Como a Cobertura do O Globo sobre a Rocinha Mudou desde 2009?

Rocinha. Foto por Rogerio Santana / GERJ

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As favelas do Rio são reconhecidas por estrangeiros e brasileiros devido as suas diversas qualidades únicas e muitas vezes contraditórias: muito visíveis na paisagem urbana do Rio, elas servem como um emblemático lembrete da forte disparidade de riquezas da Cidade Maravilhosa. Frequentemente tópico de representações midiáticas, as favelas são reconhecidas tanto por suas contribuições culturais à cidade, quanto pela violência. As facções de tráfico de drogas que operam dentro de algumas favelas entram periodicamente em conflito com a polícia, as milícias ou umas com as outras, muitas vezes atraindo a atenção da mídia. Por causa da estigmatização social destas favelas como espaços de perigo e pobreza, uma rígida divisão conceitual existe entre o asfalto e a favela, a qual é refletida e reforçada pelas representações midiáticas de violência dentro destas comunidades.

Os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio aumentaram dramaticamente a atenção da mídia internacional na cidade, colocando os holofotes sobre muitos aspectos da Cidade Maravilhosa, e levando ao aumento do escrutínio público de muitos problemas da cidade associados à desigualdade e à pobreza. Com este escrutínio aumentou a pressão sobre o governo brasileiro para que exiba o Rio sob uma perspectiva positiva. Em particular durante o período anterior ao megaevento, diversas fontes da mídia internacional focaram suas atenções em favelas, reportando histórias de violência e discutindo o papel muitas vezes negativo da polícia nessas comunidades.

Neste panorama de mudança da mídia global, procurei examinar se as representações das favelas na mídia brasileira também mudaram. Meu estudo analisou o proeminente jornal O Globo, examinando sua cobertura sobre a Rocinha. A Rocinha é uma das maiores e mais densamente povoadas favelas em toda a América do Sul, com uma população estimada entre 101.000 e 300.000 habitantes. Por causa de sua localização na rica Zona Sul do Rio, a Rocinha recebe significativa atenção da mídia, do governo e de estrangeiros, e por isso é a escolha ideal para uma análise da representação de favelas na mídia.

O jornal O Globo é conhecido pelo seu conservadorismo politico e seu viés pró-governo, evidenciado pelo seu apoio à Ditadura Militar dos anos 1960-1980 e seu endosso às atividades conservadoras do atual governo. Sua cobertura sobre as favelas tradicionalmente reflete um certo preconceito de classe que agrada sua base de leitores em grande parte de classe média e alta. Como o principal jornal da maior rede de mídia da nação, O Globo é altamente influente. Por todas estas razões, portanto, ele serviu como um objeto útil para examinar as mudanças na representação das favelas em resposta aos Jogos Olímpicos.

O estudo selecionou dois intervalos de tempo como amostragem para uma comparação cruzada das representações do O Globo sobre a Rocinha. O primeiro intervalo, de janeiro de 2009 a dezembro de 2009, estabeleceu uma linha de base da cobertura do O Globo sobre a favela antes e durante o anúncio de que o Rio receberia as Olimpíadas de 2016. O segundo intervalo, de janeiro de 2015 a fevereiro de 2016, forneceu uma janela suficiente para comparação. Dentro de cada período de tempo uma média de 18 artigos foram qualitativamente analisados por sua cobertura de tópicos como violência, moradores e expansão da favela. Esses achados foram então comparados para avaliar como, se aplicável, O Globo mudou sua retórica em relação à favela nos anos pré-Olímpicos.

Período 1: Janeiro 2009 – Dezembro 2009

A análise dos artigos do O Globo no primeiro intervalo de tempo descobriu que o jornal enfatizou duas principais discussões: a expansão da Rocinha e o conflito em curso entre traficantes de drogas e a polícia. O Globo tendia a sub-representar os moradores da favela nas análises dos eventos na Rocinha, e principalmente retratava o espaço como um foco de problemas como violência e pobreza. Reportagens frequentes catalogaram surtos esporádicos de violência entre a polícia e traficantes. Por exemplo, batidas policiais na Rocinha em março de 2009 geraram um conjunto de matérias detalhadas com as estatísticas da operação policial, a qual envolveu 300 policiais, a apreensão de 200 quilos de pólvora e uma tonelada de maconha, a prisão de seis “bandidos” e a morte de três “suspeitos”. Imagens da operação como a acima acompanham estas matérias, no qual a identidade do corpo na foto não é especificada. Outra matéria (“Rocinha: polícia estoura refinarias do tráfico”) põe os detalhes de uma operação em um infográfico para ajudar a explicar e destacar dados chave.

O outro tópico de frequente cobertura–a expansão da Rocinha para dentro da floresta–foi frequentemente enquadrado ou por sua superpopulação, ou pela degradação ambiental ao redor da favela, ao invés de, por exemplo, falar sobre a necessidade não atendida de habitação que essa expansão representa. Repórteres apresentaram detalhes concretos e descrições reais sobre a expansão da favela; por exemplo, em abril de 2009, um artigo intitulado “Quase 50 casas ‘furaram’ ecolimite da Rocinha” descreve a “invasão” de 48 famílias na floresta ao redor da Rocinha, enfatizando a floresta como uma área ecológica que “deve ser preservada”. Outras vezes estatísticas dão lugar à subjetividade; por exemplo, cinco matérias diferentes usam a palavra “desordenada” para descrever a expansão da Rocinha.

Reportagens de acompanhamento do crescimento da favela registram um debate de um mês sobre uma proposta para construir um muro de concreto de três metros (repetidamente referido como um “ecolimite”) em torno do perímetro da Rocinha para controlar a expansão da comunidade, uma proposta que foi vocalmente apoiada pelos moradores do rico bairro vizinho, São Conrado. Em maio, o presidente da Associação de Moradores de São Conrado publicou um artigo na seção de opinião do O Globo no qual ele chamou as novas construções de moradias na Rocinha de uma forma de “degradação ambiental”. Quando os planos para o muro em volta da Rocinha eventualmente mudaram após protestos e resistência por parte dos moradores da Rocinha, um repórter do O Globo se referiu a um encontro entre líderes comunitários da Rocinha opostos à construção do muro como “discurso político inflamatório”. Em geral, reportagens sobre a Rocinha durante 2009 examinam a violência, conflito, e controvérsia na comunidade durante este tempo, e marginalizam o ponto de vista dos moradores da favela e suas representações.

Período 2: Janeiro 2015 – Fevereiro 2016

No segundo intervalo de tempo as representações do O Globo sobre a Rocinha passaram por uma dramática higienização em comparação aos seus retratos anteriormente explícitos da violência e expansão da favela. Com uma menor cobertura das batidas policiais e do crescimento populacional, a maioria das matérias focaram em histórias de interesse humano e iniciativas de melhorias da comunidade dentro da Rocinha, trazendo a voz dos moradores da favela. Apesar da recente inclusão nas representações do jornal, os moradores da favela estavam passíveis ao “tokenismo” do O Globo. No contexto do programa do estado fortemente marcado das UPPs, um programa que foi lançado na comunidade em 2012, as histórias de confrontos com violência e aspectos negativos da vida nas favelas foram, cada vez mais, apagadas das representações do jornal.

Por exemplo, um artigo publicado em fevereiro de 2016 descrevia um tenista campeão da Rocinha que ganhou um título nacional e retornou à favela com o objetivo de abrir uma escola desportiva. O repórter inclui uma citação do atleta que diz que “o tênis ajudou a ter disciplina, educação e a ficar longe da violência”, e observa que a escola oferece “uma oportunidade para a Rocinha criar atletas e cidadãos”. A última frase do artigo inclui uma breve referência a uma conversa entre o instrutor de tênis e os oficiais da UPP da Rocinha. Outro artigo do O Globo publicado em fevereiro de 2015 relatava sobre a população jovem da Rocinha, incluindo depoimentos de moradores da favela sobre o futuro do sistema educacional e de saúde na comunidade. Claramente tirada de dentro da favela, a foto que acompanha a matéria mostra os entrevistados de frente, com os telhados da Rocinha subindo atrás deles até o fundo distante. Fotos como a de acima, com os rostos e nomes dos moradores das favelas apresentados de forma transparente aos leitores do O Globo, não têm equivalência no período de 2009.

Moradores da favela também foram citados na cobertura sobre assuntos indiretamente relacionados à Rocinha. Como, por exemplo, em um artigo publicado em fevereiro de 2015 sobre a extensão da linha de metrô, onde o repórter mencionou 20 moradores da Rocinha que foram convidados à visitar o projeto acompanhados pelo Secretário de Transporte do Estado.

O artigo ressaltava os benefícios que os moradores da Rocinha receberiam do projeto, pela sua proximidade ao metrô e a nova acessibilidade à cidade. Em outro lado, foi raro notar a presença de artigos durante o período de 2009 que incluíam moradores da Rocinha em discussões mais amplas além dos limites da sua comunidade.

Enquanto isso, a cobertura da violência quase desapareceu das representações do O Globo da Rocinha. Apenas um artigo no segundo período analisado mencionou um ato de violência acontecido na favela. Outros debatiam sobre a UPP instalada na favela em 2012, mas somente em termos gerais. A típica descrição da UPP retratava a nova força policial como “respondendo à demanda da comunidade“ e “retomando o território“ que tinha sido sujeito a “décadas de abandono“. Em julho de 2015, um artigo do O Globo sobre as UPPs em toda a cidade dizia que as forças policiais foram responsáveis por salvar quase 1.000 vidas, diminuir a taxa de homicídio a 65%, reduzindo a taxa de mortos por ações policiais em aproximadamente 85%, e que também ganharam o apoio dos membros da comunidade que foram protegidos por eles. Nenhum depoimento de algum morador foi dado para apoiar essa causa.

Comparando 2009 e 2015/16

Durante esses dois períodos de tempo, O Globo transformou-se de um jornal com intensas reportagens sobre os conflitos entre traficantes e o estado e a expansão das favelas para um discurso bem mais leve, reduzindo a cobertura da violência e substituindo essas notícias por outras mais agradáveis, de interesse da população e sobre programas de melhorias na comunidade que destacaram a Rocinha como uma comunidade segura. Essa mudança afetou a representatividade dos moradores da Rocinha, que antes eram excluídos das notícias mas ganharam maior presença em 2015 quando suas palavras e atividades foram usadas para reforçar as políticas governamentais. Ao mesmo tempo, os grupos de traficantes de drogas que continuavam a operar dentro da favela e a se confrontavam com a polícia receberam relativamente pouca cobertura no segundo período. Ao excluir essas histórias de sua representação da Rocinha, o jornal não retratou holisticamente as realidades da vida de muitos moradores da favela, que continuam presos no meio de uma luta de poder entre as duas forças conflitantes em sua comunidade.

No lugar de suas anteriores críticas e sensacionalismo sobre violência e a expansão na Rocinha, O Globo mudou a sua abordagem para focar nos ganhos positivos obtidos pelos moradores e programas governamentais na comunidade. O que poderia ter explicado essas mudanças no discurso? A necessidade de mostrar os atributos da cidade com a aproximação dos Jogos Olímpicos? Marketing do programa policial da UPP? Ou talvez uma combinação de tudo isso?

Independentemente da razão das mudanças no discurso em torno da Rocinha, essas alterações refletem uma nova conceitualização das favelas tanto na mídia brasileira como em seus leitores. Se os Jogos Olímpicos de 2016 realmente condicionaram uma mudança no discurso em torno dessas comunidades, o que acontecerá com a imagem pública de favelas como a Rocinha agora que os Jogos acabaram e a atenção mundial já não está no Rio?

Suzanne Caflisch possui bacharelado em Estudos de Paz e Conflito pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Após sua formatura, ela recebeu uma bolsa do Centro de Direitos Humanos da Universidade da Califórnia e atualmente trabalha em parceria com o Instituto Promundo pesquisando normas sociais na prática da exploração sexual de crianças e adolescentes no Rio de Janeiro.