Peça ‘Pasmado’ Recupera Memória de uma Favela Esquecida, Removida de Botafogo na Década de 1960

Protagonistas Zézé e João interpretados por Kamilla Neves e Anderson Barreto, respectivamente. Foto: Leonardo Lopes (Peneira)
Protagonistas Zézé e João interpretados por Kamilla Neves e Anderson Barreto, respectivamente. Foto: Leonardo Lopes (Peneira)

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A peça Pasmado explora as experiências de moradores da remoção da favela do Pasmado, localizada em Botafogo, na Zona Sul do Rio, durante a década de 1960. A peça foi escrita por Luiz Fernando Pinto, um de seus diretores e cria da Vila Aliança, favela da Zona Oeste, onde muitos dos moradores de Pasmado foram reassentados. A peça foi desenvolvida a partir de relatos de moradores e baseia-se na história da família de Luiz Fernando, cujos avós eram moradores da antiga comunidade do Pasmado. Foi realizada e encenada pela Associação Cultural Peneira, que realiza iniciativas artísticas e culturais baseadas nas interações e relações interpessoais do cotidiano do Rio de Janeiro.

A peça estreou em dezembro de 2022 com cinco apresentações em lajes por toda a Vila Aliança. As apresentações comunitárias gratuitas de dezembro incluíram um jantar após a peça com moradores, elenco e equipe de produção para estimular discussões e reflexões sobre os temas da peça. De acordo com Luiz e sua codiretora, Priscila Bittencourt, foi essencial levar o teatro para uma área periférica da cidade que raramente recebe as artes cênicas e a eventos culturais. Após as estreias comunitárias, a peça foi apresentada no Teatro Café Pequeno, no Leblon, na Zona Sul do Rio, nos dois primeiros fins de semana de fevereiro de 2023.

Relembrando a Remoção do Pasmado Através da Arte

João inspeciona “Jurema,” um móvel herdado de sua mãe. Foto: Felix Foot
João inspeciona “Jurema”, um móvel herdado de sua mãe. Foto: Felix Foot

Em 1964, a favela do Pasmado, como outras comunidades da abastada Zona Sul da cidade, foi alvo de uma violenta “operação de saneamento” pelo então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda. Como parte da remoção, o corpo de bombeiros da cidade supervisionou um incêndio “controlado” que consumiu a comunidade, destruindo mais de 500 casas e, segundo os moradores, custando milhares de vidas.

Dirigida e interpretada por descendentes de antigos moradores do Pasmado, a peça se concentra na relação entre dois irmãos, Zezé e João, interpretados respectivamente por Kamilla Neves e Anderson Barreto. No entanto, há um terceiro personagem, invisível, que entra e sai de cena: a voz de Dona Celina. Esses trechos foram retirados de gravações originais da matriarca, que vivenciou a remoção, e são um lembrete arrepiante desse brutal acontecimento.

A cena de abertura apresenta a voz chiada de Dona Celina acima do zumbido dos automóveis e da rua ao fundo enquanto a matriarca idosa narra recordações tangíveis do Pasmado: “Do que eu consigo lembrar?… A História é muito difícil, não é mesmo?”

Juntos, João e Zezé tentam estabelecer uma ligação entre a sua situação atual e o seu passado. Essa relação delicada entre passado e presente é destacada quando João avisa: “Cuidado, agora! Você pode estar pisando na história de alguém”, referindo-se às muitas áreas da Zona Sul que, hoje, estão construídas sobre favelas demolidas.

À medida em que a peça se aproxima do clímax, João começa a sentir um cheiro no ar. Andando de um lado para o outro em torno da irmã, que permanece alheia, ele repete: “Você está sentindo esse cheiro?” A fumaça começa a flutuar pelo palco até que toda a sala adquire uma tonalidade vermelho-fogo e o som de sibilos e estalos vai se tornando ensurdecedor.

Irmãos Zezé e João. Foto: Leonardo Lopes
Irmãos Zezé e João. Foto: Leonardo Lopes

Memória Criativa: Entender a Cidade através do Passado

Para os diretores Priscila e Luiz, a peça combina as conexões pessoais de Luiz com o Pasmado e com a Vila Aliança e o objetivo geral da Peneira de investigar formas de expressão artística que destacam as relações entre as pessoas, suas memórias e comunidades. Desde 2018, a Peneira tem iniciado o processo de construção de um arquivo pessoal e emocional de diferentes partes do Rio de Janeiro. Seu primeiro projeto aconteceu na Rua Joaquim Silva na Lapa, no Centro, com 18 pessoas diferentes—incluindo Dona Marlene, cuja voz pode ser ouvida ao longo da peça—contando suas experiências com pessoas e lugares do Rio

“Geralmente, quando as pessoas falam de uma cidade, elas falam de projetos, ruas, arquitetura. A gente fala a partir do miúdo, do que é do miúdo. É do pequeno, do cotidiano, das relações entre as pessoas e das memórias das pessoas.” — Priscila Bittencourt

Luiz reafirmou esse ponto, dizendo que um dos objetivos da Peneira é a criação de um arquivo artístico sobre a cidade:

“A construção da cidade é muito ligada a esse processo de remoções, com muitas das comunidades que surgiram no Rio sendo a partir desse processo de remoções.”

A peça e, na realidade, a própria atividade de narração, é portanto um processo ativo de revisitar essas histórias e lidar com a memória muitas vezes inquietante que elas trazem consigo. Anderson, que interpreta João na peça, conta como atuar é para ele um processo de retornar ao passado. Apontando para as manchas de lama vermelha no chão do palco, é como “trazer de volta memórias da infância, memórias da casa”.

A peça não só olha para trás, para o que aconteceu, mas está inextricavelmente ligada ao contexto contemporâneo da Vila Aliança e da Zona Oeste. A jornalista Hellowa Corrêa, moradora de Realengo, na Zona Oeste, assistiu às apresentações na Vila Aliança e no Leblon. Conversando com Hellowa e com os diretores, eles contaram como a peça “afeta todos os cariocas” e apontaram para jovens moradores de favelas sentados na plateia que, embora não tenham sido diretamente afetados pelas remoções do Pasmado, não têm acesso a esse tipo de equipamento cultural ou teatros e podem estar ameaçados com outros processos de remoção na cidade hoje. Hellowa destacou o profundo senso de território e espaço evocado pela apresentação.

“Eu sou moradora da Zona Oeste e me parece que, na peça, o espaço em si é um personagem também. Nas apresentações na Vila Aliança, isso foi uma percepção muito forte.” — Hellowa Corrêa

Grupo Peneira em pé juntos após sua última apresentação de “Pasmado”. Foto: Angus Beazley
Grupo Peneira em pé juntos após sua última apresentação de Pasmado. Foto: Angus Beazley

Ao reviver a memória de uma favela esquecida do Rio e explorar as ramificações dessa remoção brutal no presente—e trazer essa expressão artística para as comunidades diretamente afetadas—a peça Pasmado cria um espaço para conectar, entender e, finalmente, ajudar a resistir aos processos discriminatórios que continuam a moldar a cidade do Rio.


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