Na quinta-feira, 20 de junho, mais de 300 mil cariocas marcharam pela Avenida Presidente Vargas, cantando pela melhoria da educação, saúde, transportes, pelo fim da corrupção, remoções e gastos excessivos em mega-eventos. O ato constituiu uma poderosa demanda coletiva por um Brasil melhor e foi um momento histórico bonito de orgulho cívico no Rio de Janeiro.
Mas em poucas horas, como um manifestante postou no Facebook: “Acabou o amor. Aqui virou o inferno”.
Para dezenas de milhares de manifestantes pacíficos, as horas após o protesto foram de fato uma provação infernal. Presos no Centro da cidade, já que as ruas e as estações de metrô foram fechadas, os cidadãos que tinham vindo para exercer o seu direito democrático, constitucionalmente protegido de protestar encontraram-se indiscriminadamente alvejados por balas de borrachas e por bombas de gás lacrimogêneo pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em uma operação repressiva que se espalhou por toda a região central da cidade.
A “loucura”, como muitas testemunhas eufemisticamente chamaram essas horas, começou quando a multidão chegou ao destino da marcha, a Prefeitura. Entre 19:00 e 19:30h um conflito eclodiu entre a polícia e um pequeno grupo de manifestantes em busca de conflito, que estavam atirando pedras contra a polícia, destruindo, vandalizando a propriedade pública, e ateando fogo na rua. A polícia respondeu disparando bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas de borracha e granadas de efeito moral em direção à multidão. Até aí tem sido bem documentado pela grande mídia. Mas a experiência chocante da maioria dos manifestantes, pacíficos, e de inocentes transeuntes, em frente a repressão policial, só foi amplamente documentada e discutida nas redes sociais.
“Fui vítima de tortura e terrorismo da polícia hoje, junto com centenas ou milhares de pessoas. A sensação de tomar gás lacrimogêneo na cara, entre pessoas que não sabiam o que estava acontecendo e choravam e corriam e gritavam ‘eu vou morrer!’ Só pode ser descrita como tortura e terrorismo”, escreveu um manifestante. Outro postou: “O que nós vimos hoje foi um ato planejado de terrorismo perante todos nós. Fomos todos ENCURRALADOS por uma polícia extremamente despreparada e fascista. As ruas do centro estavam tomadas por homens vestidos de preto”. E um outro cidadão escreveu: “Não acredito em tudo que vi e ouvi hj! Cercaram vários manifestantes, encurralaram mesmo… Jogaram bomba de gás lacrimogênio até dentro da Pizzaria Guanabara, na Lapa, mesmo com famílias comendo e crianças… gás de pimenta dentro de ônibus”. Outro simplesmente postou, “Voltamos no tempo, ditadura! Chocada com tudo isto!”
Cerca de 400 manifestantes refugiaram-se no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, onde foram cercados pela polícia, ficando incapazes de saírem. O grupo fugia da ação da polícia que tinha tomado o Centro e em seguida ficaram aterrorizados e com medo de sair do prédio. Representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deram suporte para o grupo poder, finalmente, sair. O Vice Presidente da OAB do Rio de Janeiro, Ronaldo Cramer, disse: “A situação no IFCS foi triste, estudantes ficaram sitiados, com medo de sair, porque estavam com receio de serem perseguidos”.
No dia seguinte, o Instituto divulgou um comunicado que dizia: “Deve ser motivo de preocupação para todos que o Estado venha a adotar uma postura agressiva e intolerante, tratando cidadãos como inimigos e perseguindo-os pelas ruas, como foi observado e experimentado por muitos naquela longa e dura noite”.
Um dos relatos mais chocantes de violência policial nas horas após o protesto veio de funcionários e pacientes do Hospital Municipal Souza Aguiar, onde os feridos no conflito, pós-manifestação, estavam sendo tratados. A polícia disparou balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo dentro do hospital, onde foi relatado que o gás podia ser sentido até no sétimo andar. Um médico do hospital postou: Meia dúzia de manifestantes pedindo pra polícia não atirar porque ali era um HOSPITAL, e, mesmo assim, o despreparado policial se posiciona, mira e atira duas bombas!!!!!!!! O que é isso meu Deus???!!!!!!! As pessoas ali estão DOENTES!!!!!”
Depoimentos, fotos e vídeos nas redes sociais dão o senso da escala da operação, com relatórios das atividades repressivas e violentas da polícia desde o norte na Praça da Bandeira até Laranjeiras na Zona Sul, o que durou até as primeiras horas da madrugada da sexta. Mais de 7.500 policiais armados foram destacados utilizando tanques, cavalos e cães e disparando mais de 2.000 bombas de gás lacrimogêneo, muitas ultrapassadas. Relatórios e vídeos mostram que a iluminação pública foi desligada no Centro por períodos prolongados. Todas as cinco estações centrais do metrô foram fechadas deixando as pessoas desesperadas para voltarem para casa sem recurso e na linha de fogo, e a certa altura as imagens das câmeras da Avenida Presidente Vargas transmitidas pelo Centro de Operações Rio–novo centro de alta tecnologia que coordena 30 orgãos de monitoramento–foram substituídas com imagens do trânsito na Barra da Tijuca. Houve até um relatório no Facebook de alguém que ouviu um repórter da Globo, falando no início da tarde em cobrir o protesto naquela noite, e ele dizia: “a previsão é confusão só estourar por volta das 21:30… então tá tranquilo”.
O fato de que pessoas inocentes e manifestantes não-violentos foram, deliberadamente, atacados por horas, no escuro, e que tenha sido negado o acesso ao transporte público para irem embora, levanta sérias questões sobre a estratégia de gestão de multidões do Rio e compromete seriamente a credibilidade das alegações da polícia de que “a Polícia Militar tem a finalidade de manter um princípio básico da Democracia: a convivência pacífica”.
O policiamento de uma manifestação em massa é um desafio difícil para qualquer órgão de segurança, e as operações freqüentemente geram críticas. Uma pesquisa feita por agências de polícia reconhece este desafio e fornece insights sobre como a situação poderia ser melhor gerenciada. A Associação Internacional de Chefes de Polícia (IACP) e o Fórum de Pesquisa da Polícia Executiva (PERF), em seu relatório Gestão Megaeventos: Melhores Práticas em Campo enfatiza uma abordagem relacional, uma comunicação ativa com os manifestantes e o uso de equipamentos anti-motim como o último recurso. As conclusões são reiteradas no relatório, do ano passado, do Escritório Federal de Investigação (FBI) dos EUA, Gestão de Multidão: Adotando um Novo Paradigma, que enfatiza o diálogo construtivo como a primária opção tática, dizendo: “A comunicação das expectativas, negociar continuamente, e enfatizar a meta de segurança são vitais. Os agentes não devem confundir as ações de alguns com as do grupo”.
O relatório do FBI também aconselha contra o uso de força excessiva: “Quando uma multidão se torna difícil de controlar e os indivíduos percebem um tratamento injusto por policiais, a violência pode aumentar, e um motim pode entrar em erupção. Uma pesquisa recente […] conclui que quando os policiais agem com legitimidade, a desordem se torna menos provável, porque os cidadãos irão confiar e apoiar os esforços de aplicação da lei e se comportar de forma adequada”.
O Professor Steve Reicher, especialista em psicologia de multidões, corrobora com essa visão, dizendo em uma reportagem da BBC esta semana que “o equilíbrio de vozes dentro de uma multidão heterogênea é afetado pela relação entre a multidão e a polícia”, e, ainda, “sob condições onde a multidão é tratada como se todos fossem iguais, e todos perigosos, a multidão muda.” Certamente, na experiência deste escritor na quinta-feira à noite, o comportamento destrutivo de alguns se intensificou consideravelmente, imediatamente após um ataque contra a multidão por parte da polícia.
Tudo isso levanta as questões: até que ponto as forças policiais estavam tentando incitar, ao invés de conter, o comportamento destrutivo após a manifestação na quinta-feira à noite? As operações foram mesmo pré-planejadas, e seria possível que repórteres, realmente, soubessem com antecedência? Estavam as forças policiais trabalhando para deslegitimar intencionalmente este protesto de grau histórico? As forças policiais estavam ativamente tentando punir os manifestantes para desencorajá-los a participar em futuras manifestações?
A Polícia Militar do Rio justifica o uso da força em suas operações com base na eliminação de um inimigo identificado. Na quinta-feira do protesto, em teoria, o inimigo era um grupo de vândalos destruindo a propriedade pública. Um grande show é necessário para criar legitimidade, aos olhos da população, para o uso de tal força excessiva. Um pequeno grupo de vândalos não constitui tal ameaça. Deste modo, enquanto dezenas de milhares de manifestantes estavam ilhados no Centro lutando para escapar do pesadelo apocalíptico ao receber tiros por uma força policial que deveria protegê-los, milhões de telespectadores assistiam a um fluxo aparentemente incessante de imagens chocantes de vandalismo capturadas pela TV Globo com helicópteros circulando a área. Os jornais da sexta-feira amanheceram noticiando esta mesma história, na qual a destruição da propriedade se tornou a narrativa principal da noite, deixando de levar em conta a experiência de um número recorde de manifestantes pacíficos unidos em sua indignação. A grande mídia oferecia justificativas ao invés de apurar sobre o uso da força policial.
Na manhã seguinte, o Prefeito Eduardo Paes divulgou um comunicado dizendo: “Foi uma demonstração muito clara de que existe uma minoria que protagoniza, infelizmente, esses eventos. Essas pessoas, acima de tudo, não são democráticas. Quem age dessa maneira não sabe viver num estado de direito, onde os cidadãos têm todo o direito de se manifestar”.
Embora o Prefeito estivesse se referindo àqueles que cometeram atos de vandalismo contra o patrimônio público, na experiência dos manifestantes pacíficos e dos transeuntes inocentes que sofreram com a extrema violência policial, o protagonista antidemocrático desses eventos no Rio de Janeiro não foram os poucos vândalos mas sim a Polícia Militar do Estado. Desde a semana passada a palavra “vandalismo” tem sido amplamente utilizado por cidadãos cariocas nas redes sociais, em referência às ações do Estado.
Com a classe média experimentando o horror de ser, indiscriminadamente, elencado como um inimigo da polícia do Rio de Janeiro na manifestação de quinta-feira, e a morte de nove pessoas em uma operação policial extremamente violenta na Maré nos últimos dias, o caso da abolição da Polícia Militar do Brasil ganha terreno significativo. Um morador de favela que participou do evento de quinta-feira postou: “Agora vocês conseguem entender por que o povo que mora em comunidade odiava quando a polícia subia e até preferia que não subisse? Agora vocês conseguem imaginar o que esses PMs FAZIAM? As atrocidades que eles cometiam? Se diante de câmeras e cobertura da mídia eles já fazem o que eles fazem, imagina contra negro, pobre, favelado e sem mídia”.
A Anistia Internacional lançou uma campanha pedindo que as pessoas enviem, por e-mail ou Tweet, uma requisição as autoridades para que a polícia aja com respeito ao direito à liberdade de expressão e não pratique o abuso de poder usando gás lacrimogêneo e armas de fogo. Para mais informações clique aqui.
Foram consultadas, aproximadamente, 500 mensagens postadas nas redes sociais por manifestantes dentro da nossa rede para a elaboração deste artigo.