Em Manguinhos, ‘Estrelas do Mandela’ Transforma Vidas Dentro e Fora das Quadras

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O jogador brasileiro mais vezes premiado como o melhor do mundo no futebol é uma mulher. Ainda assim, no país, o esporte é encarado, por vezes, como uma atividade masculina. Por isso, ações que contrariem as regras desse jogo são fundamentais para a construção de uma sociedade mais igualitária. É o caso da equipe de futebol feminino Estrelas do Mandela, projeto que funciona no Complexo de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro. Fundada em 2002, a iniciativa busca promover o esporte dentro das favelas como ferramenta de transformação social. Além de empoderar diretamente as 60 alunas do time—dentro e fora das quadras—o projeto realiza ações de assistência social em comunidades do entorno. 

A coordenadora do Estrelas do Mandela é Graciara da Silva, mais conhecida como Gagui. Nascida e criada em Manguinhos, ela foi aluna do projeto e, atualmente, é professora de educação física. A entrada na universidade abriu muitas portas, mas a luta travada pelo reconhecimento das mulheres nesse espaço começou antes. “Eu já tinha experiência da vivência no futebol feminino e de todas as trincheiras que a gente teve que vencer para fortalecer essa categoria… Lutando contra o machismo, contra a indiferença ao subestimar o nosso potencial e o olhar sobre a sexualização do corpo da mulher naquele espaço tão masculino. Essa é uma barreira que continuamos lutando para ultrapassar”, afirma Gagui.

A presença de uma ex-aluna na linha de frente da iniciativa tem bastante influência sobre as alunas, ao verem na treinadora possibilidades de futuro para elas próprias. “As meninas podem se ver através de mim, porque fui uma menina rebelde e ninguém dava nada por mim, mas a minha vontade de mudar através do esporte fez uma diferença muito grande na minha vida”, conta Gagui. Após passar pelo Estrelas do Mandela, ela jogou em outras equipes e teve suas primeiras experiências profissionais no esporte. 

Nos últimos 19 anos, as demandas do território e das alunas atendidas pela iniciativa mudaram, levando também à alterações no projeto. No começo, participavam meninas e mulheres, entre 14 a 35 anos. Porém, o avanço da maternidade entre as alunas mais jovens motivou ações de enfrentamento a essa dura realidade. “Havia meninas do projeto que estavam com 16 anos já na segunda gestação e como as coisas iam, logo estariam na terceira. Isso era algo que nos preocupava muito”, explicou Gagui. Neste momento, a iniciativa passou a trabalhar com crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, mirando mudanças estruturais nesse cenário, por meio de atividades de conscientização sobre a maternidade precoce, o lugar e o direito da mulher, assim como, seu planejamento de vida. “Trabalhamos diretamente com o empoderamento feminino através do esporte. Queremos que elas [alunas] tenham uma perspectiva de futuro, de um lugar onde elas queiram estar”, aponta Gagui.

O Complexo de Manguinhos é formado por doze favelas, entre estas as comunidades Mandela, onde o projeto teve início, e Mandela II, onde os treinos das equipes femininas ocorrem semanalmente no momento atual. Além do treinamento esportivo, o projeto oferece atividades complementares de reforço escolar duas vezes por semana. São realizadas, também, oficinas de leitura com as meninas mais novas, utilizando uma bibliografia de autores negros para o empoderamento das pequenas: “Isso é muito importante, porque o perfil comum entre as nossas alunas é uma criança negra, na sua maioria sem o pai [presente], com o cabelo crespo, com os olhos e tom de pele escuro, com vergonha de falar seu nome. A gente propõe complementar a educação nas oficinas que realizamos. Hoje isso é ainda mais importante, porque a educação no Brasil durante a pandemia está muito fragilizada, sem atendimento para complementar as aulas online”, ressalta Gagui. 

Um Cartão Vermelho para o Machismo

Até chegar ao patamar atual, Gagui conta que houve uma longa caminhada em busca de visibilidade, parceiros e reconhecimento dentro e fora da favela. O projeto, de início, contava apenas com voluntários e as doações eram escassas. As coisas começaram a mudar quando o projeto passou por uma formalização e organização interna, como explica Gagui: “Conseguimos centralizar os nossos objetivos e começamos a nos dedicar em campanhas para arrecadação, fazer crowdfunding, fazer vaquinhas… Conseguimos também parceiros fixos. Temos uma parceria muito legal com a Ace Projects, que trabalha com capacitação de lideranças e nos ajuda diretamente com o investimento na contratação do professor de reforço escolar e na secretaria do projeto”.

Outro desafio enfrentado é o machismo que se faz presente dentro e fora das quadras. A reprodução de comentários ofensivos e piadas por pessoas da própria comunidade indicam o desafio que é vencer o imaginário comum do futebol como espaço estritamente masculino. “O machismo foi, claramente, escancarado pra nós a partir do momento que começamos a usar a quadra, em horário fixo toda semana. Quando a gente declara que aquele espaço também é nosso, começamos a sofrer vários ataques. Alguns ficavam fora de quadra ridicularizando ‘não joga nada, tudo ruim…’, dizendo coisas bem pesadas”, lamenta Gagui. 

Na avaliação de Gagui esses comentários fazem parte da reprodução de uma estrutura patriarcal já enraizada não apenas nas favelas, como em toda a sociedade. “Isso é tudo uma forma clara de machismo vista através de reproduções de crianças, enraizada já aí. Imagina que homens irão se tornar, já que nem ao menos conseguem dividir o espaço da quadra? Então, a gente entra em um cuidado direto com as meninas do projeto, através do empoderamento feminino”, explica Gagui, ressaltando a necessidade de trabalhar a equidade de gênero nas favelas, com a inclusão dos meninos nessa discussão. 

Para melhorar as instalações do projeto, a equipe por trás do Estrelas do Mandela está organizando uma campanha de arrecadação para construir uma cozinha no segundo semestre de 2021. O espaço vai permitir a produção e entrega de lanche às alunas. “Hoje temos uma sala grande na quadra do projeto, mas é uma sala de atendimento, onde também acontecem as nossas oficinas e atividades de apoio escolar. Não temos condição de colocar nossos livros com a comida. A gente já tem o espaço, só falta conseguir um auxílio e construir. Nós, inclusive, já temos um bebedouro, mas não temos onde instalar. Isso vai aumentar a qualidade do atendimento que oferecemos às nossas alunas e, também, ao receber os times de fora [da comunidade]”, explica Gagui.

Driblando os Impactos da Pandemia 

Com a chegada da pandemia da Covid-19, o projeto se tornou um vetor de ações sociais para além do esporte. A iniciativa solidária começou no ano passado, quando algumas mães de alunas do projeto trouxeram as dificuldades financeiras que estavam enfrentando em casa. “Fomos para as redes sociais e pedimos muito por ajuda. A partir daí, recebemos o apoio de organizações como a Fiocruz. Juntos, criamos uma campanha de distribuição de alimentos chamada Solidariedade em Manguinhos. Isso foi muito bom porque criamos uma relação direta com os responsáveis dessas alunas. Assim, fomos também nos fortalecendo”, descreve Gagui.

A partir desta primeira campanha de alimentos, outros parceiros surgiram, permitindo ao projeto atender um público mais abrangente: “Hoje, a gente também faz a distribuição de alimentos para moradores de doze comunidades. Ou seja, essa campanha dobrou o número de comunidades que alcançamos com o apoio dado às meninas. Além de Manguinhos, hoje atendemos Jacarezinho, Maré e adjacências”.

Um dos maiores parceiros, no momento atual, é a rede do Gerando Falcões, que selecionou o Estrelas do Mandela para distribuir cesta básicas digitais, no formato de tickets de alimentação no valor de R$150,00 mensais, pelo período de dois meses. Essa campanha já impactou 200 famílias e, em breve, será ampliada para 250 famílias. “Essa forma de ajuda dá a oportunidade para a pessoa comprar o que ela precisa. Nós buscamos levar, ao máximo, a dignidade humana para a favela, porque isso dá a opção da pessoa comer o que ela quer comer. Vemos a alegria e a felicidade de quem recebe”, fala, orgulhosa. 

De acordo com Gagui, hoje o maior sonho do projeto é cumprir sua visão: ser um projeto de referência em Manguinhos, promovendo a saúde, a qualidade de vida e o bem-estar das alunas e suas famílias, alcançando o máximo de comunidades possível: “Nossa missão é levantar a vida socioeconômica do povo favelado, que é tão estereotipado. Lutamos contra a criminalização da pobreza. Queremos que o nosso projeto seja um espelho para outros projetos de comunidades que vivem uma realidade parecida com a nossa. Queremos produzir dignidade humana. A solidariedade é o que mantém a favela”.


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