, meio, fim e a comunicação comunitária não. Ela precisa ser contínua, e não irregular, como os grandes meios de comunicação e jornais que estão aí há décadas.” — Gizele Martins

Gizele MartinsGizele atuou por 15 anos no jornal O Cidadão—Mídia Comunitária, responsável por construir o termo “mareense” como identidade dos moradores do Conjunto de Favelas da Maré. Para Gizele, a falta de recursos públicos para as mídias comunitárias é uma principal causa da ausência dessas mídias nos formatos de TV, rádio e jornal impresso, para além do online. “A gente não tem verbas públicas para o financiamento. A gente não tem equipamento, não tem apoio de verba para pagar uma passagem para o comunicador circular. Falta tudo”.

Além disso, Gizele diz que “são anos e anos de eleições e nunca vejo da boca das pessoas que estão aí se candidatando, um projeto de lei que traga a garantia de sustentabilidade da mídia comunitária das favelas para o direito à voz de nós, da favela”.

De acordo com o Mapa da Comunicação Comunitária, plataforma de georeferenciamento produzida pelo DataLabe—primeiro laboratório de dados na favela—que reúne veículos de comunicação comunitária do Brasil, no Rio de Janeiro existem 40 veículos comunitários.

A ferramenta é colaborativa e qualquer iniciativa que se encaixe nos critérios estabelecidos pode se inscrever e participar, listando ações voltadas para a comunicação popular nos territórios da periferia. O levantamento original foi realizado em 2016.

O  ponto de partida para o mapeamento do DataLabe foi a base de dados publicada em 2014 pelo projeto Direito à Comunicação e Justiça Racial, realizado pelo Observatório de Favelas, que mapeou 118 veículos alternativos, comunitários e populares na região metropolitana do Rio de Janeiro entre os anos de 2013 e 2014.

Uma das iniciativas destacadas no mapa é o jornal impresso A Voz da Favela, projeto realizado pela Agência de Notícias das Favelas (ANF) há mais de dez anos. Com tiragem de 100.000 exemplares por mês, a iniciativa busca a democratização da informação a partir da liberdade de expressão e direitos humanos. Sua distribuição é realizada por uma equipe que faz o trabalho de divulgar e entregar os jornais nos mais diversos espaços das cidades.

Frente Parlamentar Pela Democratização da Comunicação

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) lançou oficialmente, no dia 22 de junho de 2021, a Frente Parlamentar Pela Democratização da Comunicação. Criada por requerimento no dia 3 de março, a Frente conta com oito deputados estaduais: Waldeck Carneiro, Carlos Minc, Eliomar CoelhoFlávio Serafini, Renata Souza, Mônica Francisco, Dani Monteiro, e Enfermeira Rejane.

Os movimentos sociais organizados do setor, com reconhecida atuação política, lutam pela efetiva aplicação das leis estaduais 6892/2014, que garante 1% das verbas públicas estaduais para fomento de rádios e TVs comunitárias; a 4849/2006, de criação do Conselho Estadual de Comunicação; a 9251/2020, da Tecnologia 5G no Rio de Janeiro; e a do Conselho Estadual de Proteção de Dados; além da aprovação dos PLs 2248/2013, que regulamenta a publicidade oficial do governo; e 1639/2016, que regula o horário dos jogos na televisão.

O objetivo da Frente é construir, em conjunto com movimentos, organizações e coletivos do setor, estratégias para viabilizar melhorias nesta área de atuação profissional e o fortalecimento da comunicação popular, alternativa, comunitária e de favela.

“A FPDC atua pela valorização das mídias comunitárias e alternativas que fazem um trabalho importante, mas têm poucas oportunidades de angariar parcelas de recursos que governos e órgãos públicos destinam à publicidade institucional, importantes para sustentar este setor”, explicou o deputado Waldeck Carneiro.

É necessário e urgente garantir essas mídias que não só reportam mas que constroem a realidade em seus territórios. A função social desses meios comunitários deveria ser publicamente reconhecida como patrimônio imaterial da cidade. Cada vez mais fica evidente o potencial transformador da mídia comunitária.


Apoie nossos esforços para fornecer apoio estratégico às favelas do Rio, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatchdoe aqui.