Pela Segunda Vez em Três Dias, Operações Policiais Impõem Terror Psicológico e Deixam Vítimas na Maré É #OQueDizemAsRedes

Complexo da Maré. Foto: Antoine Horenbeek
Complexo da Maré. Foto: Antoine Horenbeek

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Matéria da série #OQueDizemAsRedes que traz pontos de vista publicados nas redes sociais, de moradores e ativistas de favela sobre eventos e temas que surgem na sociedade.

Lideranças comunitárias, especialistas, pesquisadores, parlamentares e anônimos protestam nas redes contra a violência do governo Cláudio Castro no Complexo da Maré. Mais uma vez, moradores do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, foram brutalmente violentados por uma ação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), tropa de elite da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

No momento da ação, realizada no início da madrugada de domingo para segunda-feira, em 17 de abril, muitos moradores circulavam nas ruas, aproveitando o final do fim de semana. Haviam vários eventos culturais acontecendo na região quando os caveirões, veículos blindados da PMERJ, e centenas de policiais invadiram o conjunto de favelas, iniciando o confronto.

“Às 00h15 desta segunda-feira (17), blindados da polícia adentraram o Conjunto de Favelas da Maré. Temos relatos de disparos nas favelas Rubens Vaz, Nova Holanda e Parque União”, informa o post da ONG Redes da Maré no Twitter, às 00h55. Não fosse a data do post, a “nova informação” poderia ser perfeitamente confundida com uma “velha”, publicada apenas 48 horas antes, em 14 de abril, quando houve outra invasão policial. Essa foi a segunda operação policial em três dias na comunidade.

De acordo com relatório do Instituto Fogo Cruzado, os 100 primeiros dias do governo de Cláudio Castro—chamado de “governador das chacinas” por organizações de direitos humanos e por movimentos sociais de favelas—foram marcados pelo crescimento de vítimas de balas perdidas e pela ausência de políticas de transparência no campo da segurança pública.

“Entre os dias 1 de janeiro e 10 de abril deste ano, 52 pessoas foram vítimas de balas perdidas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Isso representa um crescimento de 79% em relação ao mesmo período em 2022 [quando 29 foram vitimadas]”, destaca o levantamento divulgado pelo Instituto, que aponta ainda o mapeamento de 1.014 tiroteios na Região Metropolitana do Rio.

Invasão Policial Leva Pânico e Morte à Maré, em 17 de Abril

Em vídeos gravados por moradores, que circulam nas redes sociais referentes à ação policial do dia 17 de abril, é possível ver moradores correndo e tentando se abrigar em meio a muita fumaça, gás de pimenta, barulho de tiros e gritos: “Tem criança aqui. É morador! É morador! É morador”, grita um homem desesperado.

A equipe da Redes da Maré atua durante situações de operações e ações policiais, justamente como as que aconteceram nos dias 14 e 17 de abril, acolhendo moradores que sofrem algum tipo de violação de direitos. A instituição da sociedade civil produz conhecimento, elabora projetos e ações na busca pela garantia de políticas públicas efetivas no conjunto de 16 favelas. De acordo com nota de protesto lançada pela ONG, intitulada Semana Termina e Começa com Operações Policiais na Maré:

“Apuramos que naquele momento ocorria o final de um chá de bebê, um evento com música e pessoas que ainda circulavam na rua. A presença do carro ‘caveirão’ gerou disparos de armas de fogo, correria, terror e muito medo. Sem informações sobre o que estava acontecendo, moradores buscavam abrigo pelas ruas da favela ou meios de chegar até a Avenida Brasil.”

Na nota, a instituição protesta contra os contínuos descumprimentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 635) por parte do Governador Claudio Castro. Além de buscar garantir que as polícias comunicassem e justificassem a excepcionalidade da medida ao Ministério Público para a realização de qualquer operação em favela durante a pandemia, a ação do Supremo Tribunal Federal (STF) visa a redução da letalidade policial nesses mesmos territórios em caráter definitivo. Com isso, os onze pontos que vêm sendo analisados pelos ministros e mencionados na nota da Redes incluem: que o Estado garanta ambulâncias no local onde as operações policiais acontecem a fim de prestarem os primeiros atendimentos aos feridos; o monitoramento por câmeras corporais e GPS nas viaturas; a manutenção da cena de prática do ato lesivo e atuação da perícia criminal; e a não-realização de operações noturnas, como essa do dia 17 de abril.

Na ação policial, duas pessoas feridas foram levadas ao Hospital Estadual Getúlio Vargas (HEGV), onde uma delas morreu. O terror psicológico do confronto atingiu moradores, ao longo de horas, durante a madrugada e a manhã de segunda.

Rene Silva, fundador do jornal Voz das Comunidades, denunciou a situação pelo Twitter. Ele publicizou através de um print uma conversa de um aplicativo de mensagens. Nela, uma amiga narra que um policial colocou um fuzil no seu rosto e ameaçou matar todos, incluindo, as crianças.

No post publicado às 01h03 da madrugada, com mais de 1,2 milhões de visualizações, outros moradores relatam estar acuados em meio ao tiroteio, sufocados por gás de pimenta de bombas disparadas pelos policiais. No total, 140.000 pessoas moram nas favelas da Maré.

Raphael Vicente, de 22 anos, sucesso nas redes sociais com vídeos bem-humorados que protagoniza ao lado da família, rosto da nova campanha do Gshow para internet e também TV, em um comovente desabafo, publicado em seu perfil, afirmou que não sabe como escrever sobre a violência, mas que às vezes a violência faz essa escrita ser necessária.

Nunca sei como começar a escrever sobre esse assunto. Acho que é porque no fundo, eu não queria ter que escrever sobre ele. Minha meta com meu trabalho é mostrar tudo aquilo que a mídia não fala das favelas: alegria, amor e toda potência que existe aqui dentro. E falar sobre a violência que constantemente sofremos aqui na Maré, sempre me dói muito. Mas, é necessário. São 22 anos que vivo aqui e sei que até a violência que a mídia ama falar, a mesma mídia faz questão também de omitir e mentir sobre ela.

O desabafo foi publicado às 17h54 da tarde no mesmo dia da ação policial, 17, durante o Twittaço#AFavelaQuerViver” puxado por moradores da Maré, movimentos de base comunitária das favelas, organizações da sociedade civil e até parlamentares.

Marcando o perfil do Governador Claudio Castro e de Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro, Raphael Vicente questiona se ações policiais em espaços de festas na Zona Sul da capital carioca, em bairros da classe média e alta, também são realizadas com truculência e violações.

As áreas de educação e saúde foram afetadas pela ação policial: 23 unidades escolares não funcionaram na segunda-feira, 17, afetando 8.274 alunos, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Já a Clínica da Família Jeremias Morais da Silva também teve o atendimento suspenso durante o dia.

Em 2023, operações policiais no Rio de Janeiro afetaram 80.000 alunos. Dados da Secretaria Municipal de Educação mostram que, entre fevereiro e março, as escolas acionaram o protocolo de segurança 1.322 vezes.

Somente em abril, as favelas da Maré já foram alvo de três ações policiais. Em 5 de abril, um caveirão do Bope invadiu o pátio do centro de ensino na favela Nova Holanda para prender suspeitos que se escondiam no local. O prédio da escola estava vazio. As aulas foram canceladas horas antes.

Mesmo assim, em vídeo que circulou nas redes sociais, é possível ver a hora em que dois caveirões—veículos blindados da Polícia Militar—adentram o pátio da escola e aterrorizam crianças e adultos.

Vidas Interrompidas: #AMaréPedePaz

Ao longo do dia, através das hashtags #AFavelaQuerViver e #AMaréPedePaz, moradores de diferentes favelas e parlamentares protestaram no Twitter.

Liderança do Complexo do Alemão, Camila Moradia, também afirmou que “pobreza não é crime” e afirmou que a favela só quer “trabalhar, levar os filhos para escola, ir ao posto médico…” E completa: “Ser favelado não é crime!”

O Coletivo Brota na Laje recordou que as duas ações policiais na Maré em três dias, aconteceram em meio aos 20 anos da Chacina do Borel.

Os protestos nas redes contra a violação policial e a violação do direito à favela foram publicados até em francês e italiano.

Invasão Policial Interrompe e Ameaça Parlamentar na Maré, em 14 de Abril

No dia 14 de abril, a ONG Redes da Maré teve seu lançamento da pesquisa “Violências, Corpo e Território: Sobre a vida de mulheres da Maré” interrompido por uma operação policial. A Deputada Estadual Renata Souza, cria da favela da Maré, era uma das convidadas e precisou se abrigar, junto a outras 70 mulheres que participavam do encontro, por conta dos disparos efetuados durante uma operação policial feita na localidade.

Ela afirmou ainda que não é a primeira vez que viveu essa situação, definida pela parlamentar como “aterrorizante”. No entanto, como deputada, foi a primeira experiência do tipo.

O estudo qualitativo lança um olhar científico sobre relatos de como os tiroteios impactam a vida de mulheres das favelas da região. A pesquisa envolveu além da Redes das Maré, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de duas instituições britânicas, as universidades de Warwick e de Cardiff.

Somente em 2022, segundo monitoramento da Redes da Maré, foram registradas 27 operações policiais na Maré: uma a cada 13 dias. De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2022 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maioria das vítimas de mortes decorrentes de intervenção policial no país é do sexo masculino (99,2%), de negros (84,1%) e com menos de 29 anos (74%).

Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista, comunicadora popular e repórter especial do RioOnWatch. Mestra em Mídia e Cotidiano pela UFF e doutoranda em Comunicação pela mesma instituição, integra o Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão. Feminista negra de pele clara e cria da Favela do Quitungo e do Morro do Tuiuti, hoje é moradora do asfalto periférico do subúrbio do Rio.


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