Atualmente, o Rio de Janeiro está tendo um destaque especial, com atletas, fãs, nações e a mídia global refletindo sobre o ano restante para o início dos Jogos Olímpicos de 2016. A ênfase está na pergunta “O Rio estará pronto?” que coloca em questão se a cidade estará preparada para sediar, a tempo, as três semanas de eventos e se ela estará preparada para receber o evento olímpico e os visitantes. Porém, em comparação, pouco se tem escrito sobre o tratamento dado aos cariocas ou cidadãos do Rio de Janeiro e como a prefeitura está desenvolvendo o Rio para eles. Bem mais de R$24,1 bilhões serão gastos em projetos de infraestrutura e desenvolvimento em apoio aos Jogos Olímpicos, mas poucos moradores estão vendo melhorias. A qualidade de vida dos cariocas está melhorando? Ou simplesmente o dinheiro é gasto “para inglês ver” e em serviço aos interesses privados? Quais são as prioridades da prefeitura?
Três tendências preocupantes exacerbaram a marginalização dos moradores das favelas, abarcando os bairros mais vulneráveis da população do Rio: a situação crítica de saneamento e educação está sem solução, infraestrutura ostentosa tem passado na frente das necessidades básicas, e os interesses privados estão sendo priorizados. É hora de perguntar se a cidade está se vendendo, valorizando os consumidores em detrimento da cultura. A mídia local e global às vezes toma conhecimento do extravio generalizado das prioridades públicas, especialmente à custa das favelas, mas poucos têm capturado a magnitude do problema.
A Falta de Investimento nos Serviços Básicos
O saneamento, no Rio, atingiu um nível crítico. O Ministério das Cidades observa que “30% da população do Rio de Janeiro não está ligada a um sistema de saneamento formal, e até mesmo em áreas com conexões formais, apenas cerca da metade do esgoto é tratado, antes de entrar nos cursos das águas e, eventualmente, no oceano”. Este montante nem sequer é contabilizado em muitas das áreas informais da cidade. Deste modo, o atual percentual da população com saneamento formal é provavelmente inferior. Em comparação com São Paulo que tem 96,1% no acesso e Belo Horizonte com 100% de acesso, os números do Rio são incrivelmente baixos.
A falta de saneamento mata. O esgoto não tratado despejado no Rio Faria Timbó corre pelo Complexo de Manguinhos para dentro da Baía da Guanabara. Pelo menos três moradores de Manguinhos morreram devido à falta de saneamento em 2013. Moradores de favelas acostumaram-se às promessas não atendidas de melhorias na infraestrutura de saneamanto, por político após político, do Prefeito Eduardo Paes, do Governador Pezão, do Ex-Presidente Lula, e da atual Presidente Dilma Rousseff. Um estudo encomendado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz revelou que o gasto com saneamento é a melhor maneira de reduzir a pobreza, mas o governo tem deixado de lado o apelo para este investimento por moradores de favelas, e não tem abordado esta questão premente. Alguns moradores de favela, como os da Vila Kennedy, cuidam eles mesmos, temporariamente, do esgoto através de limpezas da comunidade no lugar dos serviços públicos, mas para o esgoto tal abordagem raramente é sustentável.
O efeito da falta de saneamento para as crianças é angustiante. Aqueles com acesso ao saneamento têm 18% maior realização educacional do que aqueles sem acesso. Com isso a falta de investimento em saneamento gera um conflito direto com o foco declarado tanto da prefeitura quanto do governo federal, em educação. Crianças no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas da Zona Norte do Rio, brincam em pilhas de lixo devido à falta de espaços de lazer formais. Um estudo mostrou que as áreas mais necessitadas da cidade têm espaços públicos abaixo do padrão, e até mesmo espaços de lazer outrora adequados têm caído em desuso. Pedidos para melhorias caem em ouvidos surdos.
O direito à educação é garantido pela Constituição Brasileira de 1988, mas as crianças nas favelas, freqüentemente, não têm acesso pleno a este direito. As aulas são interrompidas por ocasião das operações policiais e algumas escolas, até mesmo, estão servindo como bases permanentes de UPPs, que inicialmente estavam voltadas para ‘pacificar’ as favelas, através do policiamento comunitário. No entanto, nas comunidades da Zona Norte, em última análise, as UPPs comportam-se como força de ocupação. Em um dos casos, em 2013 no Complexo da Maré, a polícia armada colocou os alunos de uma escola contra uma parede e os revistou sem autorização e fechou as escolas por quatro dias. Soldados em veículos blindados fazem com que alunos de escolas se sentem no chão como se eles tivessem sido pegos em uma guerra. Baseada no Alemão, a instalação de uma UPP na escola Caic Theóphilo de Souza Pinto coincidiu com uma diminuição dramática na freqüência escolar. Buracos de bala nas paredes da escola testemunham a experiência dos estudantes com a violência em seu local de aprendizagem. Após uma reunião na comunidade em maio, as autoridades da UPP prometeram que a base seria removida da escola, mas até os dias de hoje a base ainda permanece. Outro lugar, experimentalmente, alocado para a construção de um campus universitário em 2011, foi ocupada pela UPP em 2012, e a universidade ainda está por ser construída.
A iniciativa UPP Social pretendia ir de mãos dadas com a pacificação policial, com o objetivo de “integrar” as favelas formalmente na cidade promovendo oportunidades para a participação dos moradores na orientação dos investimentos na comunidade. O esforço da prefeitura em rebatizar a UPP Social—como Rio+Social—é em si uma prova de que a iniciativa falhou. Muitos moradores de favelas não acreditam no compromisso declarado do programa com a participação. “Perguntam porque têm que perguntar, assim podem dizer que perguntaram”, disse um morador. Infelizmente, a “participação” comunitária normalmente é mais um processo de informar os moradores do que está para acontecer ou “uma consulta” aos moradores sem a intenção de implementar suas recomendações. Enquanto a responsável pela UPP Social, a ex-Secretária da Fazenda do município do Rio, Eduarda La Roque, declarou explicitamente: “Na realidade, as prioridades são as do Rio de Janeiro como um todo. Estamos pagando impostos para investir R$1,8 bilhões [na Rocinha], por isso a sociedade como um todo tem que identificar a prioridade. [Nós não] temos que satisfazer a demanda da favela”.
Investimento Público em Infraestrutura Equivocado
Quando o dinheiro público chega nas favelas, muitas vezes é para os projetos que os moradores não desejam, ou mesmo se opõem ativamente. Os teleféricos no Complexo do Alemão e Providência, e o projeto da construção de um na Rocinha, tornaram-se questões de discórdia. “É um presente indesejado”, disse José Martins de Oliveira, morador da Rocinha. Estes teleféricos podem custar centenas de milhões de reais e muitos acreditam que sua construção atende principalmente aos turistas. O que os moradores, de fato, desejam é a melhoria do saneamento e da educação.
Alguns moradores da favela elogiam as conveniências dos teleféricos, enquanto outros se queixam de que os teleféricos não suportam o transporte de materiais de construção, são inacessíveis para as pessoas com problemas de mobilidade, e até mesmo destrói casas. Moradores do Alemão e Rocinha estão tomando medidas legais contra o governo por violar a lei federal 10.257, que exige a participação pública nas intervenções do governo.
Em Contraste: Atendimento aos Interesses Privados
A imagem dos projetos do Rio para a Copa do Mundo e para os visitantes olímpicos está muito distante da vida da média da população. A pobreza e a exploração são varridas. A moradora da favela Maria Christina observou: “É tudo pra gringo ver. A mulata é contratada pra sambar e depois do expediente, volta pra favela pra dormir no barraco”. Há pouca distinção entre financiamento público e privado para os Jogos. O morador de Piedade, Fernandes Tavares, especulou: “Acho que tiraram de nossas crianças para fazer estádios”. Um morador da Penha questionou o porquê da prefeitura construir estádios modernos apenas para os Jogos se milhões de cariocas “não têm saúde pública, segurança ou educação de qualidade”.
Outra área de grande preocupação é a crescente privatização da cidade e a “venda” da cultura carioca. O aumento dos valores das propriedades fez as favelas e seus moradores personae non gratae. Aos moradores foi dito que suas casas estão “em risco”, mas muitas dessas “áreas de risco” estão localizadas nas partes mais lucrativas da cidade, ou aqueles com o maior potencial para se tornar lucrativo. O arquiteto Lucas Faulhaber observou: “As Olimpíadas não são o real motivo para as remoções. Elas servem como uma justificativa para legitimar as remoções, além de apressar o calendário dessas remoções. O real motivo é a especulação imobiliária”. Infelizmente, a maioria das comunidades não têm os recursos ou apoio técnico para questionar os vereditos do governo, como moradores do Santa Marta fizeram.
Mais de 70.000 pessoas foram removidas de suas casas entre 2009 e 2013, mas, apesar deste número (o maior da história do Rio), há pouca cobertura na grande mídia. Enquanto famílias removidas são frequentemente enviados para habitação pública na Zona Oeste, para áreas controladas por traficantes de drogas ou milícias, condomínios de luxo tomarão o lugar de comunidades onde as casas foram passadas de geração em geração. Muitos realocados estão tão longe de seus postos de trabalho que eles precisam pegar um segundo ou terceiro ônibus para comutar. Alguns moradores perderam seus empregos porque os empregadores se recusam a pagar estes custos adicionais.
Um dos efeitos colaterais mais devastadores de ambos os Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo de 2014 é a fetichização da segurança e a militarização da cidade. Moradores de favelas foram considerados perigosos e suas comunidades inseguras. As ocupações policiais muitas vezes vêem os moradores como ‘o inimigo’ de uma guerra. A Polícia Militar do Rio é estatisticamente uma das mais violentas do mundo e “mortes violentas com intenção desconhecida” estão em ascensão. O pesquisador Patrick Ashcroft escreveu para o RioOnWatch: “Em 2006, 1.676 pessoas foram vítimas de mortes violentas sem intenção determinada, mas em 2009 houve 5.647 casos, sendo responsável por 60% de todas as mortes violentas. O Estado, então, reavaliou algumas mortes daquele ano, levando o número até 3.587. Já o pesquisador do IPEA, Daniel Cerqueira, estima que cerca de 3.165 assassinatos em 2009 não foram reportados como tal… Em 2007, o ISP registrou o maior número de autos de resistência, o termo para as mortes causadas quando os suspeitos ‘resistem à prisão’, na história do Rio de Janeiro–1.330 em apenas um ano”.
Além da violência e das realocações, os Jogos Olímpicos também incentivam a desigualdade econômica. Os projetos olímpicos conduzem uma enorme transferência de riqueza para mãos privadas. As classes média e baixa são deixadas de fora deste suposto desenvolvimento da cidade. O geógrafo Christopher Gaffney argumenta que essas classes não terão quem responsabilizar depois que a estrutura de governança da Copa do Mundo e das Olimpíadas desaparecerem com o término dos jogos.
Políticas e projetos recentes sugerem que o governo acredita que o valor da terra é apenas medido em dólares ou reais, em vez de memórias e comunidade. Laços comunitários são quebrados quando escolas históricas são demolidas e museus são ameaçados de remoção. Um morador da Maré argumentou que a recente ameaça de remoção contra o famoso Museu da Maré estava vinculada à especulação imobiliária e ao desejo do Estado de “invisibilizar a cultura favelada”.