Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas.
Demorou muito até que Heloísa Helena Costa Berto conseguisse se sentir em casa em Guaratiba. O problema não era o local, mas sim o motivo da mudança que a levou para o bairro na extrema Zona Oeste do Rio. Ela é uma das centenas de pessoas removidas da Vila Autódromo no período pré-olímpico. Do lado do local onde existia a comunidade, removida em 2016, foi construído o Parque Olímpico. Hoje, não ha nada no local da antiga casa de Heloísa Helena. Além de sua residência, a casa era também de seu orixá, recebendo diversas pessoas de fé de matriz africana, pois Heloisa Helena é mãe de santo candomblecista, conhecida como Luizinha de Nanã.
Com muito esforço, Luizinha construiu ao lado de sua nova residência em Guaratiba uma nova casa para seu orixá. Já são seis anos vivendo em Guaratiba, mas as coisas ainda não se ajeitaram completamente: “não tenho as coisas direito, minha fase ainda é de construção”, conta. Separados por uma rua estreita de terra batida, em frente ao portão de entrada da sua casa, está o Canal do Jardim Piaí, que recebe esgoto e muito lixo da região. Desde que se mudou, a poluição do córrego que deságua na Praia da Brisa, área de mangue, é uma grande angústia para Luizinha.
“O mangue é o elemento principal de minha mãe Nanã, meu orixá. Eu me sentia devedora, espiritualmente, de proteger o canal. Me ofendia muito as pessoas chamarem o canal de valão. Valão é um lugar sujo, uma vala. Daí, eu comecei a pensar: eu tenho que limpar o canal, eu preciso limpar o canal”, lembra Luizinha.
Para realizar a tarefa, no entanto, era necessário conseguir apoio. “Quando eu falava para as pessoas sobre limpar o canal, as pessoas nem me davam crédito. Limpar o canal é uma coisa enorme. Quem vai querer limpar o canal? Qual projeto vai fazer isso?”, questionavam à Luizinha.
Integrante de diversas redes como a Rede Favela Sustentável*, ela não desistiu e passou a adotar uma estratégia diferente para conseguir apoio. “Toda live que tinha sobre meio ambiente, eu entrava, pedia a fala brevemente e contava do meu desespero em relação ao canal. Era assim mesmo, passando a canequinha”, brinca ela. Em um dos eventos que participou estavam presentes representantes do Movimento Baía Viva e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pessoas que trabalhavam diretamente com ações para recuperação das águas. Eles abraçaram a ideia de Luizinha e passaram a apoiá-la na missão de despoluir o canal.
As movimentações em torno da ideia foram crescendo e somando pessoas de diferentes áreas. Do coletivo surgiu a ideia de criar um jardim de ervas sagradas que, além do plantio das ervas, tinha o objetivo de usar as plantas para ajudar a melhorar a qualidade da água do Canal do Jardim Piaí. De um lado do córrego é uma área de proteção ambiental, mas do outro lado é uma rua estreita de terra batida. Desse lado, na margem do canal, a terra estava visivelmente seca e apresentava até rachaduras. Por isso, recuperar o solo era o primeiro passo para construir o jardim.
Luizinha queria fazer tudo dentro da lei. Escreveu um projeto e apresentou à Prefeitura:
“Quem veio de uma expulsão sabe o valor que as pessoas dão à terra. As pessoas matam por causa da terra. Então, eu fui até a prefeitura, porque aquela área [do jardim] é uma área pública. Fui até lá e pedi a adoção daquele espaço, no trecho em frente a minha casa e do meu vizinho. Apresentei o projeto, eles viram tudo e me concederam o espaço em adoção por dois anos. Depois disso, começamos a nos organizar para plantar.”
Depois que os papéis oficializando a permissão do cuidado pelo espaço chegaram, foi marcado o primeiro mutirão, que aconteceu no dia 5 de março. “A casa ficou cheia”, Luizinha lembra. “O Pericres Muniz é biólogo e veio de Cachoeiras de Macacu para ensinar como a gente tinha que fazer, porque estava naquele período de sol muito forte aqui no Rio. Ele ensinou como a gente podia amenizar a intensidade do sol na terra, para começar a fazer uma recuperação do solo que estava muito seco”. O grupo distribuiu materiais orgânicos como galhos, troncos e folhas secas nos canteiros e por alguns dias Luizinha regou diariamente a área. “Todo dia eu ia lá e ficava molhando. Até que um dia eu cheguei e encontrei tudo incendiado… Incendiaram tudo!”
Racismo Religioso
Na área onde seria construído o jardim de ervas sagradas havia duas faixas grandes onde constavam informações sobre o projeto e os responsáveis. O incêndio nos canteiros não foi acidental. Para Luizinha trata-se de um ataque direcionado em mais um episódio de racismo religioso. Essa não foi a primeira violência sofrida por ela motivada por preconceito religioso. Insultos à sua prática religiosa, comentários ofensivos ao candomblé e até o não reconhecimento de seu nome social, Luizinha de Nanã, são algumas das violências vivenciadas no cotidiano. “Tem pessoas aqui que são preconceituosas, que já verbalizaram isso pra mim de uma forma bem clara. Mas eu estava relevando, nunca pensei que chegaria a um ponto desse”, disse Luizinha.
De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), apenas esse ano, até o dia 16 de março, foram recebidas 111 denúncias de violação à liberdade de crença. Isso significa que o país registra, oficialmente, em média, três denúncias de intolerância religiosa a cada dois dias. Em 2021, foram 581 denúncias, com o maior número (138) registradas no Estado do Rio em relação a outros estados. As denúncias, no entanto, evidenciam um caráter racial nos ataques religiosos no país, onde a maior parte das vítimas são pessoas e comunidades vinculadas às religiões de matriz africana. Portanto, a violação à liberdade de crença no Brasil tem bastante relação com o racismo religioso.
O jardim de ervas sagradas não era apenas um projeto religioso, como conta Luizinha. Era, sobretudo, uma iniciativa de educação e conservação ambiental. “Existem muitas maneiras naturais de você não tirar, mas você diminuir a poluição de um canal, de um lago, de uma lagoa… Existem muitas formas de você fazer isso. A gente estava vendo plantas que a gente pudesse colocar ali na beirada do canal para fazer esses experimentos”, explicou Luizinha. O uso de plantas para a limpeza da água é uma técnica comum. Nessas experiências as plantas funcionam como filtros, capturando, tratando poluentes e devolvendo uma água mais limpa.
A intenção era também influenciar outras pessoas e chamar atenção para a necessidade de cuidar das áreas naturais da região. “A ideia é que fosse uma ação de estímulo para que outras pessoas pudessem fazer ações semelhantes”, conta Luizinha sobre o jardim. “Imagina se outras pessoas adotassem e transformassem apenas a frente da sua casa, que adotassem essa área e fossem cuidando, plantando, limpando… Como poderia ser?”.
Não houve tempo suficiente para refletir e apresentar todas essas ideias. O primeiro mutirão para criação dos canteiros aconteceu em 5 de março e o incêndio seis dias depois, em 11 de março. Um novo mutirão estava marcado para o dia 17, quando as pessoas se reuniram mais uma vez para fazer a plantação na área e inaugurar o jardim das ervas sagradas. O evento não foi cancelado, mas aconteceu em um clima bem diferente do que todos imaginavam.
“Nós fizemos o evento particular, só para a gente dentro do barracão [terreiro]. Foi só para discutir quais as medidas e caminhos nós íamos tomar. A Adriana Sotero, da Fiocruz, veio e retirou uma amostra da água. Ela fez alguns desenhos de como o jardim poderia contribuir, qual a parte que poderia ser plantada e qual não poderia. Então, é um trabalho realmente de pessoas especialistas. Mas aí a gente ficou sem canteiro, ficamos numa situação chata, num clima um pouco hostil”, resume Luizinha.
A ideia de construir o jardim continua, porém em um novo lugar. A proposta é levar o projeto para dentro do terreno do barracão. O espaço estará aberto às pessoas e comunidades do entorno, visando um trabalho de educação ambiental. Porém, a limpeza e preservação do canal, por ora, é um sonho paralisado.
A Luta de Luizinha de Nanã
“Sem natureza não há candomblé”, afirmou Luizinha em uma postagem numa rede social. O candomblé é uma religião africana que existe há cerca de 12.000 anos, segundo ela, “do tempo em que só existia o homem e seus elementos naturais”. Os deuses sempre foram ligados e são associados até hoje a algum elemento da natureza. Ela exemplifica:
“De forma resumida, nós temos Iemanjá, que é a rainha do mar. Aí tem Oxum, que é das águas doces. Temos Iansã das chuvas e das tempestades. Nanã que é das terras e do mangue. Aí nós temos Xangô com os trovões. Temos Ossaim que é dono de todas as folhas e assim por diante… Justamente por nossos orixás, que são os nossos deuses, serem responsáveis por um elemento da natureza, a gente tem que ter um respeito muito grande a todos os elementos naturais, como a gente tem o respeito aos nossos orixás.”
O engajamento em torno das questões ambientais é apenas uma face do ativismo de Luizinha, reconhecida internacionalmente como defensora de direitos humanos. Ela integra o corpo de militantes da Front Line Defenders, organização de referência que atua na proteção de defensores de direitos humanos em todo o mundo. Além do trabalho ambiental, Luizinha atua para combater o preconceito e a discriminação contra negros, além de promover a liberdade religiosa e defender seus objetos sagrados.
Desde o processo de remoção na Vila Autódromo, que culminou com a sua saída da comunidade em 2016, ela passou a se envolver ainda mais na luta das populações negras e periféricas pelo direito à terra. Hoje atua em defesa dos quilombos e povos das regiões das Vargens (Grande e Pequena), de Jacarepaguá e da Baixada Fluminense através da Teia de Solidariedade Zona Oeste. Participa também da Rede Afroambiental, organização da qual será embaixadora na Rio+30. Essa conferência ambiental acontece neste ano de 2022 no Rio de Janeiro e reúne representantes de vários países para discutir o desenvolvimento sustentável das nações.