Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos nas favelas.
Um novo estudo do instituto de pesquisas Data Favela, uma parceria entre a Central Única das Favelas (CUFA) e o Instituto Locomotiva, traçou o alastramento da pandemia de coronavírus e o impacto econômico negativo em favelas pelo Brasil, reforçando problemas que já haviam surgido com as altas taxas de infecção.
De acordo com o estudo, quatro de cinco famílias de favelas (80%) pelo país estão vivendo com menos de metade da renda que recebiam antes da pandemia. Desses 80%, mais de um terço relatou ter perdido toda a sua renda familiar, enquanto apenas 9% do total não tiveram alterações na receita ou apenas uma pequena queda.
Durante um debate online sobre as descobertas do estudo, Raull Santiago, cofundador do Coletivo Papo Reto, um coletivo de direitos humanos e comunicação das favelas do Complexo do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio, disse que a pandemia estava apenas “expondo o processo de exclusão histórica” nas favelas. 76% dos entrevistados, pelo estudo, disseram que já passaram por pelo menos um dia sem poder pagar por comida. Dois de cada três disseram que podiam apenas se manter financeiramente por uma semana sem trabalhar. 29% disseram que não poderiam se manter por um único dia.
O estudo foi realizado através de 3.321 entrevistas digitais, conduzidas entre 19 e 22 de junho com moradores de 239 favelas diferentes em todos os 26 estados brasileiros. Os entrevistados foram selecionados a partir de um conjunto de amostras pré-selecionado a fim de oferecer uma diversidade de região, idade e ocupação.
O estudo enquadra seus resultados no contexto estrutural das favelas brasileiras, marcadas por famílias grandes, altos índices de coabitação, dependência do sistema público de saúde, baixos níveis de poupança e índices inferiores de escolaridade. Todos esses fatores servem para aprofundar a crise.
Os Desafios do Aprendizado Remoto
Além da perda de renda, o fechamento das escolas como resultado da pandemia tem aumentado a pressão sobre as famílias das favelas. 87% das famílias cujas crianças pararam de frequentar a escola viram seus gastos domésticos aumentarem como resultado disso—anteriormente, elas contavam com as escolas para prover comida e cuidado às crianças enquanto seus pais trabalhavam. Da mesma forma, 81% dessas famílias relataram que, como resultado de terem suas crianças em casa, estava sendo mais difícil saírem e trabalharem.
Famílias de favelas também reportaram preocupação generalizada sobre a qualidade da educação que as crianças estão recebendo enquanto as escolas estão fechadas. Dos pais com crianças em idade escolar, 84% não acreditam que o ambiente doméstico seja adequado para que aprendam e estudem. “Tenho sofrido bastante com isso“, disse a rapper Gisele Gomes, 43, cria do bairro Brás de Pina, Zona Norte, e mais conhecida por seu nome artístico, Nega Gizza. Com suas crianças em casa, ela contou: “Tento ser uma pedagoga, coisa que não sou, e não funciona“. Essa pressão é enfrentada por mães em todo o Brasil.
A falta de acesso a computadores e à internet tem um grande papel nesses desafios. “É uma ilusão achar que o ensino remoto vai chegar na maioria das famílias brasileiras que estão nas escolas públicas“, comentou a socióloga Neca Setúbal. “Temos que ter internet de qualidade para todos, é um direito e a pandemia nos mostra isso com muita clareza“. Cerca de 30% dos lares brasileiros não têm acesso à internet, de acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC).
Marlova Noleto, diretora da UNESCO no Brasil, lamentou que, inevitavelmente, “as desigualdades educacionais se aprofundarão ainda mais” como resultado da crise.
Percepções do Coronavírus e os Desafios das Medidas Preventivas
O estudo descobriu que as percepções sobre a pandemia entre moradores das favelas variam amplamente. Enquanto 52% acreditam que o Brasil está atualmente no meio da pandemia, 33% acreditam que a pandemia ou está em seu estágio final, ou já terminou, ou nunca existiu.
Contudo, há muito mais consenso sobre a preocupação e o estresse que a pandemia trouxe. 89% expressaram ansiedade quanto à saúde de parentes mais velhos e 88% se preocupam sobre seu próprio bem-estar financeiro.
80% dos entrevistados relataram que estão tentando seguir as instruções de isolamento físico, com 39% dizendo que, apesar de tentarem, não conseguem sempre cumprir. Daqueles não seguindo medidas de prevenção, 72% atribuíram isso à necessidade financeira. Ao mesmo tempo, 45% acreditam que as medidas são desnecessárias e 9% admitem haver fatores políticos na sua falta de cumprimento das medidas. O Presidente Jair Bolsonaro encorajou seus apoiadores a interpretarem o coronavírus como uma “gripezinha” e criticou o distanciamento social.
Importância de Doações e Apoio Comunitário
Uma efusão de ajuda mútua nas favelas nos últimos meses levou Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva, a declarar: “Não é a favela que tem que aprender com o asfalto; é o asfalto que tem muito a aprender com os 14 milhões de favelados no Brasil”. Enquanto 49% dos brasileiros realizaram algum tipo de doação durante a pandemia, esse número aumenta para 63% entre moradores de favela, o que indica maior solidariedade e generosidade entre aqueles que têm menos.
Nove de cada dez moradores das favelas receberam alguma forma de doação, com 91% deles tendo recebido alimentos. 69% dessas doações vieram de ONGs ou empresas, 52% veio de vizinhos, amigos ou parentes, e apenas 36% vieram do governo.
Apesar de sete em dez famílias terem se inscrito para receber o auxílio emergencial do governo federal, aprovado pelo Congresso Nacional em abril, 41% dessas famílias ainda não receberam nenhum benefício.
“A ausência do Estado é o próprio resumo do que significa o poder público em relação às favelas e periferias“, apontou Raull Santiago.
Daqueles que receberam esse auxílio, 96% o usaram para alimentação e 62% 0 usaram para ajudar amigos e parentes.
O relatório do Data Favela também destacou o trabalho do Mães da Favela, um programa que distribui alimentos e renda de apoio a mães da favela. Das famílias que receberam esse auxílio, oito de dez disseram que não foram capazes de se alimentar, de comprar produtos de higiene e limpeza, ou de pagar contas básicas sem a doação.
Neca elogiou o foco do programa no empoderamento das mães, enaltecendo suas conquistas e dizendo que “a liderança feminina tem um olhar mais sistemático” ao abordar questões fundamentais. “Eu vi várias experiências de mulheres que estão se responsabilizando pelos cuidados com suas regiões, com seus bairros. E [vi] a força de muitas mulheres, chefes de família, que conseguiram pensar para além de suas próprias famílias. Elas têm cuidado com a comunidade e solidariedade”.
Celso Athayde, fundador da CUFA, encerrou o evento de divulgação do estudo com uma mensagem inspiradora: “Favela não é um espaço de carência, mas de resistência, e extremamente de potência“.