Esta é a contribuição mais recente da nossa série de matérias analisando as Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre Favelas do Rio, que faz parte do debate promovido pelo RioOnWatch sobre a narrativa e os retratos midiáticos acerca das favelas cariocas.
A cobertura da mídia internacional das favelas, em 2018, teve três marcos importantes: a intervenção militar no Rio, o assassinato da vereadora Marielle Franco, e as eleições de 2018. Como esperado, os direitos humanos (ou, mais precisamente, a sua dissolução e violação) foram destaque na cobertura das publicações—muitas das quais exploraram de maneira perspicaz questões complexas, impulsionando o debate de maneira produtiva, enquanto outras confundiram visões sobre a violência no Rio e recaíram em estereótipos previsíveis na ausência de uma análise mais criteriosa.
Sem subestimar a gravidade desses três momentos da história do Brasil, vale a pena destacar o vácuo na cobertura de outros tópicos—o que significa que as narrativas de violência e a preocupação geral com a segurança pública inundaram fortemente o cenário midiático de 2018 sobre o Brasil. Dito isso, neste momento crítico do Brasil, a centralidade da violência na mídia internacional não está de todo equivocada. Estando as favelas cada vez mais sujeitas a políticas de repressão, é absolutamente essencial manter um foco nas violações dos direitos humanos e alertar a comunidade internacional para essas violações. No entanto, a ênfase única na violência (e sua representação sensacionalista para atrair a audiência) frequentemente leva à cristalização de estigmas existentes e percepções errôneas das favelas como espaços urbanos intrinsecamente violentos e criminosos, de baixo valor. Representações sensacionalistas da violência não foram as únicas interpretações ruins observadas no cenário de artigos sobre favelas neste ano; foi notável o número de matérias longas e profundas, por publicações respeitáveis, que se basearam em argumentos falaciosos.
Em vez desse ciclo de notícias negativas que inunda nossos feeds e mídias sociais 24h por dia—muitas vezes levando ao desinteresse e dessensibilização do público, em vez de empoderamento e ação—é preciso haver uma mudança para notícias positivas e um jornalismo orientado para soluções. Com isso em mente, os destaques desta lista são artigos que evidenciam mobilizadores comunitários inspiradores e iniciativas de base comunitária, e que trabalham ativamente para desconstruir os estigmas negativos que são frequentemente associados a essas comunidades.
Esse trabalho é mais necessário do que nunca, já que a linguagem estigmatizante permanece comum—dificultando debates produtivos sobre as favelas. Utilizar termos pejorativos como ‘slum’ ou ‘shantytown’ em inglês para se referir às favelas é uma posição preguiçosa, desnecessária e inconsistente com a realidade. Apesar do subinvestimento crônico nos serviços básicos, as favelas são, em geral, comunidades culturalmente vibrantes, centrais para a economia da cidade abrigando uma população trabalhadora e predominantemente de classe média. As consequências negativas do estigma sobre a favela não são apenas uma teoria: narrativas unilaterais preconceituosas acerca das favelas, vistas como locais de pobreza reduzidos à precariedade e violência, colocam barreiras concretas à inclusão dos moradores, encorajando as próprias políticas de repressão e negligência que dão origem (e perpetuam) a estigmatização das favelas. Dessa forma, há muito tempo estimulamos a mídia internacional a introduzir mais nuance em suas reportagens sobre as favelas, combatendo o estigma, e a chamando as favelas simplesmente de favelas.
Aqui apresentamos as melhores e piores análises internacionais sobre as favelas feitas em 2018.
Melhores Reportagens
Intervenção militar
Com sensibilidade, o Huffington Post situa a atual intervenção militar no Rio no contexto da formação, ao longo de uma década, do aparato repressivo de segurança pública. Ao redigir seu argumento, o autor se encarrega cuidadosamente de cada alegação a partir de dados confiáveis e de depoimentos pessoais convincentes de grupos de direitos humanos e políticos e, o mais importante, de relatos de moradores de favelas. Entrevistada para a matéria, a jornalista comunitária e moradora da Maré, Gizele Martins, descreve as prioridades equivocadas do governo ao trazer tanques em vez de serviços sociais para sua comunidade: “Em nossa história, tivemos um soldado para cada 55 habitantes, mas nunca tivemos um médico ou um professor para cada 55 habitantes”.
O jornal The Guardian forneceu, de forma consistente, algumas das melhores e mais variadas coberturas da intervenção militar no Rio. Contou, por exemplo, a narrativa de uma família cuja vida foi atravessada pela morte violenta de Márcio Sabino, de 21 anos. Este artigo do The Guardian faz a ligação, de forma eficiente, de um ato de violência grave com os problemas estruturais que a intervenção militar não consegue erradicar. Além de denunciar os abusos de direitos humanos cometidos pela polícia e pelos militares, o The Guardian forneceu excelente cobertura sobre a milícia, organização paramilitar composta de policiais e bombeiros aposentados ou fora de serviço, com amplo alcance na Zona Oeste do Rio, cujos membros incluem indivíduos envolvidos no assassinato de Marielle Franco.
O legado de Marielle
A notícia do assassinato de Marielle reverberou em todo o mundo e a quantidade de artigos produzidos sobre o tema atesta a magnitude de seu legado. O The Intercept se destacou de forma consistente por suas reportagens detalhadas sobre a vida, a morte e o legado de Marielle. Esta reportagem do The Intercept oferece explicações sobre o aparato de segurança profundamente falho que Marielle tentou transformar, concentrando-se em um de seus projetos mais importantes: denunciar as mortes de jovens negros nas favelas. O artigo representa o jornalismo ativista no que há de melhor, detalhando cuidadosamente o que é conhecido sobre as vidas e mortes desses jovens e destacando o movimento de solidariedade que foi desencadeado após o assassinato de Marielle: levando implicitamente os leitores a dizerem os nomes dessas vítimas e se recusando a deixar os ideais pelos quais Marielle lutou morrerem com ela.
Em meio a um frenesi da mídia após o assassinato de Marielle, também no The Intercept, Glenn Greenwald alerta sobre a tentativa da mídia nacional brasileira de encobrir e explorar o radicalismo político de Marielle—fazendo uma analogia às táticas usadas pela mídia americana para apagar o verdadeiro legado de Martin Luther King Jr. como um opositor político radical. Embora reconheça o significado da proeminência de Marielle na grande mídia brasileira, Greenwald identificou de forma pungente a distorção de sua vida e legado na narrativa da Globo—que encobriu a natureza profundamente política do brutal assassinato de uma incansável ativista pelos direitos humanos determinada a mudar as estruturas de poder. A matéria do ativista americano Shaun King para o The Intercept também se apresenta como uma contribuição perspicaz para o debate, pois traça paralelos interessantes entre a violência policial nos EUA e no Brasil e aponta para a urgência de cultivar a solidariedade internacional, “conectando [as] lutas nos EUA àquelas no Brasil.”
Traçando a trajetória de Marielle, da Maré até a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, a Next City detalha várias de suas principais propostas e posições políticas. O City Lab situa de maneira apropriada a intervenção militar no contexto dos próprios sistemas a que Marielle dedicou sua luta: o racismo institucionalizado e a criminalização da pobreza. Em artigo para a Americas Quarterly, Theresa Williamson—fundadora e diretora executiva da Comunidades Catalisadoras*—destaca a coragem e persistência dos líderes comunitários determinados a continuar a luta de Marielle contra a violação sistemática dos direitos dos moradores das favelas.
Por fim, essa reportagem da TIME, que concedeu à mãe de Marielle, Marinete da Silva, espaço direto de reflexão acerca da memória da filha, em suas próprios palavras e em uma grande publicação internacional, não deve passar desapercebida. A mensagem de Marinete é ao mesmo tempo uma mensagem sobre perda e esperança. Devastada pelo silêncio ensurdecedor das autoridades acerca do assassinato de sua filha, mas fortalecida pela solidariedade gerada após o trauma, ela descreve: “Eu sinto a presença de Marielle em cada gesto de solidariedade—solidariedade que leva à esperança de esclarecerem o que levou alguém a cometer tal atrocidade naquela noite. Marielle trabalhou para responsabilizar o sistema e incomodou as pessoas por ser uma mulher negra da favela que ousou estar em um espaço que historicamente não era ocupado por pessoas como ela”.
Eleições de 2018
Uma dessas manifestações de solidariedade foi a proliferação de candidatos de favelas determinados a reivindicar espaços dos quais historicamente foram barrados. Enquanto grande parte da cobertura estava centrada na narrativa do “Trump tropical” em ascensão e na prevalência de notícias falsas, Bloomberg, The Guardian e Okay Africa produziram excelentes perfis com novas facetas da resistência—as candidatas negras das favelas. A OZY também contou sobre o surgimento de novas plataformas de representação, como o partido político Favela Frente Brasil, voltado abertamente para as favelas.
Por fim, fornecendo uma análise sutil da ascensão política da extrema-direita e desmentindo as percepções errôneas comuns acerca da popularidade do presidente eleito entre as populações de baixa renda e de favelas, está a contribuição de Matthew Richmond para o Jacobin (traduzida para o português aqui), cuja leitura é obrigatória.
Notícias Positivas
Na Ponta dos Pés—projeto de balé no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio—foi destaque no curta-metragem da Vice “Balé e Balas: Dançando para Fora da Favela”. Ainda que o título flerte com o sensacionalismo, tanto o filme quanto o artigo da Vice que o acompanha atestam o papel das favelas como incubadoras culturais vibrantes—reconhecendo a “forte tradição de ação cívica” das favelas e apontando para o “poder da cultura como força de resistência e mudança”, especialmente no atual clima político.
O New York Times apresentou lindamente outro projeto inspirador de dança da comunidade, o Ballet Manguinhos. Ao destacar o balé como uma fuga da realidade cotidiana dos estudantes numa comunidade onde os investimentos não chegam, o autor destaca o potencial transformador da dança como porta de entrada para a consciência social e política—destacando uma apresentação da coordenadora do projeto, Daiana Ferreira de Oliveira, cuja performance transgressiva é denuncia às autoridades a negação aos moradores da favela do direito à cultura.
O jornal The Guardian celebra a publicação da coleção de contos aclamados pela crítica “O Sol na Cabeça”, de Geovani Martins, da Rocinha. Elogiando o manejo delicado e matizado de Geovani no trato das questões de racismo e violência, o artigo descreve que “nas mãos de um autor menor”, essas narrativas “poderiam ser sombrias e implacáveis. Mas Martins os transforma em tensos e coloridos retratos da vida nessas comunidades movimentadas”.
O filme “Resistência: Outra Cara da Moda no Rio de Janeiro”, de Geoff Levy, incluído na seleção de curtas do The Atlantic, representa ainda outra entrada para as diversas iniciativas criativas nascidas nas favelas. O filme aborda o estigma da favela de frente, destacando a agência de modelos Jacaré Moda—com sede no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A breve nota do The Atlantic elogia o “ethos engenhoso da comunidade” e reconhece o poder transformador de iniciativas comunitárias como a Jacaré Moda—ampliando o horizonte de possibilidades para jovens negros de favelas e periferias ao introduzi-los em uma indústria em que falta representatividade. Nas palavras de Natalia Sant’anna, modelo apresentada no filme: “Quando dizemos às pessoas que somos da favela, elas automaticamente pensam em perigo, violência, confusão ou desvalorização… Claro, há coisas ruins, mas há muitas coisas boas também. É um mundo mágico”.
Finalmente, o City Lab destacou o próspero movimento de sustentabilidade nas favelas do Rio, apresentando iniciativas de hortas comunitárias nas comunidades da Zona Sul, Vidigal e Cantagalo—iniciativas que geram não só produtos orgânicos, mas também ambientes saudáveis e um sentimento de orgulho para a comunidade.
Piores Reportagens
A cobertura da Associated Press sobre a candidatura de Romário ao governo do Estado se destacou pelas alegações escandalosas, pela linguagem estigmatizante e por caracterizações genéricas sobre as favelas, retratadas como locais de violência, todas dominadas por poderes paralelos. Segundo a análise acerca da recepção das favelas (nenhuma favela específica dentre as mais de 1000 favelas do Rio é denominada) ao ex-astro de futebol, “mulheres em seus barracos sopravam beijos de varandas improvisadas e homens armados acenavam”.
O tablóide britânico The Sun não conseguiu, em sua matéria cheia de legendas acríticas, dar conta da performance de carnaval da escola de samba Beija-Flor, um ato político que denunciava as políticas fracassadas de segurança pública. Em uma das legendas, sem contexto, se lê: “’Slums it up’… Este carro alegórico chocante apresenta uma mini favela completa, com gângsteres armados”.
As menções (des)honrosas incluem esta reportagem da Agence France-Presse, coletada pelo Yahoo News, que tipifica favelas como “comunidades assoladas pelo crime” e as supostas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como “unidades de paz”; este artigo do Rio Times, que propaga a narrativa enganosa de que as favelas desfrutavam de “paz e prosperidade” sob o controle das UPPs antes dos megaeventos; e este artigo do Urdu Point, que começa com a afirmação de que as favelas são “devastadas pelo crime”, seguidas por um relato amplamente simplificado da intervenção militar.
Margem para Melhorias
À primeira vista, a Reuters conta uma história sobre transformação, liderada pela comunidade diante da negligência do governo, concentrando-se nos desafios da posse de terra na favela de Canaã, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. Apesar dessa promessa, o artigo está repleto de uma linguagem estigmatizante—reduzindo o inspirador líder comunitário, central para a história, a uma caricatura, chamando-o de “guerreiro do slum” e insistindo na precariedade da comunidade, considerando-a um “assentamento desmoronado”.
Fazendo da favela da Rocinha um símbolo dos altos e baixos da economia brasileira, este artigo do Washington Post, em grande parte bem escrito, ficou aquém do seu potencial ao incluir uma linguagem simplista (e incorreta) em uma reportagem de alta qualidade. Baseia-se lindamente na narrativa pessoal de uma família afetada diretamente pela violência armada no contexto político e econômico mais amplo que sustenta o atual estado de segurança pública no Rio. No entanto, o foco na perda de status da Rocinha—chamando a comunidade de “uma favela que uma vez foi moda” e “outrora a favela vitrine da cidade brasileira”—não revela o que realmente está em jogo: os direitos fundamentais e a vida da população local. Mais ainda, o artigo ancora sua descrição da comunidade no paradigma estigmatizante da precariedade e depravação, descrevendo a Rocinha como uma “favela nas encostas”, cheia de “cabanas em ruínas”—afirmações que são simplesmente inconsistentes com a realidade desenvolvida da comunidade. As lentes acríticas pelas quais os autores pintam a especulação imobiliária e a apropriação da estética da favela também chamam a atenção, descrevendo o aumento dos “valores das propriedades onde estão localizados os barracos da Rocinha—alguns com vistas milionárias da estátua do Cristo Redentor no Corcovado”, como uma indicação da prosperidade da comunidade em anos anteriores.
Outro artigo do Washington Post fornece um notável e profundo exame da intervenção militar na Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio—mas, manchada pela linguagem estigmatizante e repleta de generalizações, deixa muito a desejar. Intitulado “Parar e revistar? Essa pobre comunidade no Rio diz sim, por favor”, o artigo reduz a diversidade de perspectivas da favela ao sugerir que a comunidade apóia unanimemente a intervenção. A própria Vila Kennedy é estereotipada como “uma violenta shantytown de casas de alvenaria”—uma acusação mal colocada, visto que “shantytown” faz alusão à precariedade de estruturas construídas de materiais como madeira e metal corrugado–e não a alvenaria (originalmente construídos como parte de um plano de desenvolvimento habitacional planejado pelo governo). Além da Vila Kennedy, os autores atribuem essa visão singular a grandes parcelas da população que moram em favelas em toda a cidade: “Em vez de ver a mudança como uma invasão, moradores cansados da violência das favelas a saudaram como uma libertação”. Outra declaração sem fundamento se destaca: “No Rio, a cidade dos Jogos Olímpicos de 2016 é agora uma memória distante.” Ao contrário da alegação dos autores, a “cidade olímpica de vitrine” não é uma memória distante—simplesmente nunca se concretizou em realidade para os moradores das favelas. Por trás da cortina de fumaça do júbilo olímpico em determinados espaços da cidade (ou seja, aqueles sujeitos ao olhar do turista), favelas e periferias em toda a cidade foram alvo de políticas de intensa repressão com consequências fatais ao longo do período dos megaeventos.
O Globe Post segue o mesmo exemplo com a sua análise da intervenção militar. A aparência de um artigo legítimo e bem fundamentado esconde seus inúmeros equívocos, imprecisões e falácias lógicas. Com base na noção de que o problema da violência está na presença de poderes paralelos nas favelas, onde “uma ordem alternativa foi construída” e organizações criminosas se tornaram “os ‘donos’ do território”, o autor argumenta que a violência é um problema da “fraqueza institucional”. A narrativa é desinformada: atribuindo a violência do Rio a uma “falta de reconhecimento da legitimidade do Estado e da polícia”, o autor falha em contemplar as condições estruturais—desigualdades sistêmicas, racismo institucional e criminalização da pobreza—que aludem não à ausência do governo, mas sim à sua presença seletiva.
*RioOnWatch é um projeto da Comunidades Catalisadoras (ComCat).