Com um Ano de Pandemia, o Vírus da Fome Ataca as Favelas

Sem Vacina e Com Pratos Vazios o Genocídio Se Desmascara

Complexo da Maré. Foto: Antoine Horenbeek
Complexo da Maré. Foto: Antoine Horenbeek

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Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.

Com um ano da pandemia de Covid-19, Brasil segue sem plano nacional de vacinação, em crise econômica e política, com subnotificações de casos, falta de acesso a leitos de UTI e com recordes de casos e óbitos.

Brasil, 17 de março de 2020, a Secretaria Esftadual de Saúde de São Paulo informa à imprensa que, na noite anterior (16/03), um homem de 62 anos, Manoel Freitas Pereira Filho, diabético e hipertenso, internado no Hospital Sancta Maggiore Paraíso, em São Paulo, veio a óbito por Covid-19. Foi o anúncio da primeira morte oficialmente registrada por coronavírus no Brasil.

Quatro meses depois do início da pandemia, no final de junho do ano passado, a informação era corrigida pelo Ministério da Saúde. Exames laboratoriais revelaram que a primeira morte por Covid-19 aconteceu em São Paulo quatro dias antes, em 12 de março de 2020, com a morte da paulistana Rosana Urbano, de 57 anos, no Hospital Municipal Doutor Cármino Caricchio.

O quadro de subnotificação de casos e óbitos da doença no país, e de políticas públicas e protocolos para controle e resposta a pandemia desordenados—seja na área de saúde ou assistência econômica e social por parte dos governos federal, estadual e municipal—já revelava o retrato do “futuro” da pandemia no Brasil. Após um ano, o país já ultrapassou o total de 11 milhões de casos e 287.000 mortes cadastradas oficialmente. Somente quem enterra seus mortos sabe o nome deles e conhece seus rostos.

Os dados do levantamento do consórcio de veículos de imprensa, em 18/03/21, mostram que neste dia o Brasil registrou 2.659 mortes por Covid-19—o terceiro maior valor registrado desde o início da pandemia—e que completou 20 dias seguidos de recordes na média móvel de óbitos, que agora chegou a 2096. Cemitérios e hospitais acumulam corpos e, segundo a Fiocruz, a situação deve piorar ainda mais.

Em Boletim Extraordinário do Observatório Covid-19, a Fiocruz aponta que o pais vive o maior colapso sanitário e hospitalar da história. Segundo os pesquisadores, das 27 unidades federativas, 24 estados e o Distrito Federal estão com taxas de ocupação de leitos de UTI Covid-19 para adultos SUS acima de 80%, sendo 15 com taxas iguais ou superiores a 90%.

Em relação às capitais, 25 das 27 estão com essas taxas iguais ou superiores a 80%, sendo 19 delas superiores a 90%. As novas informações apuradas foram adicionadas à Série Histórica de Taxa de Ocupação (%) de Leitos de UTI Covid−19 para Adultos apresentada pelo centro de pesquisa. A partir do levantamento, a Fiocruz pede maior rigor nas medidas de restrição às atividades não essenciais.

O Brasil hoje é o país que sofre o maior número de mortes por Covid-19 diário no mundo, com 2.724 em 18/03/21, segundo a Universidade de Oxford. Isso é 40% mais que o país em segundo lugar (EUA) e quatro vezes mais que o país em terceiro lugar (México). Este número é maior do que da União Européia inteira (2.661) ou do continente norte-americano (2.400). E é 83% do total das mortes em toda América do Sul (3.287). Quer dizer: o contágio da Covid-19 no Brasil está totalmente fora do controle.

Complicando ainda mais nossa condição, dentro deste quadro já extremo de vulnerabilidade, a população pobre, moradores de favelas e periferias—majoritariamente negra—está sucumbindo ainda também à fome. Em relatório da Oxfam, publicado em julho de 2020, a instituição já apontava: 12.000 pessoas poderiam morrer de fome por dia no mundo até o final do ano e que o Brasil seria um dos epicentros globais desta fome.

A previsão estava certa. “Tá muito triste. As pessoas estão pegando comida no lixo. Precisamos de comida e vacina. O que mais estão precisando aqui [em uma favela do Rio de Janeiro] é alimento. Acharam que a Covid tinha passado, então não estão dando cestas básicas. Os hospitais estavam totalmente ocupados. Essa cepa não demora muito, em dois dias ela acaba com tudo. Pedem para a gente ficar em casa, ter mais compreensão de não sair muito, mas como com fome? Aqui tivemos três tias que faleceram, meu neto teve Covid, minha filha teve Covid. Nós devemos estar unidas para cobrar desse infeliz [Presidente Jair Bolsonaro] que está matando as pessoas. Hoje foi minha família, amanhã pode ser de qualquer um”, relata uma moradora de uma favela na Zona Norte do Rio, em reunião do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas.

O Painel é uma iniciativa de mais de 20 coletivos, instituições e movimentos sociais que, na ausência de dados sobre a pandemia nas favelas do Rio, reuniram-se através da organização Comunidades Catalisadoras (ComCat)*, com objetivo de produzir dados para salvar vidas. De acordo com o mapeamentofeito por lideranças, comunicadores e moradores, somados aos dados oficiais levantados através de áreas de influência dos CEPs nestes territóriosaté 18 de março, foram registrados 32.597 casos e 3.503 óbitos em 227 favelas, sendo 221 na capital e seis na Baixada Fluminense. O número de mortes nas favelas fluminenses é mais alto do que em 163 países.

De acordo com reportagem do jornal Nexo, o Brasil retrocedeu 15 anos em cinco, com mais de 84 milhões de pessoas enfrentando algum grau de insegurança alimentar. Um número que aumentou dia a dia com o fim do auxílio emergencial em dezembro de 2020, afetando especialmente a população rural, as regiões Norte e Nordeste, a população negra e as mulheres. O auxílio emergencial foi a única política de assistência do Governo Federal diante da crise econômica da pandemia. Foi criado por meio de uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Presidente Jair Bolsonaro.

A Pandemia Não Passou e a Fome Aumentou

Essa é a constatação de lideranças, comunicadores comunitários e moradores de favelas. Mariana Galdino, do Laboratório de Dados e Narrativas na Favela do Jacarezinho (LabJaca), na Zona Norte, afirma que tem sentido que há “um retorno da demanda pela cesta básica”, uma vez que “não estamos recebendo auxílio emergencial”. Com o decreto de restrição de horários na capital, a “demanda da segurança alimentar” voltou.

Em 12 meses, desde o início da pandemia, o preço dos alimentos subiu em média 15%, quase o triplo da inflação no período. Segundo o IBGE os preços que mais subiram foram os de cereais, leguminosas e oleaginosas (57,8%). Na sequência, aparecem as categorias óleos e gorduras (55,9%) e tubérculos, raízes e legumes (31,6%).

Anna Paula Salles, da Associação de Mulheres Guerreiras e Articuladoras Sociais de Itaguaí (A.M.I.G.A.S.), líder comunitária há 15 anos, afirma que “a situação está ainda mais calamitosa em relação à fome, à doença”. Além da falta de alimentos, ela também conta que “as famílias não têm o que comer porque não têm onde cozinhar. Cozinham a lenha”. Por isso, a associação tomou a decisão de “fornecer a comida pronta”. Para ela: “É nítido ver a movimentação política na região, pois após as eleições, políticos querem jogar para debaixo do tapete as mazelas da pandemia”.

Ela completa: “Ao longo desses 12 meses é fácil verificar que as pessoas estão morrendo antes da Covid, por fome e por violência. É um cenário tão caótico, um genocídio acontecendo de todos os lados. O povo não tem água, luz, gás e nem comida. É um retrocesso”. A taxa de mortalidade na Baixada Fluminense é 2,5 vezes maior que a média nacional.

Anisio Borba, Morador do Complexo da Maré e integrante da Frente de Mobilização da Maré, explica que não apenas a continuação do quadro da Covid-19 agravou o quadro das mortes e casos, mas também trouxe a fome e a expandiu como um efeito em cadeia. “Passou-se um ano e está tudo pior e mais absurdo, porque o gás está muito caro, [assim] como a própria cesta básica está muito alta”. O preço da cesta básica fechou o ano de 2020 com alta de 18,54% em relação ao ano anterior (2019), o que representa o maior aumento desde 2002, segundo aponta o Núcleo de Pesquisas Econômicas-Sociais (Nupes) da Universidade de Taubaté (Unitau).

No Complexo da Maré, houve duas frentes de mobilização. Mesmo assim, Anisio conta que o mutirão de doação não consegue contemplar todas as famílias. “A gente teve que fazer filtros porque não tinha cesta para todo mundo. Parece que agora a gente retrocedeu dois passos para trás. A gente pensou que ia ser três meses, depois seis. Veio um ano e ainda estamos aqui”, desabafa.

#TemGenteComFome

Durante todo último ano da pandemia, a população vulnerável só pôde contar com a mitigação dos efeitos da fome por frentes de mobilização formadas por coletivos, lideranças, e moradores de favelas. Foi a organização civil organizada desses territórios que encheu pratos vazios, pois mesmo com o auxílio emergencial de R$600 e, posteriormente de R$300, a fome foi implacável, assim como o vírus.

Coletivos no Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Jacarezinho, Cidade de Deus, Providência, entre outros, jogaram xadrez com a morte: enfrentando e desviando junto com seus vizinhos a possibilidade da morte por Covid-19, pela fome e ainda por tiros devido a ocorrência de operações policiais mesmo em meio a pandemia. Moradores de favelas foram para as ruas denunciar as evidências da política da morte do Estado.

Com o retorno das atividades econômicas mesmo sem a população estar vacinada, as doações de cestas básicas minguaram seja nas favelas e periferias do Rio ou de outras cidades. Agora, essas frentes de enfrentamento à Covid-19 necessitam de socorro. Ao longo da pandemia, o número de doações diminuiu, mas a fome aumentou. De acordo com reportagem do jornal O Dia, oito em cada 10 famílias nas favelas dependem de doações para sobreviver. A pesquisa “A Favela e a Fome”, citada na reportagem, realizada pelo Instituto Locomotiva, em parceria com Data Favela e Cufa, entrevistou 2.000 moradores de 76 favelas brasileiras na segunda semana de fevereiro.

Na última terça-feira (16/03/21), foi lançada a campanha “Tem Gente com Fome” que visa doar cestas básicas para 223.000 famílias em todo o país, mitigando o efeito colateral da fome. Para alcançar esse objetivo, os organizadores da iniciativa pretendem arrecadar R$133 milhões, através do site da ação.

A campanha é uma iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, e foi apoiada por diversos movimentos sociais e ONGs, como Anistia Internacional, Oxfam, Instituto Ethos, 342 Artes, Redes da Maré e Ação Brasileira de Combate às Desigualdades.

A campanha e a ação dos coletivos e movimentos sociais é uma contingência necessária na falta de políticas públicas de assistência que possibilitem a sobrevivência dos mais pobres. Nesta quinta-feira, o presidente da República assinou duas medidas provisórias que irão permitir o retorno do auxílio emergencial. O auxílio deve ser pago em até quatro parcelas, a partir de abril, que variam de R$150 a R$375, atingindo cerca de 46 milhões de brasileiros. Apenas uma pessoa por família poderá ser contemplada com o benefício e as regras para receber o auxílio estão mais apertadas do que em 2020.

Vacinação Já!

Enquanto as pessoas morrem do novo vírus e de fome, um ano após o anúncio oficial da pandemia pela OMS, o Brasil coleciona ministros de Saúde. No final de semana, Eduardo Pazuello, desligou-se da pasta e quem assume o cargo é Marcelo Queiroga. O Brasil se tornou pária no mundo apesar do reconhecimento em campanhas de vacinação, pois além de não controlar a contaminação dentro do país, também está atrás no processo de imunização da população.

Segundo o mapa de vacinação contra Covid-19 no Brasil, divulgado em 18 de março, 10.984.488 pessoas receberam a primeira dose de vacina. O número representa 5,19% da população brasileira, segundo levantamento realizado pelo consórcio de veículos de imprensa a partir de dados da Secretarias Estaduais de Saúde. Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), em entrevista a CNN, afirmou que: “Dificilmente toda a população brasileira será vacinada contra a Covid-19 em 2021“. A expectativa é que apenas em 2022, ano eleitoral, haja uma plano de vacinação nacional que abranja toda a população. Enquanto isso, nos Estados Unidos 30% de população já recebeu a primeira dose da vacina com previsão de se ter vacina para todos até o final de maio, e o Chile está vacinando 1,45% de sua população ao dia.

Charge solidária por Carlos Latuff
Charge solidária por Carlos Latuff

O Painel Unificador Covid-19 nas Favelas—representado por 21 organizações e coletivos que o realizam—e 27 instituições parceiras, enviaram uma carta aberta para os mandatos dos vereadores dos municípios e deputados estaduais do Rio de Janeiro, além de secretários de saúde e outros gestores públicos, na qual demandam um plano imediato para vacinação prioritária nas favelas e para população de rua. Um plano de vacinação prioritária para comunidades de baixa renda está sendo realizado na Califórnia, nos Estados Unidos, onde 40% das doses são reservadas para este grupo.

A campanha “Vacina Pra Favela Já!” foi lançada em 10 de fevereiro—Dia Estadual de Mobilização para Enfrentamento da COVID-19 nas Favelas do Rio de JaneiroPela falta d’água nas casas ou de acesso pleno aos serviços de saúde, ou pelos altos índices de trabalhadores essenciais e informais para os quais o isolamento social é impossível, o grupo de aliados insiste que as favelas demandam vacinação prioritária.

A carta também expõe seis formas que os governos municipais e estaduais podem priorizar as favelas na imunização, ressaltando que trabalhadores essenciais e vulneráveis como motoristas, entregadores, seguranças, jardineiros, catadores, caixas, faxineiras, cuidadores, trabalhadores de construção e informais também fazem parte da linha de frente da economia e, portanto, do enfrentamento da pandemia de coronavírus.

Como os Governos Podem Priorizar as Favelas?

  1. Garantindo vacinas prioritariamente em postos e clínicas da família dentro e próximas às favelas e a devida infraestrutura para armazenamento e distribuição das doses.
  2. Disponibilizando vacinas para uma maior parcela da população adulta em áreas de favela.
  3. Priorizando servidores essenciais e vulneráveis como motoristas, entregadores, seguranças, jardineiros, catadores, caixas, faxineiras, cuidadores, trabalhadores de construção e informais.
  4. Possibilitando outros pontos de vacinação em locais facilmente acessíveis, por exemplo próximos a terminais de trens e ônibus, desde que de forma organizada, sem apresentar riscos de aglomeração ou impedimento do direito de ir e vir da população. Exemplos de locais sugeridos: ginásios esportivos, reativar hospitais de campanha ainda não completamente desmontados, realizar parcerias com clubes, ONGs e afins.
  5. Retorno do auxílio emergencial até que a vacina chegue a todos.
  6. Garantindo vacinas prioritariamente aos professores da Rede Pública de Ensino Estadual e Municipal para um possível plano de volta às aulas com segurança para profissionais do ensino, comunidade estudantil e as famílias.

*Comunidades Catalisadoras é a associação sem fins lucrativos que publica o RioOnWatch.


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