Essa matéria oriunda da Vila Nova Jaguaré, é a décima de uma série sobre o impacto da pandemia do coronavírus no dia a dia das favelas, em parceria com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego.
A Vila Nova Jaguaré é uma das maiores favelas da cidade de São Paulo em área contínua, e está situada no distrito de Jaguaré, um dos primeiros bairros planejados na Zona Oeste da capital paulista. O bairro foi projetado na década de 1930 para abrigar o Centro Industrial Jaguaré, que se transformou em um dos principais polos industriais da década de 1970.
Devido à alta demanda por moradia, uma área destinada para ser um parque público de 160.000 m² no bairro, começou a ser ocupada entre as décadas de 1960 e 1970, formando a favela Jaguaré, que é hoje chamada de Vila Nova Jaguaré. A favela tem atualmente 12.000 habitantes e guarda uma história de luta popular intensa pelo direito à cidade e à moradia. Foi somente nos anos 2000 que a favela foi efetivamente consolidada e reconhecimento pelo poder público.
Meu nome é Thuane Ainy Campos Barretto e minha história com a Vila Nova Jaguaré é de um constante “vai e volta”. Morei no bairro por mais de dez anos e a última mudança foi em 2013, mas meus tios e avós ainda continuam morando lá. Eu estou diariamente na comunidade porque atuo como atriz e monitora das atividades culturais do Projeto PALCO, baseado na comunidade.
Para compor este relato entrevistei a moradora, atriz e dramaturga de Vila Nova Jaguaré, Andreza Santos Rodrigues—que se uniu a mim na composição deste texto—e juntas entrevistamos Urideia Andrade de Costa, que está à frente do Projeto Mobiliza Jaguaré junto ao Projeto PALCO e também é moradora da Vila Nova Jaguaré.
Ouço o discurso de que a pandemia é democrática, mas sinceramente não sei qual o ponto de vista para se afirmar tal coisa. O que me disse Urideia, em entrevista por telefone, revela uma outra perspectiva: “Como a gente se protege? Isolamento com dois cômodos para quatro, seis, oito pessoas? Sem condições de comprar um leite, que dirá um álcool em gel e sabão para se higienizar! A única proteção para a maioria dos moradores daqui é a fé em Deus. Os moradores estão ansiosos para entender o que vai acontecer com eles daqui para frente. Muitos não têm o que comer”.
Urideia, que é dona do buffet Flor de Mandacaru, em Jaguaré, também deu suas impressões sobre a situação do comércio e falta de dinheiro no bairro provocada pela pandemia: “Os comércios estão parados. Muitos geram empregos para os moradores da comunidade, que pagam aluguel e não sabem como ficará tudo isso com o aumento do desemprego. Por isso, é importante impulsionar a economia local para que estes comerciantes não venham abrir falência. Dá para ver o desespero dos comerciantes, que sofrem com a diminuição em suas vendas. É um momento delicado para todos”.
A desigualdade social, portanto, é visível em seu relato. As condições desiguais de renda, moradia e fome, não permitem que a Covid-19 seja uma doença democrática. “Já falta dinheiro para comprar o essencial! O alimento não está mais chegando à mesa. O consumo de alimentos para toda a família, o dia inteiro em casa é muito maior. A mãe já não trabalha, o pai olha para o canto da casa e não vê nenhuma oportunidade, as crianças pedem um biscoito e não têm. É triste. Sem expectativas para comprar a comida, e ainda sem expectativas de tudo isso acabar”, relata Urideia.
“Têm pessoas fazendo campanhas para arrecadar alimentos para as famílias que estão em situação de vulnerabilidade social. Isso não resolve, mas ajuda a minimizar a situação. Os moradores estão em busca do apoio [auxílio emergencial] prometido pelo governo. Isso irá aliviar esse período de isolamento. A união das pessoas está cada dia mais forte. O olhar de comoção pelo que está acontecendo com o outro. O sentimento de que estão todos no mesmo barco faz surgir a vontade de ajudar e compartilhar com quem nada têm”, ela concluiu.
Atualmente, está ocorrendo o movimento “Mobiliza Jaguaré“, uma parceria entre o buffet Flor de Mandacaru e Projeto PALCO. Juntos, eles promovem uma campanha de arrecadação de dinheiro para a realização de ações no bairro como montagens de cestas básicas, que são compradas nos mercados locais e entregues às famílias mais vulneráveis. Em 15 dias, o movimento já conseguiu: R$17.765,00, com 137 famílias beneficiadas, e mais 40 que ainda serão beneficiadas com este recurso. Com essa ação, sete comércios locais também foram beneficiados e 29 voluntários se envolveram no projeto. A campanha continua, tendo 142 famílias em lista de espera.
Ao ser entrevistada, Andreza me contou que escrevia relatos do cotidiano da pandemia em forma de diário, então a convidei a ser coautora deste presente relato, incorporado seu texto redigido em primeira pessoa.
O testemunho de Andreza marca não apenas o cotidiano, mas as dificuldades de viver sob os efeitos da pandemia sendo autônoma e artista dentro da favela:
“Não sou mãe, não sou avó, não sou tia de ninguém, mas sou irmã, sou filha, sou gente. Não sou rica, não sou assalariada, sou autônoma, sou artista. Não pago aluguel, mas pago água, energia, gás. A vida é muito mais difícil para um periférico, ainda mais artista. Eu? Ficar em casa? Eu fico. Com medo de uma coisa que é invisível. Um espirro que solto não sei se é a Covid-19 ou só o pó do meu quarto, não sei. Não sei de nada.
Faço minha arte nessa quarentena e eu compartilho, não cobro nada por isso. Não posso sair para ensaiar, não posso sair para correr atrás de figurino, não posso sair para me inspirar, tem que ser tudo aqui dentro da minha casa. Aqui tem muita poesia, porque eu sou artista, isso me alivia, mas também me desespero. Vejo a água do café fervendo, eu já corro para desligar o gás, para não gastar. Eu não sei quanto tempo esse filme de terror vai durar. Eu não sei quanto tempo a minha calma vai durar. Não sou mãe, não sou avó, não sou tia, mas pode ter certeza que carrego as mesmas incertezas que elas.
Eu escuto criança gritando o dia inteiro, cachorro latindo, o dia todo aqui. Não vejo muita coisa porque eu estou seguindo o que a OMS falou para fazer, ficar em casa. Pouca gente periférica fica em casa. Eu fico porque não tem o que eu fazer. Não tem onde trabalhar. Eu preciso de dinheiro, mas preciso ter saúde também. A escolha periférica é: ser mais pobre ainda com saúde ou ser pobre sem saúde? Escolhi ser mais pobre ainda com saúde para quando tudo isso acabar, eu ter como correr atrás de novo e de novo.
Fui ao mercado ontem, era minha terceira vez saindo de casa desde o dia 16 de março, quando trabalhei pela última vez e vi a peruinha do churros funcionando, o bar aberto, a quitanda da Dona Neti aberta, o mercado aberto. E nos caixas tinham um vidro entre o funcionária e o cliente, parecia que eu estava na lotérica. Os velhinhos, que ficam todo dia na calçada do mercado, já não estavam mais lá. As pessoas que estavam na rua se olhavam como se estivessem procurando a Covid-19 umas nas outras, mas eu também estava fazendo isso.
Na semana, é tudo mais silencioso. Fim de semana, a gente escuta uma mistura de som. Isso não mudou! Fim de semana é dia de escutar música na favela, bem alto, parece que a gente cansa de ouvir nossos pensamentos, nossas incertezas e liga o som. Eu não fazia isso, mas tenho feito. Ligo minha caixinha de som e, arrumando meu quarto, escuto música.
Eu vejo na televisão a galera fazendo “Panelaço”. Acho muito bom o grito do povo saindo, mas você acha que eu posso bater panela? Quem vai consertar? A gente sabe que isso não funciona! Para! Vai dizer que estou descrente, sem fé? Eu só estou apontando as minhas convicções. Não posso bater panela e nem estragar a concha do feijão! Tenho que fazer comida. Comida é mais importante do que estragar a minha panela para um cara que faz pronunciamento dizendo que ‘infelizmente algumas pessoas vão morrer mesmo’. Meu manifesto é outro, e é o que posso fazer agora: ficar em casa, manter minha casa limpa, sair dessa e voltar a trabalhar. Têm dias que acordo positiva, têm dias que acordo na fúria. Mas adianta ficar enfurecida? Ninguém está vendo a fúria, o desespero, a agonia, a incerteza periférica. Do lado de lá, estão vendo só tijolos e telha, esgoto a céu aberto, não olham as pessoas, só olham o lugar e ponto”.
Thuane Ainy Campos Barretto é atriz e dramaturga no Grupo de Teatro TÔ EM OUTRA! Cia. de Teatro, o qual fundou junto a amigos em 2012. Psicóloga, formada em 2019 pela Universidade Paulista, atua no Projeto PALCO desde o início de 2020, em Jaguaré, no monitoramento das atividades.
Andreza Rodrigues é atriz e dramaturga. É moradora da favela Vila Nova Jaguaré e iniciou sua carreira artística pela Cia, de Teatro Vizinho Legal, em 2008 (atualmente Cia. PALCO). Também é uma das fundadoras do grupo de teatro TÔ EM OUTRA! Cia. de Teatro, no qual escreveu os espetáculos “Das ruas um Orfeu de mochila” e “Um tempo para o infinito”. Andreza é formada em Fotografia pela Universidade Paulista.