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No dia 18 de maio, Dia Internacional dos Museus, o Museu das Remoções, na Vila Autódromo, Zona Oeste, completou nove anos de (re)existência. A data foi celebrada com a reinauguração do seu percurso expositivo de memórias, evento vinculado à 23ª Semana Nacional de Museus, promovida pelo Instituto Brasileiro de Museus, entre 12 e 18 de maio. Ao longo desta semana, o Museu das Remoções e museus de todo o Brasil organizaram eventos com o tema “O futuro dos museus em comunidades em rápida transformação”.
Inaugurado em 18 de maio de 2016, o Museu das Remoções é um museu comunitário fundado por moradores e apoiadores da Vila Autódromo, comunidade que foi atravessada por intenso e violento processo de remoção, operado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, se utilizando de diversos argumentos sem fundamento ligados às Olimpíadas de 2016.
Da Colônia de Pescadores ao Parque Olímpico: Uma História de Resistência à Especulação Imobiliária
A Vila Autódromo surge na década de 1960, como uma colônia de pescadores que se instala na Península de Itapeba, às margens da Lagoa de Jacarepaguá. A comunidade se expande e seu perfil se amplia com a chegada de famílias de trabalhadores das obras do autódromo, construído ao lado, e da urbanização da Barra da Tijuca. Em 1989, a Vila acolheu famílias da favela Cardoso Fontes, reassentadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. E em 1994, recebeu 60 famílias reassentadas pelo Governo do Estado através da Secretaria da Habitação e Assuntos Fundiários (SEHAF).
Foi durante este período, em 1993, que a Prefeitura do Rio fez a primeira ameaça de remoção da Vila Autódromo sob acusações de que a comunidade causava danos estéticos e ambientais ao seu entorno. Ao longo de 30 anos, outras ameaças e tentativas de remoção foram feitas. Até que, no contexto das Olimpíadas de 2016, o processo de remoção foi levado a cabo pela Prefeitura.

As remoções tiveram início em 2013 e se intensificaram ao longo de 2014 e 2015, concluindo meses antes das Olimpíadas em 2016. O processo transformou a comunidade em um “cenário de guerra”, como descreveu o morador Luiz Claudio da Silva, com casas descaracterizadas, canos quebrados, falta d’água, fios soltos, e escombros abandonados. Antes das remoções, a Vila Autódromo abrigava cerca de 700 famílias, das quais somente 20 conseguiram permanecer no território. Para preservar a memória de luta da Vila Autódromo como contranarrativa frente às remoções promovidas pela Prefeitura, moradores e apoiadores fundaram o Museu das Remoções.
A data escolhida para a inauguração do Museu das Remoções não foi arbitrária. Em 18 de maio de 2016, enquanto o Comitê Internacional dos Museus (ICOM) promovia debates sobre “Museus e Paisagens Culturais”, o Museu das Remoções surgia como instrumento de resistência, denunciando o projeto excludente e racista de desenvolvimento territorial em curso na região, que destrói paisagens culturais em nome da especulação imobiliária.
O Museu das Remoções nasceu anunciando que museus podiam e deveriam desempenhar funções sociais de impacto na preservação de paisagens e culturas, além de dar suporte às comunidades. Na Vila Autódromo, uma comunidade em rápida transformação por conta de um processo de remoção forçada, o Museu das Remoções se fez presente desde sua fundação como um dispositivo de luta. Há nove anos, a instituição defende o lema: “memória não se remove”.

Preservando e homenageando memórias de lugares e pessoas da Vila Autódromo, o percurso expositivo de memórias do Museu das Remoções foi lançado, em sua primeira versão, no dia 23 de setembro de 2018, como parte da programação da 12ª Primavera dos Museus, promovida pelo Instituto Brasileiro de Museus. A primeira versão possuía 24 placas: 18 pontos de memória e quatro com nomes de ruas e dois com textos explicativos. Já o recém-inaugurado percurso expositivo é composto por 28 pontos:
- Boas-vindas ao Museu das Remoções
- Placa de entrada na comunidade
- Travessa da Resistência
- Igreja de São José Operário
- Ruínas da casa de Zezinho e Inês
- Poste da casa da Jaqueline
- Ruínas da casa de Wilson e Iolanda
- Associação de Moradores
- Origem do Museu das Remoções
- Espaço Ocupa
- Ruínas da casa de Dona Denise
- Local da antiga padaria do Mateia
- Containers
- Rua Francisco Landi — Casa da família da Sandra Regina
- Rua Gilles Villeneuve
- Dona Dalva morava nesta Rua: lutou e permaneceu
- Final da Rua Beira Rio, onde residia a família de Iara e Gaúcho
- AEIS (Área de Especial Interesse Social – lei complementar 74/2005)
- Ruínas da casa do senhor Adão
- Últimas barricadas
- Parquinho das crianças
- Legado do projeto Futuro da Memória
- Rua Vila Autódromo
- Placa de preservação das capivaras
- Os animais também resistiram à remoção
- Ruínas da casa de morador não identificado
- Segunda etapa da urbanização
- Replantio após as remoções
Nesta atualização, o percurso ganhou quatro novos pontos de memória: (1) Ruínas da casa de morador não identificado; (2) Os animais também resistiram à remoção; (3) Segunda etapa da urbanização; e (4) Replantio após as remoções. Nesta nova versão, o percurso possui materiais mais duráveis e recursos de acessibilidade. As placas do percurso possuem QR codes, que direcionam para vídeos que contam a história dos pontos de memória, com legenda em português, audiodescrição e libras. O trabalho de atualização e melhoria do percurso foi viabilizado graças ao Prêmio Pontos de Memória de 2023, promovido pelo IBRAM.
A visita ao novo percurso expositivo foi conduzida por Luiz Claudio da Silva, Maria da Penha Macena, Nathalia Macena e Sandra Maria Teixeira, moradores da Vila Autódromo e cofundadores do Museu das Remoções. Ao longo do trajeto, alguns dos presentes eram escolhidos para narrar memórias relacionadas aos marcos históricos demarcados pela exposição, além de auxiliar na instalação das novas placas.

Dentre os presentes, estavam moradores e ex-moradores da Vila Autódromo e apoiadores que participaram da sua luta em diferentes momentos. No ponto de memória em homenagem às ruínas da casa de Zezinho e Inês, a professora Inalva Mendes Brito, ex-moradora da Vila Autódromo, compartilhou seus sentimentos com relação à remoção de sua casa.
“A casa de Zezinho e Inês representa a minha casa, que não teve direito nenhum, nem a uma placa. Ela ficou de reserva de mercado… Então, a placa de Zezinho e Inês e o espaço aqui representam os meus sentimentos.” — Inalva Mendes Brito
Seu Wilson Menegoy, outro ex-morador, que possui um ponto em homenagem à casa em que morou com Dona Iolanda, lembra que, para ele, a Vila Autódromo serviu de acolhida. Foi onde conseguiu se estabilizar e ser muito feliz antes de sua remoção e da demolição de sua casa.
“Sempre paguei aluguel na minha vida. Por intermédio de umas amigas da minha esposa, que moravam aqui na comunidade, eu frequentei aqui antes de morar e gostei do lugar. Surgiu esse terreno, conseguimos adquiri-lo e construímos nossa casa aqui em 1998. Vim morar no casco, praticamente, e começamos a emboçar tudo direitinho… foram 17 anos aqui até a remoção. Foi um período muito bom da nossa vida.” — Wilson Menegoy
Um dos pontos novos celebra a entrega da segunda etapa de urbanização da comunidade. A construção dos equipamentos entregues foi uma exigência dos moradores que resistiram à remoção durante as negociações com a Prefeitura. No entanto, o acordo só começou a ser cumprido após novas reivindicações feitas pelos moradores entre junho de 2022 e julho de 2023. Foram refeitos alguns espaços de convivência que existiam na Vila Autódromo antes do processo de remoção: quadra poliesportiva, praças com parquinhos e um espaço sociocultural.
Em julho de 2023, foi descoberta mais uma ruína de casa no território, que passou a ser um dos novos pontos do percurso expositivo. Sandra Maria contou: “Nós compreendemos que, por ser um piso de uma casa de um morador não identificado, ele representa todas as casas removidas, de tantas pessoas que não foram identificadas”. Por isso, no aniversário de um ano do Museu das Remoções, um tijolo maciço da casa de um morador não identificado foi um dos objetos da comunidade a serem musealizados, doados ao Museu Histórico Nacional em 2017.

Outro ponto do percurso atualizado homenageia os animais da Vila Autódromo, defendendo que estes também resistiram às remoções. Nathalia Macena contou como o ponto foi escolhido.
“Nós compreendemos que não somos só nós, seres humanos, que sentimos o impacto das remoções. Os animais domésticos, os animais silvestres e todos os outros animais e seres vivos, de alguma forma, em alguma medida, sofreram esse impacto. Então, achamos justo homenagear todos os animais, de forma geral. Muita gente, infelizmente, por não poder levar os animais para onde estava se mudando, deixava eles aqui. Então, muitos animais ficaram abandonados. Nós que estávamos aqui, lutando para permanecer nesse território, além de nos preocuparmos com a nossa sobrevivência e subsistência nesse território, também nos preocupávamos com os animais, porque não era justo o que eles passavam. Era desumano.” — Nathalia Macena
Emocionada, Nathalia contou que, próximo ao novo ponto de memória, está enterrado o corpo da cadelinha Nina, adotada por ela e sua família após ter sido abandonada durante a campanha de remoções da Vila Autódromo.

As remoções impactaram violentamente a fauna, incluindo os seres humanos, mas também deve-se ressaltar que a flora—por vezes, vegetação nativa—também foi violentada e suprimida ao longo da remoção da comunidade. Desde a remoção, os moradores que resistiram têm replantado, com mudas nos quintais e doações, a fim de restaurar uma característica muito marcante da Vila Autódromo antes das remoções: ser uma favela bastante arborizada. Devido à sua importância, esse reflorestamento comunitário também foi homenageado na atualização do percurso do Museu das Remoções.
“Foi um momento difícil vermos aquelas árvores de 30 metros serem jogadas no chão. Eles traziam o triturador, cortavam os galhos e árvores lindíssimas viravam pó.” — Luiz Claudio da Silva
Na sequência, as pessoas que estavam presentes foram convidadas a plantar sementes de girassol no entorno do ponto de memória em apoio ao replantio na comunidade.

No ponto “Legado do projeto Futuro da Memória”, um projeto desenvolvido em parceria com o Instituto Goethe, Nathalia, Sandra, Penha e Luiz fizeram uma intervenção artística conjunta, com o texto escrito por Nathalia Macena. Um dos trechos faz menção a algumas “estratégias de guerrilha utilizadas pela prefeitura para remover” e as “estratégias de guerrilha utilizadas pelos moradores como defesa”.
“Se tem pancada, tem barricada; se tem agressão, tem manifestação; se tem destruição, tem ocupação; se tem árvore sendo cortada, tem semente sendo plantada; se caímos em meio aos escombros, levantamos, sacudimos a poeira, erguemos a cabeça e esbarramos em mais uma das muitas inovações. Nasce o Museu das Remoções.” — Nathalia Macena

Um bolo de aniversário encerrou o evento, marcando os nove anos de existência e resistência do Museu das Remoções. Todos os presentes cantaram parabéns para celebrar essa trajetória de quase uma década.

Sobre a autora: Lia Peixinho é museóloga (UNIRIO), mestra em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS – UNIRIO/MAST), graduanda em Antropologia (UFF) e pós-graduanda em Cidade, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais (IPPUR/UFRJ). Integra o comitê gestor do Museu das Remoções e atua como museóloga do Instituto Burle Marx.