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Fruto de uma construção coletiva que durou mais de três anos, a exposição completa ‘Memória Climática das Favelas’ foi inaugurada no sábado, 03 de maio, no Museu da Maré. Organizada pela Rede Favela Sustentável (RFS)*, a exposição é resultado de uma pesquisa inédita de história oral coletiva, que sistematizou 1.145 depoimentos de 382 moradores de dez favelas da capital fluminense. O projeto foi desenvolvido por onze museus e coletivos de memória de favelas integrantes da RFS: Museu da Maré, Museu Sankofa (Rocinha), Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (realizador da roda de Antares), Museu de Favela (Pavão-Pavãozinho/Cantagalo), Núcleo de Memórias do Vidigal, Alfazendo (Cidade de Deus), Centro de Integração da Serra da Misericórdia (Complexo da Penha), Museu do Horto, Fala Akari (Acari), Conexões Periféricas (Rio das Pedras) e o Museu das Remoções, com apoio especial do Përɨsɨ (Laboratório de Ecologia, Conhecimento e Democracia da Universidade Federal Fluminense) e com apoio da Climateworks Foundation, Instituto Clima e Sociedade (iCS), e re:arc institute.
Lançamento Completo Realizado no Museu da Maré, Local da Primeira Roda


Tema de matéria no The Guardian, “Como Lembranças de Água Limpa, Sapos e Ar Puro Podem Ajudar a Salvar as Favelas do Rio de Futuros Desastres Climáticos“, no Bom Dia Favela e mais oito meios de comunicação, a exposição “Memória Climática das Favelas“, lançada há um mês no Museu da Maré está repercutindo. Os organizadores relatam já convites para levar a expo para o saguão da Fiocruz, o Congresso Nacional, e COP30. Mas, antes disso, irá circular nos próximos meses por algumas de suas favelas realizadoras: Maré, Acari, Rio das Pedras, Cidade de Deus e Vidigal.
A inauguração da exposição completa em 03 de maio—que desde sua primeira versão lançada em 2023 mais do que dobrou de tamanho—contou com a presença de 320 pessoas de todas as regiões do município do Rio de Janeiro, Baixada e Leste Fluminense, vários estados brasileiros e outros países. Além da imprensa, haviam la estudantes, mobilizadores de diversas favelas, crianças, pesquisadores e autoridades.

Todos se reuniam para aprender, comemorar e refletir sobre a história do Rio de Janeiro, contada de forma inovadora, profunda, coletiva, e urgente, através de centenas de vozes faveladas que viveram a fundação e construção de suas favelas.
A exposição imperdível, que fica aberta ao público até 30 de julho na galeria temporária do Museu da Maré (agende sua visita aqui), contempla diversos materiais.
Começa por 13 banners contando a história da exposição e destacando as falas emblemáticas de cada uma das 10 grandes rodas de memória climática realizadas pelos museus e projetos de memória comunitários responsáveis.
O coração da exposição é composto por uma extensa linha do tempo com 60 painéis construídos a partir de datas identificadas ao longo das rodas de memória climática nas dez favelas participantes. Foram elas as três maiores favelas do município (Rocinha, Rio das Pedras e Complexo da Maré), favelas marcadas por graves impactos climáticos (Acari, Vidigal e Pavão-Pavãozinho/Cantagalo), outras que se tornaram destinos para deslocados climáticos (Antares e Cidade de Deus), e ainda comunidades com projetos exemplares de coexistência com a natureza (Horto e Complexo da Penha). As cores dos painéis refletem qual comunidade gerou o registro histórico, com tons de azul oriundos da Zona Norte, de terra da Zona Sul e verdes da Zona Oeste. Em ordem cronológica, são apresentados os acontecimentos marcantes das histórias das favelas—e efetivamente de toda a cidade—desde o século XVI até 2024.

Ainda no centro da instalação está o “Poço das Memórias”, onde o público manuseia 265 fotos legendadas das favelas participantes.

O poço foi desenvolvido pela artista plástica Evânia de Paula, com base em um poço do Vidigal, muito falado durante a roda de conversa em sua comunidade.

Do lado, no galpão do Museu da Maré, o minidocumentário “Memória Climática das Favelas”, de 45 minutos, oferece aos visitantes a oportunidade de entender e sentir as rodas de memória climática que resultaram na exposição, de quem vieram as falas, datas e memórias compiladas ali e como foi desenvolvida a metodologia do projeto.

Assista ao Minidocumentário “Memória Climática das Favelas”Que Compõe a Exposição:
Ao concluir a visita, todos são convidados a contribuir com suas próprias memórias para o mapa interativo, costurado pela artesã, Marli Damascena, co-fundadora do Museu da Maré.

Ali acumularam memórias e sentimentos do público, ao visitar a exposição.

No caso da exposição inaugural aberta até o fim de julho no Museu da Maré, também pode-se interagir com uma rede de pesca do próprio museu. E foi mantida no chão do local uma única bacia, simbólica, que estava presente durante o processo de montagem da exposição, em dia chuvoso, no mesmo lugar, para coletar as gotas d’água que passavam pelo teto desta instituição tão importante, porém subinvestida, pelo Estado e sociedade.
Não deixe de visitar a exposição imperdível, aberta ao público até 30 de julho na galeria temporária do Museu da Maré, agendando sua visita aqui. E caso tenha interesse em receber a exposição de Memória Climática das Favelas em sua instituição ou comunidade, consulte as orientações para solicitação da exposição.
‘A Favela Sempre Foi Roda’: Dez Favelas Narram Suas Memórias na Abertura da Exposição

A abertura da exposição Memória Climática das Favelas no Museu da Maré também serviu como inauguração de um Mês dos Museus muito potente no Rio de Janeiro. Claudia Ribeiro, coordenadora do Museu da Maré e diretora do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), deu as boas vindas aos presentes na abertura da exposição.
“É uma alegria imensa receber tanta gente num sábado de manhã, de sol, no Rio de Janeiro. [Até] com show de Lady Gaga [hoje a noite], isso aqui está lotado. É um movimento que mostra a força das comunidades, que mostra a força dos movimentos comunitários, de base comunitária, os movimentos sociais, engajados, de fato, na questão ambiental… no[s] território[s] onde cada uma de nós experimentamos todo dia as mudanças climáticas na pele! É uma alegria nós, do Museu da Maré, recebermos todo mundo aqui.” — Claudia Ribeiro
Bárbara Nascimento, do Núcleo de Memórias do Vidigal, fez a leitura do texto curatorial da exposição, ao chamar os outros anfitriões dos museus e projetos de memória que compuseram o Memória Climática das Favelas para a frente falar.


Em sua fala, Leonardo Ribeiro, cria e historiador de Antares e colaborador do Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz, afirmou que construir as rodas de memória climática o ajudou a reconstruir a história de sua própria família.
“Esse [projeto de] memória climática trouxe uma oportunidade muito rica de um conhecimento que a gente sempre buscou, que era essa ligação entre as comunidades. É sensacional. A primeira roda da memória climática aconteceu aqui, no Museu da Maré, onde, em 12 de março de 1975—fez 50 anos agora—minha mãe foi removida aqui da Maré compulsoriamente por vários motivos. [As autoridades diziam que era por conta de] meningite, por limpeza da cidade, por busca de emprego… Tudo isso escondia o principal motivo, que era tirar os favelados da região central da cidade do Rio de Janeiro. Ela passou nessa rua aqui, carregando as poucas coisas que tinha e os filhos para pegar o caminhão e ir para Antares, a mais de 70 quilômetros daqui, sem saber exatamente onde era.” — Leonardo Ribeiro

Douglas Heliodoro, do coletivo Conexões Periféricas-RP, que realizou a roda em Rio das Pedras, falou da importância da roda de memória climática como momento de conexão entre os mais antigos e os jovens, sobretudo em relação aos saberes e ao desenvolvimento da comunidade.
“Em Rio das Pedras, o rio que dá nome à nossa favela, foi sendo morto ao longo dos anos e a favela foi sendo construída de costas para esse rio tão importante. Então, poder realizar essa roda e conectar as memórias dos mais antigos com a galera mais jovem [foi muito importante]. É um objetivo do Coletivo Conexões Periféricas, conectar saberes ancestrais com saberes acadêmicos, conectar a academia com a favela, conectar pessoas. E conseguimos fazer isso nessa roda, foi muito incrível.” — Douglas Heliodoro

Antônio Carlos Firmino, cofundador do Museu Sankofa Memória e História da Rocinha, explicou que as rodas de memória climática colocam em evidência não somente os problemas da favela, mas a discussão por direitos.
“Discutir a memória climática é… [discutir a] questão do direito… Estamos falando de direitos básicos, que sempre nos foram negados, até porque nunca fomos aceitos dentro dessa sociedade. A gente está falando desse direito, dessa memória.” — Antônio Carlos Firmino
Marli Damascena, co-fundadora do Museu da Maré, destacou como foi impactante participar das rodas de memória climática na Maré e também nas outras comunidades, para construir um entendimento da história comum entre as favelas participantes.
“Eu nasci aqui na Maré, eu sou do Morro do Timbau. Eu vi toda essa transformação [pela qual] a Maré veio [passando desde] lá da década de 1940 até os dias de hoje, toda essa transformação. A primeira roda [de memória climática aconteceu] aqui, no nosso espaço, e eu fui nas outras rodas também. Foi muito emocionante. Cada um com a sua história, mas, quando a gente vai juntando, acaba que as histórias ficam sempre parecidas.” — Marli Damascena

Letícia Pinheiro, cria de Acari e integrante do coletivo Fala Akari, enfatizou a importância de estar articulada em rede para a produção de memórias e para denunciar o apagamento histórico que as favelas sofrem.
“É uma honra estar articulada junto com a Rede Favela Sustentável, porque vemos que aquelas opressões que sofre Acari, sofrem várias outras favelas, e que estamos interligados dentro desse processo. E, sobretudo, quando pensamos em memória, tem algo que é muito importante daquilo que fazemos, daquilo que está articulado aqui junto. A memória que se produz dentro do nosso território também é denúncia sobre o apagamento da nossa própria história. Então, é muito importante esse espaço, a gente está compartilhando as nossas memórias aqui porque a gente também tem um compromisso com o que vem depois de nós.” — Letícia Pinheiro
Márcia Souza, nascida e criada no Cantagalo, sócia fundadora do Museu de Favela, sentiu que, durante as rodas de memória climática, as pessoas puderam se envolver numa espécie de pertencimento gerado quando entendemos que os problemas vividos por nós são compartilhados. A partir dessa união vinda dos encontros, percebeu que, dessa vulnerabilidade, poderiam surgir soluções coletivas.
“O que a gente sentiu e viveu durante esses momentos foi igual para todos. Então, a gente passou a não se sentir mais sozinho. A gente, mesmo estando abandonado pelos governos—[por] quem deveria estar cuidando da gente—a gente entendeu que, se juntando, a gente consegue se ajudar, a gente consegue encontrar soluções. Então, em cada situação, alguma coisa aconteceu de melhor, de bom, de aprendizado. E a gente, em rede, está aprendendo a construir o que foi bom com o que aconteceu com o outro. Então, a gente está construindo um futuro melhor. Manter essa memória, manter essas rodas, aumentar cada vez mais, é a coisa mais importante para mim agora, de estar dentro dessa rede.” — Márcia Souza

Iara Oliveira, fundadora e coordenadora do Alfazendo, nascida na Cidade de Deus no ano em que nascia também a comunidade, contou que acompanhou toda a transformação pela qual a favela passou. Ela explica que “a favela sempre foi roda”, pois trocas de saberes sempre existiram. Segundo Iara, isso cria uma identidade local, importante para o engajamento social na busca de soluções da favela, para a favela.
“Vi Cidade de Deus se transformando no que é hoje. E aí, olhando daqui, eu consigo ver como é rede. É uma rede da vida, de afeto, de solidariedade, de aprendizado… A favela sempre foi roda. Quando a gente era criança, toda noite a gente montava uma fogueira no meio e os mais novos ficavam ao redor dos mais velhos contando histórias dos lugares. Porque não sei se todo mundo conhece a história de Cidade de Deus, mas Cidade de Deus concentrou de 55 a 57 favelas diferentes. Então, essas pessoas tiveram que reconstruir uma história nova ali naquele lugar. O pior é que [hoje] as pessoas não têm [mais] isso na memória. A gente precisa trabalhar a identidade da juventude, porque sem identidade não há luta, sem identidade não há desenvolvimento local, porque o desenvolvimento local não vem de fora para dentro, e sim de dentro para fora. Se a gente não acreditar no lugar onde a gente está… se a gente não construir os lugares, já que a favela é construída pelos seus moradores, [ninguém vai fazer]. A identidade é nossa. Se a gente o tempo inteiro ficar pensando que as soluções da favela estão fora, a gente nunca vai ter desenvolvimento local.” — Iara Oliveira
Emilia de Souza, co-fundadora do Museu do Horto, enfatizou que os museus comunitários são espaços potentes de salvaguarda de memória das favelas e da importância disso para o fortalecimento dos territórios.
“A melhor forma da gente estar lutando por esse reconhecimento é a nossa memória, que é um instrumento que nenhuma instituição governamental consegue nos tirar. Essa é uma fortuna que nós temos e que temos que valorizar. É por isso que é importante a gente estar fazendo parte das redes que valorizam os museus comunitários, das redes que valorizam a museologia popular, que nós é que construímos essa cidade através das nossas memórias, do nosso trabalho. Esses governantes, que excluíram essas famílias da cidade, não esperavam que nós fôssemos nos reorganizar dessa forma, que nós fôssemos nos fortalecer através das nossas histórias e de nossas memórias, que nós jamais vamos deixar apagar.” — Emilia de Souza

Júlia Soares, moradora do Complexo da Penha e pesquisadora junto ao Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), organização realizadora da roda de memória climática do Complexo da Penha, explicou a origem quilombola da Penha e como até hoje o território enfrenta problemas. Também afirmou que a oralidade deve ser resgatada para a construção coletiva.
“O Complexo da Penha, com diversas favelas, foi um quilombo que se construiu em cima de pessoas escravizadas e seus descendentes, mas que, apesar de ser uma favela antiga, continua com diversos problemas de violência e violência ambiental. Temos muito problema com lixo. A nossa roda foi linda, eu acho que esse evento é lindo, porque, primeiro, a gente está falando da oralidade, uma prática que a gente esqueceu com o tempo, e, segundo, porque a gente está falando da gente, a favela falando da favela. Isso é extremamente importante. Tem uma cantiga que fala: ‘levanta povo, acorda gente, nossa cultura está salvando muita gente’. Eu acho que a gente está fazendo isso hoje, relembrando a nossa cultura, relembrando quem a gente é, relembrando as práticas dos nossos antepassados.” – Júlia Soares

Após a apresentação dos participantes com os relatos sobre a construção das rodas de memória climática, as atividades continuaram ao longo do dia com sessões do documentário completo Memória Climática das Favelas, além de atividades lúdicas para crianças, realizadas pelo Ecoa Maré com brinquedos de material reaproveitado. O evento contou ainda com apresentações teatrais com participantes do curso de teatro Entre Lugares, da Maré, como as esquetes Contos de Luzimar e Contos e Lendas da Maré, trazendo memórias e histórias de personagens mareenses, e Climão, uma apresentação baseada no sufoco que as mudanças climáticas podem trazer, principalmente nos territórios favelados. Participante da roda da Penha, Abebe fechou o dia com uma mística de encerramento, trazendo ervas de cheiro ancestrais aos presentes.
Em agosto, a exposição seguirá para as comunidades de Acari, Rio das Pedras e Cidade de Deus, onde farão um circuito pelas escolas, levando o conhecimento dos mais velhos registrados na exposição, para a juventude, em uma troca necessária, intergeracional.
Lidiane Santos, também coordenadora do Alfazendo, anfitriã da roda de memória climática da Cidade de Deus, explicou que foi muito importante trazer as pessoas mais velhas para narrarem as memórias de seu território.
“A participação na roda de memória climática foi muito importante pra gente, porque a gente já faz essa luta pela memória, pelo registro da fala, das histórias orais e pelo registro das nossas lutas há muito tempo… A gente viu que a nossa história estava atrelada às histórias das outras favelas. Ficou pra gente, enquanto uma missão, de estar ali, levar as nossas senhoras e nossas anciãs e registrar as nossas dores, as nossas lutas e as nossas conquistas.” — Lidiane Santos
Assista ao Vídeo Completo do Lançamento no YouTube Aqui.
Veja o Álbum Completo por Alexandre Cerqueira e Barbara Dias no Flickr:
Não deixe de visitar a exposição imperdível, aberta ao público até 30 de julho na galeria temporária do Museu da Maré, agendando sua visita aqui. E caso tenha interesse em receber a exposição de Memória Climática das Favelas em sua instituição ou comunidade, consulte as orientações para solicitação da exposição.
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são articulados pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).