Covid-19 No CEP 23000: Racismo Estrutura Letalidade em Campo Grande, Parte 2

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Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas e é a segunda parte de uma série de duas matérias que analisa a desigualdade da letalidade da Covid-19 entre dois bairros da Zona Oeste, a Barra da Tijuca e Campo Grande. A matéria foi escrita pelas integrantes da Teia de Solidariedade Zona Oeste.* Para a parte 1, clique aqui.

Esta segunda parte analisa uma série de dados—que possibilita a leitura de outras desigualdades estruturais—e a invisibilização de dados que impede que a população, em geral, tenha um panorama claro da sua realidade local frente à pandemia.

CEP 23000

Vamos olhar mais de perto. Vamos abrir a caixinha dos indicadores e entender as distâncias sociais e geográficas que separam os dois bairros da Zona Oeste já mencionados, na Parte 1 desta série: Campo Grande e Barra da Tijuca. Diferentes na paisagem e com um fosso de desigualdades raciais—com indicadores suprimidos das análises midiáticas do horário nobre—não é diferente da imagem do Brasil como um todo. De acordo com Jorge Abrahão, coordenador-geral do Instituto Cidades Sustentáveis, enquanto, em geral, os fatores de risco da Covid-19 são relacionados à idade avançada e às comorbidades, no Brasil, o principal fator de risco é o CEP, dado que demonstra a matriz de iniquidades e a triangulação de dados que espacializam a opressão social.

Na figura que se segue apresentamos a expressão desta constatação sobre a taxa de letalidade da Covid-19 entre os bairros onde centramos nosso olhar analítico, no gráfico abaixo, Santa Cruz (que fica ao lado de Campo Grande) e Barra da Tijuca. O que se vê é a significativa superioridade e velocidade do avanço dos dados registrados na comparação entre os territórios e como que o CEP, para a Covid-19 na Zona Oeste, é letal.

Aqui apresentamos o comparativo entre os bairros da Zona Oeste que figuram entre os menos e maiores IDS da região. Salta aos olhos a diferença da taxa de letalidade e da projeção entre os números de casos. Seguindo a variação expressa neste gráfico, quando Santa Cruz chegar ao número de casos da Barra da Tijuca, terá o triplo de óbitos registrados.

Campo Grande é um microcosmo do Brasil. Campo Grande fica a menos de 40km, pelas vias tortas, da Barra da Tijuca. De carro, o trajeto é feito em 50 minutos. Pelas vias costumeiras transitadas pelas trabalhadoras e trabalhadores—muitos de Campo Grande trabalham na Barra da Tijuca—pode-se gastar uma hora e meia a duas horas a depender das condições ao entrar em um BRT lotado em horários de pico, com trânsito intenso. São domésticas, porteiros, jardineiros, balconistas e um conjunto de prestadoras/es de serviços que se deslocam do bairro de baixa renda ao bairro nobre—inclusive em tempos de pandemia, quando não há opção. 

É o perto-longe na geografia do trânsito. É um fosso nos indicadores do cotidiano destas e destes trabalhadores. Na Barra da Tijuca, os moradores têm renda média per capita de R$4.373. Em Campo Grande, 54% dos moradores vivem com menos de um salário mínimo, a renda média per capita sendo de R$737. Isso significa a diferença entre comer frutas, proteínas e ter pouco além do básico da sobrevivência. Significa que muitas crianças de Campo Grande vão distrair a fome com ultra processados saborizados com glutamato de sódio, que sequer merecem o título de alimentos. É fácil deduzir inúmeras implicações para a saúde individual e comunitária.

A renda per capita é apenas um dos indicadores que compõe o índice de desenvolvimento social (IDS) calculado pelo Instituto Pereira Passos (IPP). Esse índice é composto pela renda junto com avaliação da adequação dos serviços de abastecimento de água, de esgoto, coleta de lixo, do número de banheiros por moradores e da quantidade de analfabetismo de crianças e pré-adolescentes entre 10 e 14 anos. Na Barra da Tijuca o IDS é de 0,770. Em Campo Grande é 0,572 (O índice vai de 0 a 1, sendo 1 a melhor avaliação).

Diante deste encruzo de opressões, é fácil racializar os bairros, ainda que não fossem conhecidos pela maioria de nossas leitoras. Os dados do IBGE de 2010 revelam que a Barra da Tijuca é o segundo bairro mais branco da cidade com 87,59% de população branca e Campo Grande tem 54,37 % de pretas e pardas.

Mais Elevados Índices de Violência Contra a Mulher no Rio de Janeiro

Campo Grande reúne também outras vulnerabilidades. De acordo com o Dossiê Mulher 2019 do Instituto de Segurança Pública (ISP), Campo Grande destaca-se como “o bairro com maior número de denúncias de violência contra mulher e de registros de ameaça e lesão corporal dolosa com vítima do sexo feminino”. Como no primeiro mês da crise pandêmica no país, a cidade do Rio já havia registrado aumento de 50% nos casos de violência doméstica, podemos inferir que em Campo Grande este número tenha tomado uma dimensão ainda maior. Outro dado relevante da cidade que certamente tem sua abrangência marcante nos bairros precarizados e negros da Zona Oeste é a porcentagem de domicílios chefiados por mulheres que vêm aumentando ao longo dos anos, de acordo com dados do IBGE, o que é mais um agravante para as condições das mulheres nos bairros de baixa renda da Zona Oeste—como Campo Grande—diante da crise sanitária, já que elas também recebem uns dos menores rendimentos na cidade, segundo o IPP.

No site Vermelho a articulista Mariana Branco discorreu sobre uma nota, publicada pelas economistas Laura Carvalho, da Universidade de São Paulo (USP) e Luiza Nassif Pires, da Bard College, e pela médica Laura de Lima Xavier, da Massachussetts Eye and Ear Infirmary, na qual as pesquisadoras trabalharam a relação entre renda, escolaridade e risco de óbito por Covid-19, com base na Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2010). Recortamos, aqui, parte da análise em relação ao acesso a tratamento. Dizem elas: 

Com relação ao acesso a serviços de saúde, 94,9% entre os 20% mais pobres declararam não ter plano de saúde, ante 35,7% entre os 20% mais ricos. Além disso, o número disponível de leitos de Unidade de Tratamento Intensiva (UTI) é de 1,04 leito para 10.000 habitantes no SUS, quase cinco vezes menos que os 4,84 leitos da rede privada. (BRANCO, 2020)

Parte do fosso entre Barra da Tijuca e Campo Grande reside no número de leitos de UTI e, consequentemente, de respiradores. A dimensão do poder aquisitivo está diretamente ligada à condição racial—apresentamos como condição racial na medida em que o processo de racialização (o que é ser branco ou preto, numa relação de hierarquização) é uma construção histórica e política. Assim, brancos acessam de forma qualificada os cuidados com a saúde (preventiva e emergencial), quer seja pela compra, quer seja pela garantia do Estado, na medida em que a maioria dos leitos de UTI encontram-se em bairros das zonas Sul, Norte e Centro. Esta condição é uma das expressões da necropolítica, que impõe às pessoas negras o maior risco de morte, como consequência da marginalização e vulnerabilidade. 

Não à toa esses números apresentados aqui, também entendidos como dados desagregados, não têm sido o foco do poder público. Ao manter o foco em médias gerais sobre a cidade do Rio de Janeiro, assim como ocorre na maioria das cidades do Brasil, esconde-se o abismo que separa as pessoas com mais ou menos riscos de letalidade durante a pandemia. Por isso, uma das condições básicas a serem exigidas neste momento é a do acesso à informação, e também a dados de qualidade, abertos e que possam dar margem à análise no detalhe

A leitura da realidade acima exposta ilustra como, por meio da escolha de alocação de recursos nas áreas nobres, há a invisibilização dos dados do avanço da doença nos bairros da Zona Oeste e o silenciamento dos movimentos sociais atuantes na região. Os governantes do Rio de Janeiro desenvolvem uma conflagração silenciosa contra a população negra e pobre desta cidade, uma vez que as ações estatais subnotificam o número de mortos, retiram a categoria cor dos registros médicos e negligenciam a alocação de recursos nos Centros de Referência de Assistência Social, evidenciando o exercício desse padrão mórbido de governança. A este padrão se soma a escolha na alocação de Hospitais de Campanha nas áreas distantes da periferia, o atraso no pagamento de um auxílio que deveria ser urgente sem justificativas válidas, entre outros fatores. Impactam diretamente não apenas nas nossas condições de vida, mas também na continuidade de vidas.

A compreensão deste sistema da morte, a responsabilidade com as vidas periféricas e a memória de familiares, amigos e amigas convocam à ação política já! Nossas/os mortas/os têm voz!

Esta matéria é a segunda parte de uma série de duas que analisa a desigualdade da letalidade da Covid-19 entre dois bairros da Zona Oeste, a Barra da Tijuca e Campo Grande. Para a parte 1, clique aqui.


*A Teia de Solidariedade Zona Oeste é a união de coletivas, coletivos e instituições da Zona Oeste para levantar doações para alguns bairros, em função da atuação política de cada um dos coletivos. A Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste, o Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP), o Coletivo Piracema, a Coletiva As CaboclasMulheres de Pedra, instituições como a Fundação Angelica Goulart, e o Plano Popular das Vargens, se juntaram na busca por doações a serem direcionadas aos bairros de SepetibaSanta Cruz, Campo Grande/Bosque dos CaboclosPedra de Guaratiba, e Vargem Grande.

Ana Alvarenga de Castro é engenheira agrônoma doutoranda em Gênero e Agricultura na Universidade Humboldt de Berlim, agroecofeminista, lésbica antirracista, colaboradora da Teia de Solidariedade Zona Oeste. Ana trabalhou como analista ambiental e extensionista em agroecologia e hoje pesquisa sobre as dimensões de trabalho, terra e alimento em disputa no contexto de conflitos socioambientais na América Latina, especialmente o avanço do modelo neoextrativo diante das agriculturas camponesa, quilombola e indígena.

Camila Nobrega é jornalista e pesquisadora, carioca de Vila Isabel, atualmente é doutoranda em Ciência Política na Universidade Livre de Berlim. Camila trabalha principalmente com temas relacionados à justiça socioambiental, feminismos latino-americanos e democratização da mídia, atuando em construções que conectam jornalismo, ativismo e pesquisa.

Caroline Santana é pesquisadora negra, doutoranda em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da UFRJ; mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR /UFRJ, assistente social pela ESS/UFRJ, coordenadora de trabalho socioambiental nos projetos de desenvolvimento territorial em favelas do Rio de Janeiro e Niterói, membro da Roda de Mulheres da Rede de Agricultura Urbana Carioca e militante do Grupo de Enfrentamento ao Racismo na Baixada Fluminense. 

Marina Ribeiro é educadora popular, cientista social (FIC-FEUC), pesquisadora e ativista antirracista, mulher negra periférica com atuação na Zona Oeste, integrante da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste e da Articulação Teia de Solidariedade Zona Oeste, fundadora e coordenadora geral do Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP), desde 2010. 

Rosineide Freitas é mulher preta, cria e moradora de Campo Grande, professora da UERJ, integrante da Diretoria Regional RJ do ANDES-SN, integrante da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste, integrante do Fórum Estadual de Mulheres Negras RJ e integrante do Colegiado da Sociedade Civil do Fórum Permanente de Diálogos Marielle Franco da ALERJ.

Silvia Baptista é mulher negra, de origem quilombola, cria das Vargens, pedagoga e doutoranda em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ.

Infográficos por Poliana Monteiro.


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