O Racismo Velado na Criminalização do Funk, Parte 1: ‘Deixa a Favela Vencer, Brilhar!’

MC Poze empinando uma pipa na laje. Foto do Instagram de MC Poze

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Esta é a primeira de uma matéria de duas partes sobre a criminalização do funk. No Mês da Consciência Negra, esta matéria discorre sobre uma das formas de opressão à cultura negra favelada. 

O Judiciário e a Criminalização dos Funkeiros

“Deixa a favela vencer brilha e não tenta destruir isso!!” e “Errei, paguei por isso, dei a volta por cima e hoje estou no topo. Topo, onde o favelado nunca pode chegar, porque, se chega, é bandido”, são trechos escritos no perfil do Twitter e Facebook de Marlon Couto da Silva, 20 anos, o MC Poze do Rodo, também conhecido como Pitbull do Funk, logo após ter denúncia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) contra ele aceita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) por associação ao tráfico, apologia ao crime e corrupção de menores e sua prisão preventiva decretada.

A relação do cantor com o judiciário intensificou-se a partir de setembro de 2019. O MC Poze, junto com outras cinco pessoas, foi preso na cidade de Sorriso, no estado do Mato Grosso, e depois transferido para o Presídio Pascoal Ramos, em Cuiabá, em 28 de setembro de 2019, como forma de resguardar a ordem pública. Poze, que estava realizando um show na cidade, foi preso em um hotel com outras duas pessoas de sua equipe. De acordo com o poder judiciário local, o cantor foi indiciado inicialmente por uma medida temporária transformada em preventiva, aceita pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, pelas seguintes alegações: “tráfico de drogas, organização criminosa, associação ao tráfico, incitação ao crime, apologia ao crime, corrupção de menores e fornecimento de bebidas alcoólicas a menores”.

A polícia matogrossense prendeu o músico em uma festa onde o cantor se apresentaria. Na festa, segundo a Polícia Militar do Mato Grosso, foram apreendidas pequenas quantidades de maconha, cocaína e havia muito álcool. Havia entre 39 e 43 adolescentes no local. Os ingressos do show foram apreendidos. Os policiais não deixaram claro se, o que ou qual a quantidade, de que substância ilícita foi apreendida com o MC. Assim mesmo, Poze e mais cinco pessoas foram presas, sob as mesmas acusações, ignorando-se o princípio da individualização da pena.

A defesa do funkeiro de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, alegou, no pedido de habeas corpus, que a prisão do MC se tratava de um exemplo de criminalização do funk, da favela e da classe artística periférica e favelada. O posicionamento da defesa de MC Poze—e de inúmeros outros funkeiros—é o mesmo da Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB-RJ, que produziu um relatório expondo o racismo que estrutura a criminalização da cultura favelada, como um dos legados da escravidão, passando pela capoeira, pelo samba, jongo, rap e funk. Este argumento foi acatado e, por decisão judicial, o cantor foi posto em liberdade.

A juíza acatou o argumento da defesa de Poze, alegando que a medida em vigor era “desproporcional” e “exagerada”, e que o investigado deveria ter seu direito à defesa e à liberdade garantidos. Como consta nos autos: “A prisão preventiva, de acordo com interpretação comprometida com o perfil constitucional, é medida extrema e somente pode ser decretada se evidenciada sua rigorosa imprescindibilidade, lastreada em motivos concretos indicativos da necessidade da segregação”.

O cenário no qual Poze esteve inserido não é novidade para os funkeiros cariocas. Outros artistas do movimento funk já tiveram sua prisão decretada, materiais de trabalho apreendidos ou até mesmo o fechamento de bailes funk e a interdição de clubes e espaços de festas, shows e eventos. A década de 1990 na cidade do Rio de Janeiro foi muito marcada por esses efeitos da criminalização do movimento funk, os donos das principais equipes de som da época, ZZ produções, e Rômulo Costa da Furacão 2000, foram indiciados e presos. Paralelamente a perseguição e prisão dos líderes deste movimento artístico, houve o fechamento de aproximadamente 30 bailes funk em todo o estado do Rio de Janeiro, graças a uma CPI que investigava o funk.

Stories publicado por MC Poze do Rodo. Foto: Instagram/@mcpozedorodo. MC Poze, o jovem funkeiro com quatro milhões de seguidores nas redes sociais, que foi criado na Favela do Rola ou do Rollas (também conhecida como favela do Rodo) em Santa Cruz, leva a música como instrumento de profissão. Em julho de 2020, teve mais uma vez sua vida estampada em noticiários com acusações feitas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, alegando que o cantor teria envolvimento com o tráfico de drogas e participação na facção Comando Vermelho (CV).

Por ele ter assumido, em depoimento, já ter feito parte do varejo de drogas quando vivia na Favela do Rola, entre os anos de 2015 e 2016, em novo inquérito, o Ministério Público alega que o cantor faz parte da facção criminosa por ter feito, em março de 2020, um show na favela do Jacarezinho, onde havia uma comemoração de um homem ligado ao Comando Vermelho. No entanto, Poze e sua defesa informam que, na mesma noite, o MC fez outros shows, em locais distintos, até mesmo de outras facções, o que desacredita a teoria de que ele teria envolvimento com o Comando Vermelho por ter feito show no Jacarezinho.

Narrativas estigmatizantes, como essas, colaboram com a criminalização da cultura funkeira e da juventude favelada. São parte do quebra-cabeças que associam a juventude funkeira à violência e ao varejo de drogas no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil. O que Poze do Rodo vive em relação ao judiciário brasileiro, não é cenário novo para aqueles que optaram pelo funk como fonte de renda ou de lazer. Não à toa a década de 1990 ficou marcada pela associação dos famosos arrastões nas praias do Rio com a juventude preta, funkeira e favelada, onde diversos estereótipos foram sendo construídos em cima dos jovens de favelas e periferias. As décadas de 1990 e de 2000 foram de bastante interferência pública, policial, no movimento funk carioca, assim como no rap paulista.

Investigações, denúncias, indiciamentos e prisões de artistas, além da proibição de eventos culturais de funk na favela foram se tornando cada vez mais comuns, virando normais. Esse movimento contra o funk chegou a tal ponto que o Poder Legislativo chegou a discutir duas propostas que legislam sobre o funk. Uma queria proibir o funk nacionalmente e foi proposta, em 2017, ao Senado Federal através de uma sugestão popular de discussão legislativa, sob a justificativa que o funk seria um “crime de saúde pública, contra a criança, os adolescentes e a família”. Já a outra iniciativa legislativa visava reconhecer o funk como patrimônio cultural carioca, na ALERJ, em 2009. A primeira foi rechaçada e a segunda aprovada. Mas o racismo estrutural se reconfigura e continua seu império.

Quadrinho sobre a tentativa de criminalização do funk no Senado Federa. Arte por Raphael Salimenaa/BBC.

Os Últimos 20 Anos no Movimento Funk

Nos últimos 20 anos, por vezes, profissionais do funk foram presos, sob alegações de envolvimento com o tráfico de drogas e apologia às drogas, ao tráfico e às armas, só por retratarem a realidade das favelas e periferias de todo o Brasil, partindo de uma suposta liberdade de expressão que a todos seria garantida.

Decisões bastante simbólicas do judiciário sobre a cultura funk, no entanto, indicam o contrário. Casos emblemáticos, com os mesmos tipos repetidos de abuso de autoridade e de acusações infundadas, abundam na cena funk carioca. São exemplos dessa criminalização, os casos dos funkeiros Rômulo Costa, MC Colibri, MC Sapão, MC Galo e muitos outros. Na maioria destes casos as supostas ligações com o tráfico ou não foram comprovadas cabalmente, ou foram comprovadas de maneira duvidosa ou insuficiente. Alguns, como o MC Sapão, foram libertados, depois de meses na cadeia, por falta de provas ou pela fragilidade do conjunto probatório. Ao passo que outros ficaram encarcerados por anos, como o MC Colibri.

No entanto, em resposta a essa repressão direcionada, há a solidariedade da cena funk. Apesar de muito preconceito com quem cumpriu tempo na cadeia, há aqueles que passaram pela mesma situação, pelo mesmo cárcere e tentam ajudar. Diz MC Colibri: “Assim que saí da prisão MC Marcinho fez um funk para mim. Mas de lá para cá, só encontrei portas fechadas. Estava difícil um DJ que quisesse mostrar o meu trabalho, alguém que quisesse contratar um homem que já esteve preso”.

Em 25 de novembro de 2010, esse quadro muda de figura com a política de pacificação. A invasão e a ocupação dos complexos da Penha e do Alemão por tropas militares, com forte aval midiático, inauguraria uma nova era da política de segurança carioca. Política do ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, as UPPs foram lançadas sob a proposta de que exterminariam o tráfico de drogas armado em algumas favelas da cidade.

Segundo a retórica oficial, junto aos tanques e às balas subiam o morro a democracia e a liberdade. Só na retórica, pois dias depois da ocupação dos complexos do Alemão e da Penha, pelas tropas das Forças Armadas e das polícias, a investida contra a cultura da favela se intensificou: os MC Tikão, MC Frank, MC Dido e MC Smith, bastante conhecidos na cena funk, foram presos. A justificativa: por cantarem e comporem suas próprias letras de funk, narrando a realidade e a memória histórica das favelas do Rio de Janeiro, em músicas conhecidas como os “proibidões“. Até no momento da prisão, na delegacia, cantaram. Liberdade de expressão e de produção artística, alguns diriam, mas no entanto, foram presos.

Não seria dessa vez que a democracia e a liberdade subiriam o morro. Poder ser preso, como foi MC Dido, cria do Morro do Borel, por cantar frases como: “UPP [xingamento], sai do Borel!” não é liberdade. No máximo, uma deselegante crítica política, mas ainda assim plenamente garantida pela Constituição Federal do Brasil.

MC Tikão, MC Frank, MC Dido e MC Smith foram acusados pela Polícia Civil por crimes como incitação ao crime, associação ao tráfico, apologia ao crime, formação de quadrilha e outros. No ato da prisão dos cantores, a delegada de polícia chegou inclusive a acusar os funkeiros de fazerem parte da facção Comando Vermelho, que dominava o Complexo do Alemão na época da ocupação de 2010. Em entrevista, a delegada Sardenberg, responsável pela maior parte destas prisões, disse que “o tráfico tem sua voz” e que os MCs são como quaisquer outros funcionários do tráfico. A mídia e a própria polícia diziam não serem “contra o funk: o funk do bem”. Julgamento moral muito criticado, inclusive dentro da própria Polícia Civil.

A prisão dos funkeiros é parte de uma longa história de criminalização da cultura negra favelada e de negação de cultura legítima aos gêneros musicais pretos, de favela e periféricos. Após ampla visibilidade dos casos e ação de advogados, os MCs foram soltos por medida de habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A chegada das UPPs nas favelas evidenciava uma onda anti-funk e anticultura favelada, em termos mais amplos. Nessa trajetória, diversos meios culturais das favelas ocupados passaram a ser cerceados pelas UPPs, que se usavam de uma resolução, da Secretaria de Segurança para o impedimento das expressões artísticas e culturais nas favelas onde haviam sido instaladas UPPs. Em algumas localidades sob controle das UPPs, por exemplo a Chatuba da Penha, os bailes foram sendo proibidos com determinação da Resolução 013, que se tratava de uma norma do decreto 39.355/2006 atualizada em 2007. O decreto informava que qualquer evento artístico, social e esportivo no Estado do Rio de Janeiro deveria ter autorização do Comandante do Corpo de Bombeiros (CBMERJ), Secretaria de Estado da Defesa Civil (SEDEC), do Comandante do Batalhão local de Polícia Militar (PMERJ) e do delegado titular da Unidade de Polícia Administrativa e Judiciária (UPAJ), da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

Em vista disso, as favelas e periferias que tinham UPPs tiveram seus bailes funks silenciados uma vez que os comandantes das UPPs não concediam a autorização para realização das festas, apesar da Constituição Federal de 1988, que eliminou qualquer forma de censura artística e de limitação ao direito de reunião por qualquer autoridade de qualquer nível hierárquico.

Cerca de nove anos depois, casos de perseguição e criminalização aos profissionais do funk não mudaram. Em 2019, o DJ Rennan da Penha foi denunciado pela Polícia Civil por atuar na organização criminosa como “olheiro” ou “atividade”, por relatar nas redes sociais, segundo o judiciário, a movimentação de policiais na favela da Penha.

Ao ser entrevistado no dia 12 de dezembro, no programa Conversa com Bial, na Rede Globo, o cantor Rennan da Penha diz: “Viajei para o Egito, México, alguns países, ia fazer turnê na Europa, Estados Unidos. Do nada, tiraram tudo de mim. O que aconteceu poderia ter acabado não só com minha vida, mas com a minha carreira por completo. Tenho onze anos de funk, lutei muito para chegar onde cheguei”.

O DJ Rennan da Penha permaneceu preso por cerca de sete meses, justamente no momento em que sua carreira estava sendo alavancada e ganhando cada vez mais notoriedade dentro e fora do Complexo da Penha e em todo território nacional. No entanto, foi somente após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre prisão em 2.ª instância que o DJ conseguiu ser solto.

Entidades ligadas ao direito criticam o caso como uma inversão da lei: “O caso do DJ Rennan, portanto, é exemplo de decisão condenatória na qual, na prática, operou-se uma infundada inversão do ônus da prova. Isso porque em realidade a acusação não chegou a provar a concreta prática do fato imputado com o detalhamento de suas circunstâncias. Foi o juízo que, a partir de injustificadas inferências probatórias—carentes de substrato epistêmico—completou o caminho lógico que deveria ter sido trilhado sozinho pela acusação”.

Sobre estes jovens artistas, recaem acusações bastante parecidas, parecidas também com a de muitos outros artistas criminalizados do funk. Além deles dois, a DJ Iasmin Turbininha e o DJ Polyvox, (criador da batida 150 BPM), que também foram intimados a depor, mas não tiveram a prisão concretizada, ao contrário de Rennan e Poze, colegas de profissão. Em relação a Iasmin, única DJ mulher, negra de favela a dominar a cena funk com maior visibilidade no Rio e a ser criminalizada, a artista precisou junto com outros profissionais que a acompanhavam criar uma vakinha para custear sua defesa. Já o advogado de Polyvox, informou que o depoimento do artista tratava-se de uma intimação feita pelo delegado para descobrir quem financiava o baile funk da Nova Holanda no Complexo da Maré, e por isso os jovens foram convocados para depor.

Em entrevista ao portal Z Matéria, o advogado de Polyvox, Dr. Estevan disse: “Todos lamentam a cultura discriminatória ao funk, que infelizmente envolve os bailes em comunidades, deixando de considerá-los como uma expressão cultural do povo carioca e que é perseguida, justamente quando se pretende ouvir os profissionais que comercializam suas apresentações musicais em procedimentos investigatórios criminais”.

Mais recentemente ainda, no dia 29 de outubro de 2020, dois MCs cariocas receberam intimações da Polícia Civil em investigação que apura apologia ao crime: MC Cabelinho e MC Maneirinho. Nesse caso, o próprio MC reconhece o racismo que sustenta todo esse processo de criminalização do funk, há décadas:

E, como dito acima, ainda neste mesmo dia 29 de outubro de 2020,  outro funkeiro, o artista MC Maneirinho soube estar sendo investigado por apologia ao crime, e se manifestou em entrevista, dizendo: “Para falar a verdade, nem acredito que isso seja real. A polícia vai investigar o Wagner Moura por interpretar o Pablo Escobar? Vai atrás dos playboys que sobem o morro para retratar o que acontece na favela nos documentários? Eu sou MC, eu retrato o que acontece nas comunidades, essa é a minha arte…”

O músico também lamentou nas redes sociais com seus seguidores o que classificou como “covardia”:


Questionar porque jovens funkeiros incomodam as polícias, o poder judiciário e outros poderes instituídos no Brasil deve fazer parte da luta antirracista. A não culpabilização dessa juventude que promove manifestações culturais e artísticas nas suas favelas e periferias, bem como nas áreas nobres das cidades, deve estar no cerne da pauta antirracista. É necessário entender o que está na base da construção dessas constantes ações do Estado em relação à criminalização da cultura favelada. E entender também como esses artistas de favela se sentem perante as acusações que recaem sobre eles, mudando suas vidas para sempre.

Ingra Maciel, moradora de Acari, tem 28 anos e é formada em História pela UFRJ, pós-graduada em ensino de História da África, pelo Colégio Pedro II e auxiliar de pesquisa do Medialab da UFRJ. Na graduação desenvolveu sua pesquisa acerca da criminalização do funk carioca e o seu processo de resistência, e atualmente vem estudando o funk carioca a partir da perspectiva pedagógica.


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