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Desde o último dia 7 de julho, a comunidade do Banhado se encontra sitiada pelas forças da Polícia Militar e da Guarda Civil Municipal. Abordagens truculentas, carros multados, invasão de domicílios, fechamento de estabelecimentos e cadastro de moradores para o aluguel social são algumas das violações relatadas pelos moradores.
“Nós somos moradores do Banhado já há cem anos. Somos descendentes de índios e quilombolas. E ultimamente nós estamos sofrendo ataques do município, mas propriamente da prefeitura, sobre nós. E violando vários direitos, violando a lei, porque está judicializado e nós estamos ganhando na justiça, e a prefeitura não tendo saída está atacando à lei para chegar ao objetivo dela.” — José Donizetti de Paula, morador do Banhado
Em novembro de 2021, a comunidade do Banhado, na cidade de São José dos Campos, interior do estado de São Paulo, foi objeto de um pedido de desocupação total impetrado na Justiça pela prefeitura. O pedido de desocupação é fruto de uma batalha judicial entre a comunidade e municipalidade que tramita desde 2018.
O conflito entre a municipalidade e a comunidade piorou a partir do último dia 7 julho, quando um grande efetivo policial, acompanhado da guarda civil municipal, adentrou a comunidade fortemente armado: viaturas, motos, helicópteros, em uma demonstração de força bélica. Desde então, bases policiais foram instaladas na comunidade de forma permanente. Os moradores relataram casos de intimidação e abusos de autoridade.
A favela do Banhado, também conhecida como Jardim Nova Esperança, é uma comunidade centenária, com conflitos fundiários que datam desde, pelo menos, a década de 1930. A comunidade luta pelo direito à permanência diante de dois grandes projetos da municipalidade—a construção de uma via expressa e a transformação da área em parque natural.
Em suma, as intervenções físicas na área do Banhado integram um projeto da municipalidade que independe de governos. A municipalidade deseja transformar a paisagem, ao passo que a comunidade é guardiã do local em que vive.
A Paisagem se Revela: O Território de Vida
A comunidade do Banhado foi a primeira favela de São José dos Campos. Atualmente, está registrada oficialmente como Jardim Nova Esperança, mas houve diversas denominações ao longo de sua história. De acordo com a literatura, ela foi fundada em 1931, seguida da Favela Linha Velha, em 1932.
No entanto, entrevistas junto à comunidade revelam saberes desconsiderados, que indicam as origens ancestrais da ocupação. De acordo com as narrativas dos moradores mais antigos, o Banhado começa com famílias remanescentes de quilombos e aldeias indígenas, provavelmente antes mesmo do período comumente aceito pela literatura. Na década de 1930, a região recebeu famílias de imigrantes, como os japoneses, espanhóis, italianos e portugueses.
“Nós estamos dentro duma cidade… certo?… [Mas aqui no] Banhado você acha hortaliças, criadores de peixe,… criadores de gado, criadores de porcos… E essa mata que nós temos… e essas vertentes que nós temos… se eu quiser comer uma abóbora agora, eu vou ali no meu quintal e apanho… Meu amigo que come uma banana? Vai ali no quintal tem um cacho de banana dentro de casa. Quer comer, tomar um leite tirado na hora? Vai ali no Alemão, ali tem o leite tirado na hora. No pai do Renato. Então, é uma roça na cidade!” — David Morais, morador do Banhado
Segundo os moradores mais antigos, Banhado era conhecida como Chapéu Velho, denominação popular que descrevia as características físicas do território. A favela está no fundo de um vale, contígua e ao mesmo tempo separada do centro urbano de São José dos Campos, em um trecho de várzea do Rio do Paraíba do Sul de São José dos Campos, uma paisagem singular que se deve à sua conformação semicircular, semelhante à uma baia rasa. Os pesquisadores regionais Ademir Morelli e Ademir Pereira dos Santos a definem a partir de três dimensões: a várzea, o rio e a encosta semicircular.
“É uma terra abençoada por Deus. Entendeu? Por isso que a gente gosta. Eu amo o Banhado. Eu amo o Banhado. Não é que eu gosto, eu amo o Banhado.” — Kardec Gonzaga, morador do Banhado
No platô que margeia o Banhado, São José dos Campos nasceu como aldeia (1680) e assim permaneceu pequena e modesta, até ser elevada à condição de vila (1767) e de cidade (1864). Por sua vez, o Banhado permaneceu alheio à vida urbana, quase sempre caracterizado como um vazio urbano. Até a segunda metade do século XX, Banhado era uma planície alagável. A partir de 1912, com a construção do ramal ferroviário, a planície foi sendo ocupada gradativamente por plantações de arroz. Com a criação dos canais de drenagem para rizicultura, a paisagem do Banhado obedecia o ritmo sazonal das cheias do Rio Paraíba do Sul.
Neste espaço, as narrativas dos moradores revelaram o “Banhado de antigamente”, cujo espaço e tempo eram marcados pelo ciclo sazonal das cheias do Rio Paraíba do Sul. Os moradores revelaram o espaço vivido, permeado pela presença do sobrenatural, das lendas e dos causos. O Banhado vivido é representado como “uma roça na cidade”, um misto de rural e urbano.
“Essas árvores, foi tudo plantado pelos nossos avós, nossos pais.” — José Donizetti de Paula, morador do Banhado
Os Projetos Históricos de Transformação da Paisagem do Banhado
De Estância Climatérica, instituída por decreto em 1935, a cidade se tornaria uma área de segurança nacional. Por sua posição estratégica, abrigaria o Centro Técnico de Aeronáutica (CTA), que foi inaugurado em 1950. Além disso, a recém inaugurada Rodovia Presidente Dutra se tornaria catalisadora de negócios que se instalaram ao longo da rodovia.
Neste contexto, o Banhado passou a ser visualizado de forma diferente pela cidade, não mais desprezado como um vazio urbano. A primeira intervenção pública ocorreu no Estado Novo, com a abertura da avenida que margeia o Banhado em 1939, obra executada por um Ato Administrativo do Interventor Estadual (governador de São Paulo apontado por Getúlio Vargas), o Engenheiro Francisco José Longo.
Durante o “milagre econômico” da ditadura, negociações com o grupo norte-americano Disney World, foram feitas para elaborar a proposta do Parque Regional do Banhado. A proposta materializaria em elementos bucólicos para representar o Banhado: o mar, a praia, o pôr-do-sol e a Serra da Mantiqueira em um parque temático, composto por lagos, áreas verdes e condomínios fechados. Seria também construída uma estação de um monotrilho elevado, que se estenderia até a Grande São Paulo.
No entanto, esses eram projetos inviáveis economicamente, mas que contribuíram para estudos posteriores. Em 1981, o Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A. (CNEC) foi contratado para desenvolver uma nova proposta. O estudo denominado Área Recreacional do Banhado adaptava o projeto do parque temático em menores proporções, desta vez, com planos para um metrô de superfície, o que, da mesma forma, nunca se concretizou.
Entre 1991 e 1992, em um período democrático e com os debates ambientais da Eco-92, uma nova proposta foi elaborada por vários segmentos da sociedade, que visava romper com as propostas anteriores, fundamentalmente baseadas na noção de parques temáticos. Apesar de inovadora, a proposta elaborada pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) compartilhava diversos pontos com as propostas anteriores, como não incluir os moradores do Banhado nos projetos de parque. Todas as propostas exigiam como condição para criação do parque a remoção completa da população do Banhado.
O Banhado no Século XXI: A Construção de um Modelo Neoliberal de Cidade
No começo dos anos 2000, a municipalidade implementou os Planos de Desfavelização, com o objetivo de erradicar as favelas do município em curto prazo. Usando o Plano Diretor de 1995 para firmar uma parceria público-privada com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o objetivo era captar recursos para o Projeto Casa da Gente, vinculado ao Programa Habitar Brasil-BID executado pelo governo federal. Embora esse programa fosse essencialmente de urbanização de favelas, em São José dos Campos o projeto assumiu um caráter remocionista.
Entre 1996 e 2004, foram removidos 24 núcleos de favelas. Esta política de erradicação de favelas ajudou a consolidar a imagem de São José dos Campos como uma “Cidade sem Favelas”. As favelas que resistiram à política de desfavelização são julgadas como anômalas ao processo de desenvolvimento.
Em 2002, o Banhado se tornou área de proteção ambiental do Estado de São Paulo pela Lei N. 11.262/2002. Nessa época, os entrevistados revelaram o processo de esvaziamento das políticas sociais no bairro, com destaque para a presença ostensiva da polícia e o assédio dos servidores municipais.
Alguns anos mais tarde, o Plano Diretor de 2006 instituiu várias diretrizes, executadas por um plano estratégico—o Programa de Estruturação Urbana (PEU). Apesar de inicialmente planejado como um projeto viário, o BID estabeleceu como condicionalidade para a municipalidade um programa de melhorias ambientais e modernização administrativa.
Agentes locais fomentavam a restrição da ocupação humana, o que se materializou na Lei N. 8756/2012, que criou o Parque Natural Municipal do Banhado. A questão crucial, que determinaria o destino das famílias locais, se inscreve na mudança de tratamento da propriedade a partir desta lei. Enquanto em Áreas de Proteção Ambiental existe a possibilidade de permanência das propriedades, desde que compatibilizadas com as funções ambientais da área, nos Parques Naturais as terras são declaradas de domínio público e as terras particulares devem ser desapropriadas.
Em 2013, nas eleições municipais, apesar dos compromissos firmados com a comunidade, o candidato eleito assumiu a mesma postura que seus antecessores. A desilusão política dos moradores do Banhado se consolidou.
Em um estudo encomendado pelo prefeito eleito, defendia-se a criação da via expressa e a remoção dos moradores do Banhado. Classificou-se a área do Jardim Nova Esperança como ocupação de risco para o movimento de massa da encosta e apontou-se para o despejo de esgoto sanitário sem tratamento como elemento poluidor da área.
Os moradores do bairro relatam que, ao longo dos anos, foram realizados diversos levantamentos cadastrais na comunidade, sem que fossem esclarecidos os reais objetivos de tais cadastramentos. De fato, eles vêm sendo utilizados no sentido de convencer famílias a deixarem o local.
Dentre as técnicas utilizadas pela prefeitura, destaca-se a prática de demolição das residências cujos moradores aceitaram a realocação, deixando os entulhos da demolição no próprio local, o que estimula a proliferação de vetores e degradação da já precária qualidade de vida dos moradores.
“A comunidade do Banhado é uma comunidade emblemática… muito antiga. Localizada praticamente no centro da cidade. E é uma comunidade abandonada há muitos anos pelo poder público… É uma comunidade criminalizada pela população, com as constantes ameaças de remoção desse núcleo, da extinção desse núcleo urbano. Esta extinção das condições precárias que algumas famílias viviam e ainda vivem, sob a ótica do poder público, passava pela eliminação física da comunidade, e não pela eliminação das condições… Normalmente são profissionais da área da assistência social que procuram as famílias, dizendo que eles vão ter que sair, e se não sair eles vão ter que sair a força. Especificamente aqui no Banhado a gente teve uma série de problemas, porque houve fraudes na apresentação do projeto de desfavelização, em que a comunidade era perguntada para onde ela queria ir. Não se perguntava que ela queria sair ou ficar, se ela queria regularizar o bairro, mas para onde ela queria ir. E aí, com base nesses cadastros, se chegou à conclusão de que mais de 90% da comunidade queria sair daqui.” — Jairo Salvador de Souza, Defensor Público do Estado de São Paulo
Outra prática observada é o congelamento do bairro por tempo indeterminado, que consiste na proibição de qualquer nova construção, ampliação ou reforma dos imóveis existentes no local. O Jardim Nova Esperança encontra-se “congelado” há mais de 16 anos, sem que os moradores possam fazer qualquer intervenção nos seus imóveis, causando deterioração ainda maior das moradias lá existentes.
“Se hoje a qualidade de vida daqui piorou, é graças à Prefeitura. Seja ela da antiga gestão, seja da última, seja da atual, isso não difere em nada.” — Renato Leandro, morador do Banhado
A partir dos anos 2000, os moradores que aceitaram a proposta de atendimento habitacional começaram a ser transferidos para os conjuntos habitacionais na periferia. O sonho inicial de conquista de uma vida digna transformou-se rapidamente, para grande parte dos moradores dos novos empreendimentos, em grande pesadelo. Isto porque todos esses conjuntos foram entregues sem a devida regularização fundiária, com diversos problemas estruturais e sem a individualização da medição de água.
Em 2017, os moradores do Banhado protocolaram um pedido formal de regularização fundiária na modalidade de Interesse Social (REURB-S). O pedido de regularização foi formulado com base no que dispunha a Medida Provisória n° 759/2016, que viria a ser convertida na Lei n° 13.465/2017.
Em 18 de maio de 2018, a Defensoria Pública foi convidada pela prefeitura para uma reunião, onde foi apresentado o Programa Casa Joseense. A Defensoria Pública se comprometeu em enviar uma proposta de regularização do núcleo habitacional. Em 18 de junho de 2018, foi encaminhado o Plano de Regularização Fundiária e Urbanização do Banhado.
Não obstante, a municipalidade simplesmente encerrou o diálogo, reiniciando o assédio moral à comunidade, como a instalação de um ponto de controle de entrada e saída da comunidade e o bloqueio com manilhas da principal via da comunidade.
No presente momento a situação da comunidade do Banhado se encontra judicializada, com pedidos diametralmente opostos. Movida pela Defensoria Pública e a Sociedade dos Amigos do Jardim Nova Esperança, uma pede que a cidade seja condenada a produzir projeto de regularização urbanística, com participação da população. Já o município promove ação civil pública contra os moradores, em que pleiteia tutela provisória de urgência antecipada, para forçar a desocupação do Jardim Nova Esperança.
Massacre Iminente: São José dos Campos Está Produzindo um Novo Pinheirinho
Às vésperas das eleições presidenciais, a comunidade do Banhado está enfrentando a exceção como regra, com ocupação da rua principal com bases policiais que vigiam a comunidade 24 horas por dia.
“A prefeitura intensificou os ataques em vários sentidos, e ultimamente agora ela decidiu vir na parte do amanhecer do dia, e nos atacou no último dia 23 de agosto derrubando várias casas de moradia, casas habitadas por pessoas que moram aqui no Banhado e que trabalham aqui na cidade… Afetou com isso um número de quatro à sete famílias por causa dessa ação dela. Então agora a Justiça entrou em ação e deu cinco dias, a partir de 24 de agosto para que o município se manifeste, que a prefeitura se manifesta para relatar o por quê a prefeitura fez isso, tendo em vista que já está judicializado e está proibido qualquer ação do município aqui dentro da comunidade.” — José Donizetti de Paula, morador do Banhado
A justificativa da Polícia Militar é a de que a operação policial busca trazer segurança aos moradores diante do tráfico de drogas. Em uma tarde de quinta-feira, as forças policiais atacaram simultaneamente por terra e pelo ar, ocupando a comunidade em poucos minutos. Pela entrada principal, homens fortemente armados com metralhadoras em viaturas e motos adentravam a comunidade.
Após a ocupação violenta, houve invasão de domicílios, fechamento de estabelecimentos comerciais, carros multados, fechamento das atividades dos recicladores e uma vigilância constante, onde não é raro os moradores serem abordados nas entradas e saídas do bairro, com frases intimidatórias dos policiais: “aonde você vai?” ou “você usa droga?”.
Como de praxe, a tática da prefeitura para desmobilização da comunidade consiste em contactar individualmente os moradores para conseguir a adesão ao aluguel social. Esta estratégia não tem conseguido garantir a remoção total do núcleo, mas coloca os moradores que aderem às proposta contra os moradores que ficam.
“Nós aqui do Museu das Remoções, no Rio de Janeiro, vemos com grande preocupação toda a covardia e truculência que a comunidade centenário do Banhado em São José dos Campos está sofrendo. Chega desse processo remocionista. Uma comunidade que já têm seu plano popular pronto só esperando que os governos façam o seu trabalho: que urbanize a comunidade do Banhado.” — Luiz Claudio, Vila Autódromo
A postura da municipalidade em usar o terror para quebrar a resistência da comunidade nos adverte que um novo massacre do Pinheirinho pode ocorrer no Banhado.
“Tudo que tem acontecido aqui pela prefeitura, todas as suas ações, é o emprego das forças de segurança contra o pobre… Não tem o aval da Justiça. Então ela está fazendo tudo de maneira sorrateira, de maneira que ela vem com as forças de segurança, ela sitia o lugar, isola, ataca e quebra as casas. É uma covardia, é um contraponto, é uma situação mesmo desesperadora que está acontecendo aqui. Porque eles vêm com um aparato muito grande de policiais e guardas civis municipais. E aí eles isolam a área. Não deixam ninguém passar. Tudo armado com arma de grosso calibre, e aí eles atacam e derrubam as casas. E agridem as pessoas. Inclusiva agora teve até atropelamento, teve um princípio de combate entre os policiais e os moradores, porque os moradores querem defender as suas casas, aí os policiais vai pra cima, e agride e bate. Então nós aqui, a população do Banhado, nós estamos aqui sofrendo nesses últimos dias, e principalmente nessa última ação que foi no dia 23 de agosto, sofrendo muito pelo ataque do município, pela ataque da prefeitura de São José dos Campos.” — José Donizetti de Paula, morador do Banhado
Em linhas gerais, a ideia da transformação do Banhado em parque, tanto sob o modelo temático, como o modelo ecológico, se sustenta no pressuposto de que a técnica, e somente ela, poderia proporcionar o retorno da natureza natural.
Na guerra silenciosa contra os moradores do Banhado, o planejamento urbano carrega consigo a herança da matriz higienista. Com efeito, no discurso institucional, os moradores do Banhado são enquadrados como empecilhos para as propostas de planejamento urbano. O parque e a via expressa seriam os responsáveis por realizar o “trabalho sujo”, de realizar a “limpeza” do que macula a paisagem.
Na verdade, os grupos políticos que controlaram a municipalidade nunca compreenderam o que de fato é o Banhado. A cidade nunca esteve aberta a compreender o Banhado, sua cultura e valores.