Uma explosão de cor. Glitter, lantejoulas, penas, música contagiante e, claro, samba sinalizam o começo do carnaval de 2018 do Rio de Janeiro. Mas este ano o carnaval tem uma diferença—a enorme falta de financiamento. Prefeito Marcelo Crivella reduziu o financiamento para o icônico desfile e festival de samba deste ano. O bispo evangélico é acusado de manter sentimentos profundamente negativos em relação às religiões africanas e de botar na mira a cultura afro-brasileira, que fazem parte da origem do carnaval do Rio.
O samba comemorou o seu centenário no ano passado (marcado pela gravação do clássico “Pelo Telefone“), mas hoje, como aconteceu há 100 anos, os ritmos contagiantes são sujeitos a restrições rígidas e são muitas vezes criminalizados, com eventos em toda a cidade sendo interrompidos pela polícia ou encerrados por completo.
Rio de Janeiro é o epicentro do samba, seu lar cultural. As letras de samba muitas vezes retratam as profundas desigualdades e opressões experimentadas por muitos moradores da cidade, como também pelas manifestações da cultura africana. Uma cultura passada por gerações, desde que 2 milhões de seus antepassados chegaram ao porto do Rio e outros no Brasil, para um total de 4,8 milhões de africanos escravizados trazidos para a nação (10 vezes o número que chegou nos Estados Unidos).
O tradicional desfile de escolas de samba no Sambódromo do Rio é o evento de maior destaque a ser afetado pela complicada relação de Crivella com a cultura popular afro-brasileira. Os ensaios técnicos, que geralmente atraem cerca de 50 mil pessoas, foram cancelados este ano devido à falta de financiamento. Esses ensaios dão aos cidadãos de baixa renda do Rio a oportunidade de ver escolas lendárias como Salgueiro, Portela e Mangueira, quando não podem comprar os bilhetes caros para o desfile oficial. Os ensaios são obrigatórios para o programa do carnaval desde 2002, e permitem às escolas de samba testar luz e som, além de executar seus passos na pista do Sambódromo.
O corte de financiamento público é uma queda gigantesca de 50% no apoio às principais escolas de samba, com cada escola recebendo R$1 milhão a menos do que os R$2 milhões anuais. Crivella sugeriu que a Liga das Escolas de Samba (Liesa) buscasse investimentos privados para conter o déficit, apesar do financiamento “privado” do carnaval do Rio comumente envolver investimentos pesados do crime organizado.
As escolas de samba se sentem traídas por Crivella, que durante sua campanha prometeu manter o apoio que as administrações anteriores deram aos desfiles, e até insinuou aumentar o apoio. Em um comunicado, o órgão municipal responsável pelos desfiles, Riotur, disse que “o desenvolvimento de mecanismos para atrair investimentos do setor privado para realizar o desfile de escolas de samba está em estudo”. Segundo Crivella, isso entrará em vigor para o desfile de 2019. “Teremos um carnaval espetacular no próximo ano, com mais fundos privados do que públicos”, afirmou o prefeito.
Mas, infelizmente, a repressão à cultura não pára por aí. A diversa cultura musical afro-brasileira do Rio de Janeiro, incluindo o samba de rua, vivenciou uma série de fechamentos e proibições nos últimos meses. Os incidentes em que a polícia encerrou ou tentou encerrar eventos incluem ensaios de blocos de carnaval de rua no Aterro do Flamengo em outubro, e outros eventos nas Zonas Oeste e Norte do Rio, como o Arena Carioca Dicró, na Penha. O popular grupo Passinho Carioca planejou terminar sua temporada na Arena com um grande show, mas o evento foi cancelado por ordem da Polícia Militar. Produtores e participantes regulares afirmam que não houve justificativa ou aviso para a ação.
Esses fechamentos aconteceram depois que um novo decreto foi introduzido pela prefeitura em maio do ano passado, que torna mais difícil para eventos de rua obterem uma licença. Em um vídeo postado em seu site, o Prefeito Crivella negou que o propósito do decreto era proibir atividades religiosas afro-brasileiras na cidade. “Isso [seria] completamente inconstitucional e mesmo que não fosse, eu não faria isso”, disse ele. Após uma onda de críticas, um tribunal decidiu que o decreto é, de fato, inconstitucional.
Felipe Duarte é um produtor de samba e organiza eventos de rodas de samba em toda a cidade. Ele notou um enorme aumento no número de encerramentos e seu evento na Praça Tiradentes, Pede Teresa, foi encerrado pela polícia.
“Além de Pede Teresa, ocorreram problemas em eventos no Parque Madureira, Pedra do Sal, e também Tambores de Olokun. Cada um com uma justificativa diferente, no entanto, sempre envolvendo a prefeitura ou a polícia. No nosso caso, a Polícia Militar afirmou que nossa roda de samba estimulou o crescimento da violência na área, devido ao fluxo de pessoas após o evento, atraindo os ladrões a lucrar com essa situação. Obviamente, a cultura não pode ser culpada pela violência. A responsabilidade cabe ao Estado, que deve nos proteger, nos respeitar e nos preparar para quaisquer exigências de segurança”.
Duarte afirma que informações adicionais provenientes da Polícia Militar mostraram que 75% do crime nessa localidade ocorre após as 4:30 da manhã. “Não houve uma justificativa plausível para a proibição, tendo em vista que nosso samba termina às 00:30. Ficamos extremamente frustrados com esta situação”.
Mas pode haver uma luz no fim do túnel. Uma nova lei foi aprovada no ano passado—a Lei Gamarra, que recebeu o nome de Pablo Amaral, conhecido como Gamarra, um conhecido e respeitado músico de samba que faleceu repentinamente no ano passado com apenas 37 anos. Reconhecendo o valor cultural do samba, a lei exige a preservação e a promoção do gênero. Duarte tem esperança, mas sabe que isso não será uma panaceia: “Certamente, a lei ajudará. Meu desejo é que esta lei preserve a memória de Pablo e garanta a soberania do samba do Rio, como ele sempre defendeu. Que o samba possa seguir o caminho que Gamarra ajudou a construir, e o de muitos outros sambistas que estão escrevendo essa história”.
Ele continuou: “Esta situação é extremamente importante. Os músicos de samba estão demandando, buscando proteção, conscientização e apoio. Como um sambista e amante da cultura popular, sou um daqueles que repreende o gerenciamento da cidade de [Crivella] e também acredito que os interesses religiosos podem interferir em algumas de suas decisões”. Segundo uma pesquisa realizada em outubro pelo Instituto DataFolha, o índice de aprovação de Crivella entre os cidadãos do Rio é de apenas 16%, enquanto 40% desaprovam o prefeito evangélico.
Um dos impactos mais recentes da repressão de Crivella a atividades religiosas e culturais foi o encerramento por tempo indeterminado da Casa do Jongo da Serrinha no mês passado. A casa cultural tradicional no bairro de Madureira, que abriga classes populares de dança e rodas de jongo afro-brasileiros, foi forçada a fechar porque o financiamento da prefeitura foi cortado. A Casa do Jongo não é apenas um espaço cultural—muitos a consideram o coração da comunidade. Os cortes de financiamento feitos pela administração Crivella não são apenas para parar festas de rua ou o tradicional desfile de samba—eles são direcionados sistematicamente a projetos culturais afro-brasileiros que são a força vital da cidade.
Crivella comparecerá relutantemente ao desfile de carnaval deste ano. Enquanto isso, além das manifestações culturais, os direitos humanos também estão sendo impactados pelo antagonismo do prefeito: a crescente intolerância com os praticantes de religiões afro-brasileiras e a sua cultura estão levando à perseguição de seus seguidores, com esses grupos se preparando para uma violência mais devastadora no próximo ano.
Crivella está no cargo há apenas um ano, enquanto a cultura afro-brasileira tem sido um alicerce da vida no Rio de Janeiro desde a fundação da cidade.