Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas, e faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental nas favelas cariocas.
Há pouco mais de um ano, acompanhamos a chegada de uma pandemia assistindo pela televisão a escalada de casos e mortes, dentro e fora do país. O anúncio em fevereiro de 2020 do primeiro caso de Covid-19 no Brasil provocou uma mistura de sentimentos, que variavam entre o medo e a incredulidade. O entendimento da real gravidade da situação demorou e precisou de uma ampla mobilização para que a população brasileira entendesse que não era só “uma gripezinha”. Além da crise sanitária, rapidamente a doença também mostrou seus efeitos no mercado de trabalho e na renda do brasileiro.
Antes da pandemia da Covid-19 chegar ao Brasil, um grande número de trabalhadores já estava fora do mercado formal de trabalho, como demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). Segundo o levantamento, o país fechou o ano de 2018 com cerca de 12,2 milhões de desempregados. Porém, em 2020, já sob os efeitos econômicos da pandemia, o desemprego cresceu, atingindo 13,9 milhões de pessoas. Durante o ano, a taxa média de desempregados ficou em 13,5%, a maior já registrada na série histórica da Pnad, iniciada em 2012.
Diante desse cenário, não é difícil imaginar como ficou a situação das pessoas desempregadas, que já viviam do trabalho informal, ou daquelas que tocavam seus pequenos empreendimentos. “A crise provocada pelo novo coronavírus atingiu em cheio todo mundo, mas o impacto foi muito maior para quem vive nas periferias. A desigualdade social só aumenta e a pandemia ainda está longe de acabar”, afirma Aira Nascimento, fundadora d’As Josefinas Colab e Espaço Cultural, negócio social que tem como foco as mulheres e mães empreendedoras da periferia.
Dados do Sebrae apontam que a pandemia provocou uma redução na participação das mulheres nos negócios. Segundo a pesquisa, entre julho e agosto de 2020, 25,6 milhões de pessoas eram donas de seu próprio negócio no país. A participação feminina neste universo era de 8,6 milhões, o que equivale a 33,6%, enquanto a masculina era de 17 milhões (66,4% do total).
A maior participação nas tarefas domésticas e a sobreposição do trabalho dentro e fora de casa levam as mulheres à exaustão e são fatores que contribuem para a queda na participação delas no empreendedorismo. Pensando nisso, iniciativas como As Josefinas Colab tentam ajudar as mulheres da periferia a contornar esse momento e potencializar seus negócios.
Ao lado de outras iniciativas por todo Brasil, As Josefinas Colab lançou campanhas de auxílio para beneficiar empreendedoras periféricas, especialmente mulheres da Zona Oeste, nascendo assim o #ApoieUmaEmpreendedoraPeriferica. De abril a dezembro, 180 mulheres foram apoiadas pela rede, que além de cestas básicas ofereceu acolhimento, atenção, apoio e formação profissional.
De Uma Hora para Outra, Tudo Parou!
Kátia Aparecida é uma mulher negra, moradora de Santa Cruz, Zona Oeste da capital fluminense. Com muita vontade de vencer, diz ter sido “tirada do escuro” pela Colab. Para ela, o sentimento frente à realidade provocada pela pandemia era de descrença: “no início, não acreditava muito. Estávamos vendo as pessoas morrerem e, mesmo assim, a ficha não caiu. Foi um baque ver tudo fechando, as pessoas se isolando dentro de casa e começando a faltar as coisas”, relembra.
Quando a pandemia chegou no país, Kátia estava trabalhando em uma fábrica de plástico. Ela havia começado no emprego três meses antes, em dezembro de 2019. “Parou tudo e, então, você olha pro lado e vê faltando as coisas na sua casa. É desesperador”, explica ela. Kátia perdeu o emprego na fábrica durante a pandemia.
Ela conheceu As Josefinas em uma matéria exibida no jornal. A notícia sobre a distribuição de cestas básicas para mulheres com cadastro enquanto microempreendedor individual (MEI) levou Kátia a fazer inscrição no projeto. “Confesso que já estava ficando deprimida, só queria ficar no escuro. Estava ouvindo a TV e ouvi sobre as cestas para quem era MEI da Zona Oeste, e mencionaram Santa Cruz. Fiz a inscrição sem nenhuma esperança, mas sabendo que a cesta básica me ajudaria muito. Para minha surpresa, me ligaram. Que dia feliz”, relembra.
Além da doação de alimentos, Kátia encontrou suporte emocional e apoio no coletivo. Ela conta que fazer parte de um grupo de mulheres foi a injeção de ânimo que faltava para sair da depressão e seguir em frente.
Não dá para pensar em ações de geração de renda enquanto a fome for presente em um lar. Por isso, o trabalho assistencial d’As Josefinas contribuiu para que Kátia garantisse a alimentação de sua família. “A cesta básica que pegava dividia com minha vizinha, minha irmã e ainda comiam quatro pessoas aqui em casa: eu, meu filho, meu marido, que também está desempregado, e uma amiga idosa que mora com a gente”, conta.
Ressignificando o Modo Costureira
Kátia chegou n’As Josefinas por conta do anúncio da doação de cestas básicas, mas também encontrou no projeto apoio e oportunidade de gerar renda. Participando da rede, a empreendedora confeccionou máscaras em quantidade para uma empresa, o que lhe permitiu investir no seu trabalho. A oportunidade foi o impulso que ela precisava para comprar sua própria máquina e investir em costuras e pequenos reparos no seu bairro. “As Josefinas me privilegiou com a demanda de produzir 480 máscaras. Com esse dinheirinho, consegui comprar uma máquina de costura, porque até então eu tinha uma emprestada”, conta Kátia. Para ela, esse foi o momento de uma virada em sua vida.
O apoio da rede contribuiu para desenvolver o potencial de Kátia. Além de ser ponte entre as empreendedoras e as oportunidades de trabalho, o projeto também atua na mentoria e na assistência às mulheres que integram a rede, uma ajuda para que elas possam tocar e ampliar seus negócios. A conscientização da valorização de seu trabalho é, também, parte dos resultados colhidos por Kátia dentro da rede d’As Josefinas.
Antes de participar do projeto, ela conta que já fazia máscaras para vender entre os vizinhos, mas como a oferta do produto cresceu, a procura despencou. Hoje, com sua máquina de costura própria, ela expandiu o catálogo de serviços. Além de fazer máscaras, oferece consertos de roupas, capas de colchão e atende a demandas maiores vindas de fábricas. “Estou me reinventando, não é?”, conta entusiasmada.
Tendência Black: Quando a Superação Entra na Moda
Natural de Salvador, Cíntia Pereira tem 32 anos e mora no Rio há sete. Ao lado do marido, Emanuel, fundou a loja Tendência Black em 2014. O pequeno empreendimento trabalha com linhas de roupas com frases e estampas voltadas para a representatividade e valorização da cultura afro-brasileira. Ter se tornado mãe em 2018 motivou Cíntia e impulsionou o negócio. Porém, ela também sentiu o aumento das tarefas diárias, somando o trabalho com os cuidados com a filha e com a casa. “Meu marido trabalhava de carteira assinada. E eu levava o negócio de forma mais lenta, né? Porque eu tinha que me virar para ser mãe e dona de casa”, explica.
O negócio se desenvolvia bem até a chegada da pandemia. Em março de 2020, o marido de Cíntia foi demitido e os dois se viram desempregados e sem renda fixa. Sem dinheiro, eles não tinham como comprar os materiais para continuar produzindo as peças da loja virtual. Sem recursos para tocar o negócio e para sobreviver, a empreendedora conheceu As Josefinas. “Recebemos o apoio da iniciativa, a gente recebia cesta básica. Foi um acolhimento. Fomos nos reestruturando, nos reinventando e quando foi em junho, as nossas vendas começaram a alavancar”, conta.
Para a empreendedora, a participação na Colab foi fundamental para passar por esse período de pandemia: “não foi só o alimento, foi o acolhimento. Nós vimos que não estávamos sozinhos”, relembra Cíntia. Apesar de já conhecer a fundadora do projeto, Aira Nascimento, ela nunca havia participado, presencialmente, das atividades d’As Josefinas até a pandemia.
Segundo Cíntia, sua participação na rede a ajudou a estruturar mais a gestão de seu negócio e, do ponto de vista pessoal, ela conta que o apoio de outras mulheres do projeto foi fundamental para ela fortalecer seu emocional e sua caminhada enquanto empreendedora. “Para os próximos dois anos, a minha expectativa é crescer meu negócio e gerar emprego”, planeja. Atualmente, ela toca a Tendência Black ao lado do marido e terceiriza o trabalho de uma costureira. “Nós já estamos dando curso de serigrafia para preparar mais profissionais para eles trabalharem com a gente também. Tenho o objetivo de abrir um espaço que é meu ateliê em cima da minha casa”, explica.
“Vi n’As Josefinas tudo que precisava. Vejo as irmãs que trabalham com marketing, com fotografia, com audiovisual… São áreas de dificuldades que eu tenho porque nós, empreendedores, somos um pouco de tudo na nossa marca, mas são dificuldades que eu tenho e que eu posso encontrar no projeto a solução”, afirma Cíntia.
Arrematando Projetos Coletivamente
As Josefinas é um grupo composto por mulheres periféricas da Zona Oeste que acreditam na potencialidade dos próprios territórios. Além da solidariedade e do apoio em rede, a Colab ajuda mulheres a desenvolver suas potências e a idealizar alternativas para enfrentar a crise provocada pela pandemia. “Olhar a potência significa entender o sistema estruturalmente desigual e racista que estamos inseridas e furar a bolha dessa estrutura”, destaca Mariane Diaz, uma das integrantes da rede.
A casa de fomento ao empreendedorismo feminino periférico atua de forma coletiva e colaborativa. Os projetos são desenhados e propostos pelas próprias participantes. Para realizar as ações de diferentes frentes e estratégias foi lançada em 2020 a campanha #ApoieUmaEmpreendedoraPeriferica, que fomenta o consumo de produtos locais e dá visibilidade às empreendedoras que participam da rede, além de possibilitar que cursos e formações sejam realizadas em benefício dessas mulheres.
O crescimento do projeto é sentido por todos que participam, como demonstra o relato de Kátia: “Fico rezando para que a casa consiga mais patrocinadores, que consiga mais apoiadores porque as ações ajudam a gente e agora gostaria de ter mais cursos de capacitação”. Um dos cursos desejados por Kátia é o de finanças pessoais. “Sempre peguei meu dinheiro e misturei tudo e depois não sei quem é quem, aí eu fico sem ele. Adoraria um curso de economia”, aponta Kátia. Ela, inclusive, já deu até um nome para esse curso: “Como lidar com finanças básicas para as donas de casa”, sugere a empreendedora.
Sobre as autoras:
Aira Nascimento é moradora da Zona Oeste, nordestina arretada, mãe do Bento, esposa do Gui, fundadora d’As Josefinas Colab e Espaço Cultural, além de consultora de projetos.
Anna Lemos é moradora da Zona Oeste, fotógrafa formada em Linguagens Visuais pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Graduanda em Jornalismo e grafiteira.
Flávia Domingues é jornalista, especialista em comunicação de impacto social. É empreendedora da vida, moradora de Campo Grande, na Zona Oeste.
Heloisa Mazza é moradora da Zona Oeste, professora da rede pública de ensino e mestra em Cooperação Internacional em Educação.
Mariane Diaz é pedagoga e mestra em Educação pela UFRRJ, escutadora de causos e contadora de histórias negras, nascida e criada na Zona Oeste. Atualmente, é moradora de Bangu.