
Click Here for English
No sábado, 16 de maio, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) recebeu diversas instituições museais, incluindo museus populares, núcleos e projetos ligados à memória social, além de pesquisadores, para o Primeiro Seminário de Museologia Social da Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro (REMUS-RJ). O objetivo central do evento foi promover discussões a respeito da museologia desenvolvida em espaços tidos como não-convencionais.
O evento pioneiro foi norteado pelo tema “Solidariedade e Afetos Alinhados com a Vida – Comunidades e Museus em Confluência: A Democracia e a Museologia que Servem à Vida Transformam o Mundo”. Fez parte da 23ª Semana Nacional de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), ocorrida entre 12 e 18 de maio, cuja agenda foi “O Futuro dos Museus em Comunidades em Rápida Transformação”.
A vice-presidente do Movimento Internacional para a Nova Museologia (MINOM), articuladora da REMUS-RJ e museóloga do CCBB-RJ, Sarah Braga, abriu o seminário apresentando os objetivos da rede de museologia social e as intenções do encontro, construído entre as instituições integrantes através de longos debates sobre as temáticas que seriam apresentadas.
“A Rede de Museologia Social do Estado do Rio de Janeiro tem como premissa conectar e promover a troca de experiências e saberes, cooperações e ações conjuntas entre as diversas iniciativas, cujas práticas se compreendem na museologia social, espalhadas pelo território do Estado do Rio de Janeiro. Potencializando a voz e a força de cada iniciativa que a compõem, compartilha a compreensão de que fortalecer o outro também é uma forma de se ver fortalecido, e acredita na memória e na resistência como formas de libertação, mudança e transformação da realidade” — Sarah Braga, Movimento Internacional para a Nova Museologia
Em seguida, a mesa de abertura “Museologia Social: O Futuro Ancestral dos Museus” reuniu importantes nomes da área. Mário Chagas, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Lusófona de Lisboa, ex-diretor do Museu da República e articulador da REMUS-RJ; Cláudia Rose, coordenadora do Museu da Maré, integrante do grupo de articulação da REMUS-RJ e do Conselho Consultivo da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz; e Sandra Teixeira, co-fundadora e co-gestora do Museu das Remoções, na Vila Autódromo, apresentaram um panorama sobre a construção da política nacional de museus, a participação dos museus sociais e a relação entre discurso político e as práticas atuais no campo da museologia social a partir das atuações desses indivíduos nos espaços de memórias a que são pertencentes.
“O arquivo é a alma do Museu da Maré e a exposição é o coração. Todo o museu é um corpo que pulsa e que tem vontades próprias. Muitas vezes queremos uma coisa e o museu quer outra. A alma do museu é ancestral, é o arquivo da Dona Orosina, mulher negra, migrante, que chegou pobre lá na Central do Brasil… Começou a ir lá na Maré para levar o marido para respirar ar puro, na década de 1940. Ela se apaixonou pelo lugar e com as madeiras que havia por ali, construiu um barraco. Foi uma das primeiras moradoras da Maré. Por isso, o Arquivo Dona Orosina é a alma, a ancestralidade. Estamos de braços abertos esperando cada nova atividade, cada novo grupo de visitantes com esse vigor de um futuro que é amparado pela ancestralidade.” — Cláudia Rose, Museu da Maré

“Quando pensamos na criação do Museu das Remoções, entendemos que não se tratava daquela museologia que estávamos acostumados. Essa é uma museologia de luta, é um museu que fala de vida, de transformação social. É uma museologia ligada à resistência. Essa é uma museologia ligada à vida.” — Sandra Teixeira, Museu das Remoções
O almoço foi seguido da primeira gira, “Democracia Discursiva, Racismo e LGBTfobia: A Nova Cara da Política Nacional de Museus”, novamente formada por museus integrantes da REMUS-RJ. Essa mesa foi composta por Antonia Ferreira Soares, diretora geral do Museu de Favela, no Pavão-Pavãozinho e Cantagalo; Antônio Carlos Vieira, diretor do Museu da Maré, no Complexo da Maré; Emília Maria de Souza, diretora e co-fundadora do Museu do Horto, na Comunidade do Horto, no Jardim Botânico; Marco Antônio Teobaldo, curador do Museu Memorial Iyá Davina, São João de Meriti; Marlucia Santos de Souza, diretora do Museu Vivo do São Bento, em Duque de Caxias; e Mestre Paulão Kikongo, doutorando em Memória Social na UNIRIO, diretor do Iê Museu Vivo de Arte e Cultura da Capoeira, em Guapimirim.

Os integrantes da mesa, todos representantes de museus de favela e periferias do Estado do Rio de Janeiro, discutiram as dificuldades na aquisição e manutenção dos imóveis que abrigam os museus, a falta de apoio e investimento por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro a espaços museais periféricos e a violência em alguns territórios. A especulação imobiliária, que ameaça certos espaços de memória e cultura, também foi tema da discussão. Apontaram, também, para a necessidade de um documento que garanta legalmente o exercício da preservação da memória e das iniciativas culturais desenvolvidas pelos museus a fim de que estes projetos não sejam prejudicados por interesses imobiliários ou medidas arbitrárias.
“Política pública o governo faz dentro dos gabinetes e nem consulta a população dita carente. Vão fazendo políticas sem saber o que aquela comunidade vem trabalhando pelo desenvolvimento da população. Somos um museu de território. O nosso acervo é a população. Então, precisamos cuidar da nossa população. Nós não temos recursos para exercermos nossas atividades. Fazemos tudo com muito sacrifício.” — Antonia Ferreira Soares, Museu de Favela
Mestre Paulão Kikongo também enfatizou a necessidade da presença de indivíduos ligados à museologia social nas discussões sobre políticas públicas e tomada de decisões. “Tudo nosso é em roda: samba, capoeira, gira… Só o que não circula entre nós é o dinheiro,” ele acrescentou.
A segunda gira, “Museologia Social em Movimento: Comunidades Populares, Saberes e Tecnologias Ancestrais no Enfrentamento das Emergências Contemporâneas”, foi composta por Alexandre de Nadal Arantes, diretor de comunicação do Instituto Pretos Novos, na Gamboa; Magali Cunha, professora e jornalista; Mãe Flávia da Silva Pinto, ministra religiosa de Umbanda e Candomblé Ketu e fundadora do Museu Vivo Olga do Alaketu, em Seropédica; Jandira Rocha de Oliveira, coordenadora do Museu Vivo da Agroecologia; e Pai Paulo José dos Reis, do Quilombo de Bongaba, ambos de Magé.
Nesta gira, os participantes refletiram sobre o papel da museologia social e as suas variadas expressões no combate à desinformação e na promoção do que foi considerado “liberdade cognitiva”. Isso porque esses espaços museais agem na preservação de territórios e culturas daqueles que foram por diversas vezes excluídos da narrativa hegemônica—em especial, populações negras e indígenas. Magali Cunha considerou haver uma espécie de blindagem cognitiva, que desinforma, estigmatiza e negativiza expressões da cultura popular e periférica, impedindo o reconhecimento da importância de se preservar essas práticas. Mãe Flávia sugeriu um maior diálogo entre a museologia social e os museus convencionais para erradicar a colonização do saber e da memória. Pai Paulo destacou a agência de comunidades tradicionais, que produzem estratégias de enfrentamento ao racismo estrutural à medida em que salvaguardam sua memória.
“As comunidades tradicionais, tanto de quilombolas, como de matriz africana, trazem esse peso em cima do que chamamos de preconceito e racismo estrutural. Para combater esse preconceito e esse racismo estrutural, nós construímos a desconstrução dessa visão hegemônica, negativa com relação às divindades e ao sistema quilombola. Para isso, rompemos com a blindagem cognitiva, que um dia determinou onde estaríamos e quem seríamos, para que pudéssemos nos apropriar da liberdade cognitiva, que nos diz que o nosso lugar é onde a gente deseja estar.” — Pai Paulo, Quilombo de Bongaba

Várias falas se posicionaram pela importância da museologia social no enfrentamento de questões, como insegurança alimentar, violência de gênero, racismo e desastres ambientais.
“A maioria das pessoas que procuram os terreiros são mulheres. A maioria das pessoas que procuram a religião são mulheres. Eu estou em uma das poucas religiões do mundo em que a mulher é autoridade. Foi uma das poucas que preservou esse lugar do sagrado feminino, da ancestralidade. Hoje, se fala de ancestralidade como uma coisa mítica, mas a ancestralidade anteriormente era política. Era essa liderança matriarcal que decidia sobre justiça, sobre distribuição de comida, segurança alimentar. Ao manter essa visão do matriarcado, o museu vai contar várias histórias: vai falar do genocídio da população preta, sobre soberania alimentar, que a cosmovisão dos orixás é um processo de cura. Vai falar também que a criação dos terreiros foi o que assegurou a sobrevivência da população preta. Foi o que possibilitou estarmos aqui falando.” — Mãe Flávia, Museu Vivo Olga do Alaketu
O seminário foi finalizado de forma poética. Integrantes da Rede de Museologia Social do Estado do Rio de Janeiro e o público que veio prestigiar o seminário, carregando estandartes com dizeres como “Só a Poesia Salva”, desceram as escadas do CCBB cantando Gonzaguinha. Mário Chagas comandava o coro:

“Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz.
Eu sei que a vida devia ser bem melhor… e será!
Mas isso não impede que eu repita:
É bonita, é bonita e é bonita!”
A cantoria e os estandartes chamaram a atenção dos presentes naquele espaço cultural tão importante do Centro. De vez em quando, o coro era interrompido por palavras de ordem. A frase tão ouvida durante todo o seminário finalmente tomava todo o Centro Cultural Banco do Brasil: “A museologia que não serve para vida, não serve para nada”.
No térreo, uma roda de jongo puxada pelo Quilombo de Bongaba aguardava o cortejo. O evento se encerrou provocando nos presentes a sensação de que a museologia social serve para a vida daqueles que defendem a memória na certeza de que o futuro será melhor.
“Eu fui representando a comunidade da Indiana, Tijuca, o Museu de Memórias da Comunidade Indiana Tijuca (MEMOCIT). Eu tive uma visão muito boa do seminário, porque tratou de museus que são museus sociais. A gente não tem uma entrada total em um museu que tenha selo e toda aquela estrutura. Então, a REMUS-RJ, ao fazer este seminário, deu oportunidade da museologia social estar dentro de um espaço renomado, que é o Centro Cultural Banco do Brasil. Fomos bem tratados, a gente se sentiu acolhido. Foi possível a gente falar das nossas angústias, vitórias e perspectivas em relação ao futuro dos nossos projetos. Então, foi muito bom! Eu me senti revigorado e falo com propriedade. Se eu tinha alguma dificuldade para tentar alavancar o MEMOCIT, agora eu não tenho mais. Porque eu sei que é possível a gente ocupar esses espaços e ter voz, vez e participação.” — Marcello Deodoro, Museu de Memórias da Comunidade Indiana Tijuca
Sobre a autora: Bárbara Nascimento, cria da favela do Vidigal, é professora de Língua Portuguesa das redes públicas municipal e estadual do Rio de Janeiro. É formada em Letras (UFRJ: 2002), e mestra em Memória Social (UNIRIO: 2019). Criou e dirige o Núcleo de Memórias do Vidigal, uma gama de ações, construção de acervos e variados registros, que buscam servir de suporte da memória.