Na quarta-feira, 11 de maio, a candomblecista Heloisa Helena Costa Berto, mãe de santo Luizinha de Nanã, cuja casa e centro espírita na Vila Autódromo foi demolido para dar lugar ao Parque Olímpico, recebeu o Prêmio Dandara, da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O Prêmio Dandara foi assim nomeado em homenagem a guerreira que lutou ao lado de seu marido Zumbi, no Quilombo dos Palmares. O Deputado Estadual Flavio Serafini entregou o prêmio, criado para valorizar a mulher afrodescendente, latino-americana e caribenha no Estado do Rio de Janeiro.
O forte compromisso de Heloisa com sua fé, o Candomblé, e sua luta para salvar não apenas a sua casa, mas as casas de seus vizinhos na comunidade Vila Autódromo, fizeram dela uma escolha óbvia, disse Serafini, ao entregar o prêmio para Heloisa Helena, que foi a primeira a recebê-lo. Heloisa Helena também recebeu recentemente a Medalha Pedro Ernesto, da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, em reconhecimento a sua luta por moradia e direitos religiosos.
“Nossa realidade é construída por quem trabalha, por quem luta, por quem resiste. Nós não tivemos dúvida, depois de ter acompanhando o processo de luta da Vila Autódromo, que seria uma justa homenagem entregar esse prêmio para a Heloisa”, afirmou Serafini. Ele também reconheceu que a luta de Heloisa foi agravada pelo fato dela ser “da Vila Autódromo, negra e praticante de candomblé”.
Vários moradores remanescentes e ex-moradores da Vila Autódromo compareceram ao evento, e Flávio Serafini ainda dedicou o prêmio a todos aqueles que lutaram contra a especulação imobiliária e os abusos praticados na Vila Autódromo, que reproduzem séculos de práticas opressivas no Brasil. “Vocês são os nosso heróis, porque vocês constroem suas vidas com suas próprias mãos, com seu próprio trabalho sem passar por cima de ninguém, sem explorar ninguém”.
Uniram-se a Flávio Serafini, para homenagear Heloísa Helena, Maria da Penha, outra líder feminina da Vila Autódromo, a historiadora Katiuscia Barbosa e a Defensora Pública do Núcleo de Terras e Habitação do Estado do Rio de Janeiro e recentemente nomeada Superintendente do Incra do Estado do Rio de Janeiro, Maria Lúcia de Pontes. A cerimônia de premiação também foi uma celebração da cultura afro-brasileira, com apresentações de jongo do grupo Sopro de Gaia e de canto do grupo Awre.
Pontes, que, como defensora pública, esteve muitas vezes na linha de frente da luta da Vila Autódromo, ficou claramente comovida com a firmeza de Helena Heloisa em face da pressão psicológica que Heloisa sofreu, e que acabou por removê-la de sua casa. “Eu fui testemunha da luta de Heloisa, que se mistura com a luta da Vila Autódromo, mas tem um componente muito particular que é o componente da afrodescendência. O afrodescendente que mantém a sua origem, mantém a sua cultura e tem coragem hoje em dia de lutar por ela, ele sofre muito mais que os demais”.
Muitas das táticas da Prefeitura usadas contra Heloisa Helena se referem a esse preconceito em particular. A Prefeitura cercou sua casa e centro de Candomblé ao longo da lagoa no interior do canteiro de obras olímpico, forçando ela e sua família a ter de pedir permissão para usar uma entrada a 5 km de casa. Quando sua casa foi demolida, em 24 de fevereiro, a Prefeitura recebeu uma prorrogação judicial que permitia a demolição depois das 18 horas (o que não costuma ser permitido), com pouco tempo para salvar seus animais de estimação e recolher os itens religiosos que ainda restavam na casa. Ela ainda foi insultada e a fizeram esperar uma enorme quantidade de tempo, apesar do sofrimento físico, durante suas dolorosamente longas negociações com a Prefeitura.
“Queria te agradecer”, Maria Lúcia Pontes continuou, “por ter te encontrado, não foi em um melhor momento, mas com certeza [este encontro] me ensinou muito”.
Para a historiadora Katiuscia Barbosa, grande parte do desafio em combater o preconceito e o racismo no Brasil decorre do “trabalho muito bem feito” dos setores dominantes europeu e cristão da sociedade ao longo da história, de convencer os afro-brasileiros a rejeitar e depreciar sua própria cultura, a ponto de “o oprimido tornar-se opressor e querer ocupar este espaço que não é e nunca será dele”. Barbosa citou o atual “extermínio da juventude negra”, já que 77% dos homicídios no Brasil são de membros dessa população, como evidência do desrespeito pela negritude no Brasil e do contínuo “extermínio da cultura negra” desde o século XV.
Educação, de acordo com Barbosa, é o primeiro passo essencial para o desmantelamento da supremacia branca brasileira. Heloisa Helena, que graduou-se em uma faculdade aos 40 anos e conseguiu que seus quatro filhos cursassem universidades públicas de prestígio, é um exemplo do poder de uma educação que reconhece a rica história afro-descendente do Brasil.
Embora história e cultura afro-brasileiras sejam uma parte obrigatória do currículo desde 2003, seu ensino foi mal aplicado. A lei que determina seu ensino nas escolas brasileiras é como muitas outras leis e direitos no Brasil, bonitas no papel. Esse foi um tema ressaltado por Maria da Penha enquanto parabenizava a amiga e companheira de luta da Vila Autódromo.
Penha reconheceu que o acordo alcançado entre a Prefeitura e as 20 famílias remanescentes da Vila Autódromo foi uma vitória parcial, porém o trauma psicológico que a comunidade teve de suportar, juntamente com a quase total fragmentação dos laços comunitários, tornou a vitória amarga.
“Eu costumo dizer que 23 anos da minha vida foi de pesadelo. Porque todo ano nos éramos ameaçados de ter de sair daquela comunidade”, lamentou Maria da Penha. “Infelizmente, é muito duro, muito difícil você não ter tranquilidade na sua própria casa, na sua comunidade, na sua favela, onde você mora, que é o espaço que você tem e todos têm esse direito. Direito esse que, muitas vezes, quando os megaeventos ou o progresso chegam, os nossos governantes, que não sabem governar para o povo, tiram você de sua casa, da sua comunidade, da sua favela e cortam a sua história”.
Enquanto recebia o prêmio, Heloisa Helena declarou que o prêmio tem um significado maior, para além dela mesma.
“Eu estou imensamente feliz e emocionada com a presença de todos vocês. Sei que muitos vieram de longe para presenciar este momento de vitória, que na realidade não é só minha, mas de todos nós, negros, candomblecistas, favelados ou nas três condições, assim como eu. Porque esse prêmio representa um reconhecimento da luta do dia a dia de todos nós negros, que sofremos preconceitos velados diariamente, e ainda somos tratados como pessoas que exageram, como se não existisse preconceito racial nesse país, mas quem sofre sabe que o preconceito existe, muitas vezes disfarçado de gentileza e escondido através de piadas.
Esta premiação também representa uma vitória para nós candomblecistas. Embora meu objetivo principal de permanecer perto da lagoa de minha mãe Nanã não tenha sido alcançado, eu me considero vitoriosa. Pois consegui alcançar outros objetivos que jamais imaginei. Eu vejo o número de pessoas que se juntaram a mim nessa causa, pessoas de várias religiões que me apoiam, pelo direito de ser livre, para praticar uma religião e ter a posse da casa de minha mãe Nanã. Um apoio verdadeiro e permanente que me emociona sempre.”
Ela ainda agradeceu a muitas pessoas e organizações, incluindo seus vizinhos da Vila Autódromo, e todos aqueles que apoiaram sua luta. No final, Heloisa Helena chamou seu filho Pedro Henrique para dividir o prêmio com ela: “se eu sou Dandara, Pedro Henrique é Zumbi”.
Heloisa Helena vê o prêmio como apenas mais um passo em sua jornada por um Brasil mais inclusivo e tolerante. Ela espera abrir em breve uma ONG que ofereça oportunidades a outros negros moradores de favela e para combater o preconceito que continua a colocar as vidas dos afro-brasileiros em risco.