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Esta é a primeira parte de uma matéria de duas partes sobre as conquistas de representatividade nas Olimpíadas de 2024.
Os Jogos Olímpicos têm uma história nociva para as cidades escolhidas como sede, mas também são momentos chave na construção do imaginário popular sobre alguns grupos, de representatividade e de entender que alta performance em esportes olímpicos só se concretiza se acompanhada de investimentos.
Nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o Brasil ganhou somente três medalhas de ouro, todas conquistadas por mulheres negras, frutos de projetos sociais e de políticas públicas de investimento nos esportes e nas atletas, são elas: Beatriz Souza, no judô, Rebeca Andrade, no solo da ginástica olímpica, e a dupla Duda e Ana Patrícia, no vôlei de praia. Essa primazia das mulheres não é um fato isolado. Já nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, a vitoriosa presença negra entre os medalhistas chamou atenção.
Beatriz Souza: Primeiro Ouro do Brasil nas Olimpíadas de Paris 2024
O Brasil conquistou seu primeiro ouro olímpico na categoria feminina +78Kg do judô graças a Beatriz Souza, mulher negra, gorda, nascida em Peruíbe, litoral de São Paulo. Esse feito não só encheu o país de orgulho, mas também trouxe à tona a importância de reconhecer e celebrar a participação e as conquistas de atletas afro-brasileiras. Além disso, Beatriz também é prova viva de que pessoas gordas podem ser atléticas, podem ser atletas de alta performance e campeãs olímpicas.
Ela representa a luta diária contra as barreiras raciais, de gênero e gordofóbicas no esporte. Sua vitória é um símbolo de esperança para muitas jovens negras e gordas que sonham em ocupar espaços de destaque no esporte. Beatriz inspira novas gerações a acreditar que é possível alcançar grandes feitos, independentemente de cor, da origem, do gênero ou do peso.
Logo após conquistar o ouro, Bia Souza emocionou o Brasil com uma chamada de vídeo com seus familiares:
“Eu consegui! Eu consegui! Deu certo mãe! Deu certo pai! Eu consegui! Foi pela vó, é pra vó, mãe. Eu amo vocês mais que tudo. Eu amo vocês!”
Beatriz Souza, primeira campeã olímpica em 2024, recebe Bolsa Atleta, política pública do Ministério dos Esportes. voltada para o apoio de atletas de alta performance. Assim como a maioria dos esportistas negros, Bia começou sua trajetória em um projeto social em seu território. Fundado pelo sensei Samuel Lopes, o projeto social Associação de Judô Budokan de Peruíbe oferece aulas gratuitas de judô para crianças em situação de vulnerabilidade social.
Essa conquista evidencia um movimento crescente de valorização e visibilidade das mulheres negras em diversas esferas da sociedade. Um impacto dessa vitória foi o expressivo aumento de seguidores nas redes sociais de Bia Souza após conquistar o ouro. Isso reflete o reconhecimento do que ela conquistou como atleta e demonstra que ela é uma figura que inspira.
Rebeca Andrade: a Força da Representatividade Negra
Rebeca Andrade marcou presença nos Jogos Olímpicos de 2024 e foi a segunda pessoa a ganhar ouro pelo Brasil nesta edição. A ginasta de 25 anos, cria de Guarulhos, São Paulo é considerada a melhor atleta em sua modalidade no Brasil e uma das melhores do mundo. A paulista já tinha uma medalha de ouro no salto e outra de prata no individual geral, conquistadas em Tóquio em 2021. No entanto, em Paris 2024, ela se superou e conquistou: ouro no solo, prata no salto, prata no individual geral e bronze no geral por equipes junto às outras ginastas da seleção brasileira.
Em um pódio histórico do solo, junto a Rebeca Andrade estavam somente ginastas afrodiaspóricas: Simone Biles, em segundo, e Jordan Chiles, em terceiro, ambas ginastas negras estadunidenses. Primeiro pódio completamente negro da ginástica olímpica, um esporte historicamente branco.
No entanto, dias depois, a equipe romena entrou com um pedido de revisão do resultado e a atleta romena Ana Maria Bărbosu foi declarada terceira colocada. Essa decisão, já declarada como final, obriga Jordan a devolver sua medalha de bronze. Isso foi interpretado por muitos como falta de fair play da atleta, da equipe e da federação romenas. Depois de se tornarem alvo de críticas, a Federação Romena sugeriu que a medalha de bronze fosse dividida entre Jordan (que ficou em quinto lugar depois do recurso romeno), Ana Maria Bărbosu (declarada terceira) e Sabrina Maneca-Voinea (outra romena, declarada quarta). No entanto, independentemente da proposta romena, Jordan teve que devolver a medalha, que foi dada a Ana Maria dez dias depois do pódio de Paris em uma cerimônia em Bucareste, capital da Romênia.
No esteio das múltiplas conquistas de Rebeca, internautas trouxeram à tona um vídeo antigo dela em Guarulhos, cidade da Grande São Paulo, treinando ao lado da pioneira Daiane dos Santos, hoje, com 41 anos. Essa redescoberta mostra que, para que houvesse Rebeca, antes houve uma Daiane. É evidência do quanto a representatividade é importante, sobretudo em um esporte branco, como a ginástica olímpica.
MEU DEUS! A Daiane dos Santos ensinando ginástica pra Rebeca Andrade em entrevista antiga ❤️ pic.twitter.com/S2m60cNky0
— POPTime (@siteptbr) August 5, 2024
Depois de Paris, Rebeca é oficialmente a maior medalhista da história do Brasil nas Olimpíadas. A cidadã brasileira que mais ganhou medalhas em olimpíadas iniciou sua brilhante trajetória na ginástica 20 anos atrás, em um projeto social em Guarulhos. Essa iniciativa social que lançou Rebeca, hoje, é bastante procurada após as conquistas da atleta. O Programa de Iniciação Esportiva – Ginástica Artística Guarulhos abriu 425 vagas para a iniciação na ginástica artística e, em menos de dois dias, todas as vagas haviam sido preenchidas e ainda havia mais de 90 crianças na lista de espera.
Duda e Ana Patrícia Realizam o Sonho do Pódio Olímpico no Vôlei de Praia
Após oito anos de espera, o vôlei de praia do Brasil volta a ganhar uma medalha de ouro pelas mãos de duas mulheres negras, uma delas nordestina. Com muita determinação, a sergipana Duda Lisboa, de 26 anos, e a mineira Ana Patrícia Ramos, também de 26 anos, conquistaram o primeiro lugar no pódio do vôlei de praia nas Olimpíadas de Paris.
As atletas iniciaram suas carreiras esportivas ainda na infância, contudo, de maneiras muito distintas. Criada na praia, Duda é filha de uma jogadora profissional de vôlei de praia, Cida Lisboa. Além de jogadora, Cida desenvolveu um projeto social como treinadora em sua cidade, São Cristóvão, em Sergipe, na Grande Aracaju, cujo centro de treinamentos era voltado para lapidar talentos. A própria filha Duda se tornou exemplo ao começar a competir aos 12 anos.
Já Ana Patrícia é filha do interior e cresceu bem longe da praia. Na cidade de Espinosa, na divisa entre Minas Gerais e Bahia, começou no futebol e no handebol, as modalidades disponíveis em seu território. Seu sonho era ser atleta. Aos 16 anos, um treinador viu potencial nela para o vôlei de praia e conseguiu uma vaga para que ela treinasse em Betim, cidade a 707 Km de distância. Depois de somente quatro meses treinando, ela foi convocada para o Centro de Treinamento de Saquarema, da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), e se mudou para o Rio de Janeiro.
Nos últimos anos, as jogadoras passaram por momentos de cobrança e sofrimento depois de serem eliminadas das Olimpíadas de Tóquio. Naquela ocasião, ambas faziam dupla com outras atletas e perderam partidas nas quartas e oitavas de final. Desde 2022, elas decidiram se mudar novamente, desta vez, para Uberlândia, cidade no interior de Minas Gerais. Apesar de bem longe do mar, o Praia Clube resolveu investir na modalidade e, em dois anos de trabalho, ajudou a conquistar o ouro olímpico para o Brasil.
“Por favor, agora, quando forem falar, falem também que a gente deu o sangue para ser campeão olímpico para vocês.” — Ana Patrícia Ramos
Duda e Ana Patrícia são apenas a segunda dupla brasileira na história a conquistar o ouro no vôlei de praia feminino. A primeira e única dupla antes delas a subir no lugar mais alto do pódio na modalidade foi Jacqueline Silva e Sandra Pires nas Olimpíadas de Atlanta 1996.
Beatriz Souza, Rebeca Andrade, Duda Lisboa e Ana Patrícia Ramos são referência para milhões de pessoas. As únicas campeãs do país são mulheres negras, de favelas e periferias, do nordeste e do interior. Essas medalhas são fruto das oportunidades que as atletas receberam. É preciso ficar evidente que não se faz campeãs olímpicas só com o esforço e o empenho individuais. É preciso haver políticas públicas que apoiem a população a explorar seus potenciais no ramo esportivo. Essas quatro atletas são a prova de que, com investimento, as mulheres negras, as favelas e as periferias podem tudo, inclusive, ganhar medalhas de ouro para o Brasil.
Esta é a primeira parte de uma matéria de duas partes sobre as conquistas de representatividade das Olimpíadas de 2024. Clique aqui para Parte 2.
Sobre o autor: Cleyton Santanna é jornalista e roteirista formado pela UFRRJ e pela CriaAtivo Film School. Em seu canal no YouTube, discorre sobre curiosidades, ancestralidade e cultura afro-brasileira. Em 2017, produziu dois documentários, “Entre Negros” e “Tudo Vai Ficar Bem”, e, em 2018, foi premiado como roteirista, com o curta-metragem “Vandinho”, pela Creative Economy Network. Atualmente, atua como comunicador no Museu do Amanhã e é o apresentador do podcast Influência Negra.