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Hoje, 5 de julho de 2022, faz um mês que desapareceram, no Vale do Javari, no estado do Amazonas, o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira.
Bruno Pereira era um funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) da mais alta grandeza. Seu conhecimento e forma de trabalho eram reconhecidos sobretudo pelos povos indígenas com os quais interagia. Em 2019, o servidor foi exonerado do cargo de chefia que ocupava no órgão por agir contra o garimpo ilegal na Amazônia. Na medida em que a atuação pela instituição tornava-se mais difícil, Bruno pediu licença de seu posto para melhor atender aos interesses dos povos indígenas. Tornou-se, então, assessor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), região situada no oeste do Amazonas, próximo às fronteiras com o Peru e Colômbia.
O jornalista Dom Phillips era um parceiro de trabalho do indigenista. Mais do que um jornalista contribuinte do veículo The Guardian, Dom escolheu o Brasil como sua casa. O jornalista se casou com a brasileira Alessandra Sampaio e vivia no país há cerca de 15 anos. O profissional costumava cobrir pautas relacionadas ao meio ambiente, tendo como principal foco o contexto da Amazônia e os povos da região. Ele escreveu dezenas de matérias sobre o bioma, sobre o avanço do desmatamento e das ilegalidades, tornando-se uma das principais vozes na cobertura internacional sobre a região amazônica.
O assassinato brutal de ambos não é um caso isolado. A perseguição a ambientalistas, jornalistas e ativistas sociais é um dado cada vez mais marcante em nossa sociedade. Segundo o levantamento da Global Witness, 20 pessoas perderam a vida no Brasil em 2020 em decorrência da luta pela terra e pelo meio ambiente. O país foi o 4º em número de mortes de ambientalistas e ativistas do direito à terra, atrás de Colômbia, México e Filipinas, respectivamente. Essa violência direcionada é uma das consequências da política em vigor, que esvazia órgãos públicos responsáveis pela proteção de reservas ambientais e pela vida dos povos da floresta. Reportar o que acontece, seja sob forma de denúncia, de luta ou de escrita, traz insegurança para ambientalistas, ativistas e comunicadores.
Lutar por Direitos: Um Crime com Pena de Morte
Por todo lado que se olhe, a situação de quem luta por direitos sociais e ambientais no Brasil é preocupante. A mesma coisa para quem tenta reverberar estas demandas enquanto comunicador. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, ao longo da última década, o país tornou-se o segundo mais mortal para jornalistas no continente americano. Aqueles que atuam nas cidades de pequeno e médio porte, que cobrem corrupção e política local, são os mais vulneráveis.
Os ataques à liberdade de imprensa no Brasil são monitorados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que publica um relatório anual. Em 2020, o levantamento realizado desde a década de 1990 bateu recorde com 428 registros. No relatório mais recente, com dados de 2021, novamente um recorde: 430 agressões a profissionais de imprensa. O centro-este do país aparece como a região mais violenta para jornalistas, com liderança do Distrito Federal, sede do Governo Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado.
Ser (midi)ativista no Brasil sempre foi uma tarefa difícil, mas vários estudos apontam que a ascensão do governo de Jair Bolsonaro tornou o contexto ainda mais acirrado. O Relatório Global de Expressão, organizado pela Artigo 19, aponta que o Brasil caiu 18 pontos no ranking de liberdade de expressão em apenas um ano. Essa queda é a mais expressiva já registrada no país nos últimos dez anos. Entre as 161 nações monitoradas, o Brasil ocupa a 94ª posição, ficando atrás de todos os países latino-americanos, exceto da Venezuela.
A entidade organizadora mencionou, ainda, que assim que assumiu o cargo em 2019, Bolsonaro apresentou dois projetos que poderiam minar, significativamente, a garantia de liberdade: o primeiro permitia controlar espaços cívicos e reduzir a liberdade de expressão; o segundo aumentava o número de funcionários públicos autorizados a classificar documentos e informações públicas como sigilosos por até 50 anos. Após forte pressão pública, ambos os projetos foram revogados, mas eles servem como exemplos claros do posicionamento do governo de Bolsonaro.
O mesmo relatório aponta também que, entre jornalistas, as mulheres foram os principais alvos de ataques. Em julho de 2020, a Artigo 19, junto a outras entidades, denunciou o governo na 44° sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Desde o início de seu mandato até aquele momento, Bolsonaro e seus ministros já haviam atacado profissionais de imprensa mulheres, por, pelo menos, 54 vezes. No geral, entre janeiro de 2019 e agosto de 2020, o presidente realizou 440 declarações ou agressões contra jornalistas ou comunicadores. Bolsonaro é o principal agressor de profissionais da imprensa, segundo o levantamento.
O relatório Vidas em Luta, organizado pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), é outro estudo que demonstra como o atual executivo do país aprofundou a criminalização e acentuou as violações contra ativistas sociais. Na área ambiental, isso se viu, por exemplo, na alteração da composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que reduziu a participação da sociedade civil e aumentou a presença de membros do governo.
Outras medidas controversas passaram a ser tomadas, como a discussão da PL 191/2020, que busca regulamentar o garimpo e a mineração em terras indígenas. Defendido publicamente por Bolsonaro, o projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados e será votado em regime de urgência. Em outra ação extremamente danosa, no dia 22 de abril de 2020, a Funai publicou a instrução normativa n°9, que libera para a compra, venda e ocupação todas as terras indígenas não homologadas. Isto impacta áreas que ainda estão em estudo, territórios delimitados pelo próprio órgão, terras cedidas pela União para povos indígenas, além de áreas de referência de índios isolados.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) publicou em abril deste ano o relatório Conflitos no Campo Brasil, que trouxe dados referentes ao período de 2021. O levantamento registrou mais de 1.760 conflitos no campo no país, a maior parte deles fruto da disputa por terra. O número de assassinatos no campo em 2021 foi 75% maior que em 2020, segundo o relatório. Ao todo 34 pessoas foram assassinadas no ano passado. Outro dado alarmante é o aumento de 1.100% no número de mortes decorrentes de conflitos, isto é, quando o motivo da morte não é o homicídio, mas sim um resultado indireto da violência perpetrada contra as populações do campo e da floresta.
As execuções de Dom Phillips e Bruno Pereira expressam tanto o cerceamento da liberdade de expressão como a perseguição a quem luta pelo meio ambiente. O jornalista participou de um encontro organizado pelo RioOnWatch em 2019, que reuniu comunicadores comunitários e correspondentes internacionais. Nas palavras de Theresa Williamson, diretora da Comunidades Catalisadoras (ComCat), Dom foi um dos jornalistas internacionais mais conscientes e sensíveis. “Se você for procurar as matérias que ele escreveu sobre as favelas e assuntos aliados, foram muitas matérias significativas, emblemáticas e bem feitas. Ele é uma pessoa que vai fazer muita falta nesse universo”, afirmou.
Riscos Impostos aos Comunicadores nas Favelas e Periferias do Rio
Muito mais do que exemplificar o que acontece em todo o país, o estado do Rio de Janeiro pode ser entendido como uma espécie de laboratório para o que tem acontecido. O chamado “Estado Miliciano” teve suas origens na Guanabara, tendo como marco recente o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018. O estudo Vidas em Luta aponta, também, outro episódio que marca 2018: a intervenção federal militar na gestão da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Rio de Janeiro.
Segundo o Observatório da Intervenção, houve pelo menos 206 casos de violações e violências, contabilizando um total de 1.375 mortes decorrentes da ação policial neste período.
Outro fator importante foi a chegada do Governador Wilson Witzel ao poder, em 2019. Logo no seu primeiro ano de mandato, os casos classificados como auto de resistência subiram 18%. A pauta da segurança pública é uma das que mais mobilizam os midiativistas. Denunciar os abusos policiais e das demais autoridades não é algo simples, sobretudo para quem vive nos territórios onde as violações são cometidas.
A jornalista Thaís Cavalcante possui uma longa trajetória como comunicadora popular. Cria do Complexo da Maré, na Zona Norte, ela já atuou em várias mídias comunitárias, como o Jornal O Cidadão, Maré de Notícias, Favela em Pauta e Voz das Comunidades. Para ela, as forças policiais e políticas são as principais opositoras daqueles que buscam dar a outra versão do cotidiano que vivem. “O que acontece são ameaças, a falta de resposta… A gente tem uma omissão das autoridades. Acho que esse é um ponto muito importante para avaliarmos, como a gente é invisibilizado, tanto o nosso veículo popular, quanto o nosso trabalho”, afirmou.
Para Thaís, a dificuldade de utilização da Lei de Acesso à Informação (LAI) é outra barreira que comunicadores populares encontram para exercerem suas funções. “É a liberdade que a gente tem para obter informações públicas. Os comunicadores populares sofrem de diversas formas, seja direta ou indiretamente”.
Ativistas que lutam contra o racismo religioso também estão sob ameaças. Heloisa Helena, conhecida como Luizinha de Nanã, é mãe de santo candomblecista. Ela mora em Guaratiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Recentemente, Luizinha passou por uma situação terrível, quando o jardim de ervas sagradas, que cultivava à margem do Canal do Jardim Piaí, foi incendiado.
O jardim de ervas não tinha finalidade exclusivamente religiosa. Tinha o objetivo de recuperar e preservar o córrego do Jardim Piaí, além de trabalhar a educação ambiental com os moradores do entorno. “Eu tenho lidado com a intolerância e com o racismo religioso há muitos anos, desde que eu era pequena. Antigamente eu não reconhecia e não sabia o que era o racismo, achava que todo mundo era lindo e maravilhoso. Quando você começa a ter ideia que aquilo que a outra pessoa está fazendo é para te ofender, porque existe dentro dela um sentimento de aversão à cor da sua pele, é muito triste”, afirma Luizinha.
A mãe de santo foi uma das pessoas atingidas pelo processo de remoção na Vila Autódromo, promovido pela Prefeitura do Rio no período pré-olímpico. Para ela, o racismo é o elemento comum entre as duas situações que viveu. Luizinha lembra que a “igreja católica branca” teve o direito de permanecer na Vila Autódromo, direito esse que foi negado à casa de orixá que mantinha no local. “De acordo com os donos de imobiliária, não se queria gente pobre e mal cheirosa na Barra da Tijuca. É assim que eles consideram a gente. Então, o poder público pensa assim. E se o poder público pensa assim, o que pensa o cidadão?”, comentou a yalorixá.
Recentemente, o governo estadual do Rio de Janeiro implementou o projeto “Cidade Integrada”, a última iniciativa no campo da segurança. A favela do Jacarezinho, Zona Norte da cidade, foi escolhida como piloto do programa. No entanto, ativistas e moradores locais denunciam desde o início a falta de informações detalhadas e a militarização da comunidade, ao invés de ações sociais.
Bruno Sousa é coordenador de comunicação do LabJaca, um laboratório de pesquisa, formação e produção de dados e narrativas sobre as favelas e periferias, localizado no Jacarezinho. Ele comenta que a chegada do Cidade Integrada mexeu muito com a dinâmica de trabalho do grupo e as estratégias de atuação precisaram ser revistas. “A gente tem evitado fazer gravações dentro do Jacarezinho. O audiovisual é uma das nossas pegadas. O morro está realmente ocupado, as saídas do Jacaré estão ocupadas, a gente têm vivido diversos casos de saques, furtos e todo o tipo de violação possível de direitos humanos dentro da comunidade. Como a gente está na linha de frente tem se preocupado muito”, afirmou Bruno.
No dia 11 de maio, a Polícia Civil derrubou um memorial que foi erguido em homenagem às vítimas da Chacina do Jacarezinho, que ocorreu em maio de 2021. Para Bruno, o ato foi uma forma de passar um recado para os grupos de ativistas da favela. A atuação das forças policiais dentro da comunidade tem limitado as ações de grupos como o LabJaca. Lideranças da favela precisaram entrar em programas de proteção por conta de denúncias que vinham fazendo, especialmente após a chacina. “O território está instável. A gente sabe que a questão do varejo não é uma coisa que se encerrou lá dentro, mesmo com o Cidade Integrada. Para além da falta de diálogo que a gente tem com as instituições policiais, e não da nossa parte, exatamente por parte das instituições”, comentou Bruno.
O Cenário na Baixada Fluminense
Se o cenário da capital já é desolador, em cidades da Baixada Fluminense ele é ainda mais complexo. O relatório Vidas em Luta revela que os índices de letalidade são mais altos na Baixada do que na cidade do Rio. O perfil mais comum das vítimas é de um jovem de até 24 anos, preto e pardo, baixo índice de escolaridade e do sexo masculino. Dos casos de autos de resistência que ocorrem no Estado, 30% acontecem na região. A Baixada Fluminense também é responsável por 60% dos casos de desaparecimento registrados no Rio de Janeiro.
Segundo o jornalista Fabio Leon, um dos articuladores do Fórum Grita Baixada, o local possui uma história de violência, com forte atuação de grupos de extermínio, publicamente legitimados pela narrativa de manutenção da ordem contra o crime. A lógica conservadora de que existem seres humanos “matáveis”, de certa forma, deu respaldo para que estes grupos tivessem legitimidade de agir. “Isso se dá principalmente em áreas onde se concentram pessoas pretas e pobres, que é a grande parte da formação da Baixada”, declarou.
O processo de militarização também tem se alastrado por toda a região, o que traz consequências para a atuação política de militantes e ativistas. Denunciar a violência policial requer uma estratégia cuidadosa. “Infelizmente, por uma questão de segurança, a gente só se cerca dos dados que são disponibilizados pelo Instituto de Segurança Pública. Nós produzimos os nossos boletins informativos baseados nessas estatísticas. Então, essa é uma forma que a gente encontrou de, pelo menos, questionar o que significam esses números”, afirmou Fabio.
Outra estratégia adotada pelo Fórum Grita Baixada foi a produção do documentário Nossos Mortos Têm Voz, produzido pelo Quiprocó Filmes e dirigido por Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, que traz o depoimento e o protagonismo de mães e familiares vítimas da violência de Estado da Baixada Fluminense.
No último período eleitoral, muitos promotores dos direitos humanos tiveram dificuldade de fazer campanha corpo a corpo. “Nós tivemos alguns defensores de direitos humanos que tentaram se candidatar nas eleições passadas. Nós recebemos muitos relatos de pessoas que faziam oposição às prefeituras bolsonaristas e acabavam recebendo ameaças”, contou Fabio.
O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos reuniu uma série de sugestões para o aprimoramento da política nacional que protege ativistas. Entre as ações sugeridas, destacam-se: o estabelecimento de acordos de cooperação técnica e protocolos entre o sistema de justiça e o sistema de segurança; a criação de uma rede de assistência e saúde; a finalização do processo demarcatório de terras indígenas e quilombolas; a identificação e responsabilização dos ameaçadores; o aumento de orçamento, destinado aos equipamentos de proteção e à desburocratização; o aprimoramento na metodologia de atendimento, com atenção às especificidades de cada defensor de direitos humanos atendido, bem como revisão do manual orientador do Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos; a atualização e aprovação de um marco legal para o programa.
Thaís Cavalcante acredita que o apoio de lideranças comunitárias, de organizações não governamentais e da sociedade civil é um caminho para a proteção de comunicadores populares: “Que a gente seja reconhecido pela imprensa oficial como profissionais da comunicação, não nos diminuir por onde a gente está ou pelo veículo que a gente está. E, principalmente, a questão política influencia diretamente. Acredito que se o Bolsonaro sair do poder, a gente vai conseguir ter um caminho para lutar pela democracia, pela democratização da comunicação”.
Bruno Sousa conheceu Dom Phillips quando trabalhou pelo jornal The Intercept Brasil. Ele lembra da generosidade do jornalista e do tratamento educado que recebeu do profissional, quando dava seus primeiros passos. Bruno deixa uma mensagem de solidariedade e lamenta pela situação que ativistas e comunicadores enfrentam no país. “É bem lamentável tudo isso que tem acontecido, não só com ele, mas com todos os jornalistas e defensores de direitos humanos aqui no Brasil, onde a gente muitas vezes teme falar o que sabe, o que viu ou o que pensa, exatamente porque têm forças que são maiores que a gente. E o Brasil, não que já não fosse, mas tem se tornado cada vez mais um estado miliciano, que deixa impune crimes como esse. Então, toda a minha solidariedade ao Dom e ao Bruno e a toda família deles também”.
Euro Mascarenhas Filho é jornalista, colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação, comunicador popular, e autor do programa de podcast Antena Aberta.