Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena. Ela também celebra a 23ª Semana Nacional de Museus, entre 12-18 de maio de 2025, com o tema “O futuro dos museus em comunidades em rápida transformação”, proposto pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM). Publicamos hoje essa matéria exaltando um projeto pioneiro de memória favelada, a Rede Memória da Maré, que culminou na fundação do primeiro museu comunitário de favela do Rio de Janeiro, que ainda pauta os rumos da museologia social favelada: o Museu da Maré.
Inauguração do Arquivo Dona Orozina Vieira. Foto: Acervo ADOV/Museu da Maré – CEASM
Criada no final dos anos 1990, a Rede Memória da Maré foi pioneira na preservação da história e da identidade cultural do Complexo da Maré. Deixou um legado de importantes contribuições, como o Acervo Dona Orosina Vieira (ADOV), que ajuda até hoje a construir um sentimento de pertencimento dos moradores com seu território. A Rede Memória da Maré funcionou até 2007, quando foi absorvida pela criação do Museu da Maré.
O início do projeto, porém, parte de uma iniciativa anterior, liderada por jovens mareenses no final dos anos 1980. Mais precisamente no ano de 1989, quando foi criado o grupo TV Maré, que documentava o cotidiano e as histórias de moradores da comunidade. Ao mesmo tempo, foram levantados registros sobre a região, que resultariam no primeiro acervo sobre a Maré. Eram histórias sobre a chegada dos primeiros moradores, como Dona Orosina Vieira, e também manifestações culturais, como as festas juninas, em que ocorriam os antigos shows gays.
O coletivo teve breve período de atuação, sendo encerrado em 1992. Posteriormente, surgiu a necessidade de um espaço destinado à preparação de moradores da Maré que desejavam ingressar na universidade, o que culminou com a criação de uma das primeiras ONGs da Maré, o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), no ano de 1997. Essa iniciativa também partiu de moradores, tanto daqueles que estiveram no TV Maré, como de outros habitantes da região.
Livro Contos e Lendas da Maré, uma das primeiras publicações do projeto. Foto: Acervo Dona Orosina Vieira
Dentro do CEASM, foram criados outros projetos que visavam atuar nas mais variadas frentes, que se dividiram em redes: a Rede de Trabalho e Educação da Maré (RETEM), a Rede Saúde e a Rede Memória, que visava trabalhar em específico a história da comunidade e sua preservação. O material produzido pelo TV Maré foi doado para a Rede Memória e desdobrou-se em diversos outras iniciativas.
Segundo a co-fundadora do CEASM e do Museu da Maré, Cláudia Rose Ribeiro, a organização foi inicialmente pensada para prestar serviços de pré-vestibular, porém ampliou suas atividades em eixos diversos. Seu acervo, já sob a guarda da Rede Memória, tornou-se uma estratégia de trabalhar a identidade e o pertencimento dos estudantes, com vistas a aproximá-los de seu território.
“[A Rede] foi uma forma de incentivá-los a não negarem sua origem. A universidade não foi feita pra favelado, então, utilizar o acervo do projeto foi uma saída [estratégica] até para eles sobreviverem dentro da universidade. Propunhamos trabalhar a memória como ferramenta de identificação com o território, pois acreditávamos que, sabendo de suas lutas anteriores, poderiam se sentir inseridos.” — Cláudia Rose Ribeiro
Segundo o estudo da mestranda em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz da Fiocruz, Thamires Ribeiro de Oliveira, o principal intuito da Rede Memória da Maré era “registrar, preservar e divulgar a história das comunidades que formam o bairro e, a partir disso, promover o fortalecimento do pertencimento local dos mareenses, através de sua história e cultura”.
Sala da Rede Memória. Foto: Acervo ADOV/Museu da Maré – CEASM
Entre as principais frentes de trabalho da Rede Memória da Maré estavam as entrevistas com moradores da Maré e a busca por materiais sobre a comunidade em arquivos da cidade do Rio de Janeiro. Os depoimentos com os moradores mais antigos foram fundamentais para subsidiar as pesquisas em acervos da cidade do Rio de Janeiro. Também foram os responsáveis por outros relevantes projetos que se sucederam, como a criação do grupo de contação de histórias Maré de Histórias, as publicações da instituição, como o livro Contos e Lendas da Maré, e a formação do Acervo Dona Orosina Vieira (ADOV), além do próprio Museu da Maré.
A busca de materiais, principalmente iconográficos, em arquivos, como bibliotecas e museus na cidade do Rio de Janeiro, era conduzida por Antônio Carlos Vieira, outro fundador do Museu da Maré.
“Ajudei a organizar esse material, tentamos dar uma cara de arquivo realmente a essa Rede Memória. Encaminhamos projetos para várias instituições públicas, para gente ver se conseguia financiamento para organizar esse material de memória e também produção de livros. Tem dois livros que estão muito nesse foco da memória, que são o Águas Cariocas, que foi que eu organizei e descobri esse material numa pesquisa na Biblioteca Nacional, achei esse material incrível e a gente decidiu fazer uma publicação. Eram artigos que saíam no jornal Correio da Manhã falando sobre a Baía de Guanabara. E o outro livro foi o A Maré em 12 Tempos, que trata da Maré a partir dos tempos do Museu, que também ajudei a organizar e tenho ajudado a fazer pesquisa.” — Antônio Carlos Vieira
Livro A Maré em 12 Tempos. Foto: Acervo ADOV Museu da Maré – CEASMFoto da Praia do Apicú encontrada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro pela Rede Memória da Maré. Acervo Dona Orosina Vieira (ADOV)
O professor de artes da rede pública Marcelo Vieira foi um dos participantes da TV Maré, responsáveis por salvaguardar e curar o acervo da Maré até a criação do CEASM em 1997. Ele foi um dos “garimpeiros” que reuniu este material, que, depois, passou a compor o acervo do Museu da Maré.
“A gente tinha uma câmera que era [fruto] de uma parceria com uma entidade ligada a Igreja Católica. Através desse projeto, a gente teve oficinas de câmera e de roteiro. A gente filmava as coisas dentro da favela como um todo. Filmava Folia de Reis, acontecimentos culturais, né? O cotidiano dos moradores. Chegamos a produzir alguns vídeos, documentários, tudo em fitas VHS, tudo muito simples.
E, nessas entrevistas, a gente era um grupo que saía andando pela favela buscando ideias… Num desses bate-papos, surgiu a [ideia] de entrevistar os moradores mais antigos. E a gente ouvia certas histórias com a câmera na mão. Pensávamos ‘Ah, vamos entrevistar esses moradores mais antigos’ e saíamos em busca deles, entrevistando essas personalidades, pessoas que a gente ouvia desde criança. ‘Ah, foi a primeira moradora!… Tá aqui há muito tempo,… desde a vila de pescadores…’ Nessas entrevistas, eles começaram a falar como e quando chegaram ali, de onde vieram, sua origem e falavam de como era a região, porque era outro local, completamente diferente do que é hoje. Eles começaram a pontuar histórias, dar depoimentos de coisas que de certa forma eu não entendia muito. Devido a essas entrevistas e à curiosidade com o novo, eu comentei no grupo ‘Ah, vamos pesquisar nos arquivos do Rio de Janeiro’. No finalzinho dos anos 1980, já início dos anos 1990, procuramos informações sobre o que aqueles moradores mais antigos falavam. ‘Inhaúma tinha uma praia’… Eles davam informações que através da pesquisa nos arquivos, o que era oral acabou se concretizando com fotos [artigos e documentos] da Maré no início do século XX.
Livro História da Maré de Antônio Carlos Vieira e Marcelo P. Vieira. Foto: Acervo Dona Orosina Vieira
Então, imagina, você ter 20 e poucos anos e dar de cara com um arquivo iconográfico, do fotógrafo que andou no Rio de Janeiro contratado pela Prefeitura na reforma da cidade: você dar de cara com o registro de como era aquela região e o subúrbio do Rio de Janeiro? Foi uma surpresa imensa!” — Marcelo Vieira
A primeira fase massiva de busca foi realizada ainda pela TV Maré e, depois, foi continuada pela Rede Memória da Maré. O material iconográfico resultou no maior acervo de todo o conjunto encontrado pela Rede Memória da Maré, também se tornou o mais pesquisado e apresentado nas atividades da Rede, como nas exposições.
As fotografias encontradas constavam principalmente em acervos públicos, em instituições e com pesquisadores de fora da comunidade.
Estão entre essas entidades o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), na Coleção Augusto Malta; o Arquivo Nacional, no fundo Correio da Manhã; a Casa de Oswaldo Cruz; o arquivo da Caixa Econômica Federal; e fotografias de Anthony Leeds, antropólogo que estudou a Maré na década de 1960, e João Mendes, fotógrafo do Projeto-Rio. Algumas fotos que se deterioravam na Associação de Moradores do Timbau foram recolhidas por Antônio Carlos Vieira, mais conhecido como Carlinhos, na época em que a presidiu.
A partir da Rede Memória da Maré, essa procura foi intensificada. De acordo com a pesquisa de Thamires Ribeiro de Oliveira:
“Em meados de 2002, a coordenação da Rede Memória da Maré, através da equipe responsável pela pesquisa e aquisição de acervo, empreendeu uma busca em arquivos, museus e bibliotecas com o intuito de realizar o levantamento iconográfico relacionado à região da Maré e adjacências, cujas remoções resultaram em migrações para a Maré, reservando para um segundo momento o levantamento bibliográfico e de documentos manuscritos. Estas pesquisas foram praticamente concluídas no fim do mesmo ano. Também foram levantados registros audiovisuais e mapas, que correspondiam a um número pequeno, se comparados aos registros fotográficos.”
Um dos desdobramentos dessa pesquisa foi a publicação do título ilustrado A História da Maré, de Antônio Carlos, livro que narra fatos históricos na região da Maré, do período colonial até o final da década de 1990. É a primeira versão da História do Complexo da Maré.
Foto de Orosina Vieira, primeira moradora da Maré. Foto: Acervo Dona Orosina Vieira
A obra compôs o conjunto documental construído pela Rede Memória da Maré, que reuniu diversos materiais sobre a região e trouxe em sua narrativa, por exemplo, a história de Orosina Vieira, mulher negra e migrante de Minas Gerais, considerada a primeira moradora da Maré. O conjunto documental levantado foi batizado em sua homenagem: Arquivo Dona Orosina Vieira (ADOV), inaugurado no dia 26 de abril de 2002.
Já na linha de ação das entrevistas, a Rede Memória teve a colaboração da Fiocruz para desenvolver a metodologia do registro de história oral dos moradores da Maré. Estes depoimentos, previamente feitos com moradores antigos, motivaram a criação do grupo de contação de histórias Maré de Histórias e do Livro de Contos e Lendas da Maré, publicado pelo núcleo editorial Maré das Letras da Rede de Trabalho e Educação da Maré (RETEM) em 2003.
Já para Marilene Nunes, cofundadora do Museu da Maré, coordenadora do Grupo Maré de Histórias, da Biblioteca Elias José e da Brinquedoteca Marielle Franco, uma de suas experiências mais marcantes com o grupo foi:
“Durante essa trajetória de caminhada pela Maré com o Grupo Maré de Histórias, lembro de uma atividade que fizemos embaixo da ponte na antiga Ocupação da McLaren com os moradores de lá. Foi um dia de contação de histórias e roda de leitura. O que mais me impactou foi a participação não só das crianças, mas de alguns responsáveis. No final, fizemos um lanche pois um dia anterior escolhemos uma casa e deixamos os refrigerantes lá. Conclusão: algumas crianças daquele lugar insalubre, morando nos barracos de madeira, se tornaram leitores da Biblioteca Elias José. Fazer parte desse projeto foi e ainda é algo muito rico na minha vida, pois, através das atividades, pude passar um pouco de conhecimento e pertencimento para os ouvintes, pois sempre falei da Maré como um lugar de luta, resistência e pertencimento.”
A RETEM cooperou na promoção de cursos voltados para a comunicação, como: oficinas de fotografia, vídeo, produção literária, gráfica e o curso de formação de monitores para o Museu da Vida, da Fiocruz, entre 1999 e 2000. A formação teve apoio financeiro do Programa Comunidade Solidária, lançado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Ministro da Cultura Gilberto Gil participa da inauguração do Museu da Maré, o primeiro museu de favela no Brasil. Foto: Acervo pessoal Gilberto Gil
Já no início dos anos 2000, a Fiocruz promoveu uma série de atividades que visavam debater apropriação cultural. Essa proposta viabilizou uma parceria com a Rede Memória e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), onde foram realizadas diversas atividades museológicas. Entre elas, a exposição A Força da Maré: da Palafita ao Palácio, exposta no Museu da República, no Castelinho do Flamengo e no Centro Cultural do Tribunal de Contas do Estado no ano de 2004. Essa exposição estimulou ainda mais a possibilidade da construção de um museu na Maré.
No ano seguinte, em 2005, foram iniciadas as obras com recursos do Programa Cultura Viva—Pontos de Cultura e o apoio técnico do Departamento de Museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O Museu foi inaugurado em 8 de maio de 2006, com a presença do então Ministro da Cultura Gilberto Gil.
O espaço foi pensado para ser de preservação e pertencimento mareense, onde os moradores contribuíssem doando objetos e outros materiais que ajudassem a contar a história da comunidade.
Meses após a inauguração do Museu da Maré, em 2007, a Rede Memória da Maré encerrou suas atividades. Todos seus compromissos, acervo e ações foram absorvidos pelo Museu da Maré. No entanto, seus desdobramentos ainda reverberam.
Vista panorâmica da Maré, década de 1970. Foto: Acervo ADOV/Museu da Maré – CEASM
O Acervo Dona Orosina Vieira está sendo gradualmente sendo transformado em um acervo digital, já disponível para acesso. Lá, encontram-se: mapas, vídeos, fotografias, recortes de jornais e outros documentos textuais, além de alguns itens doados por moradores, como objetos de uso doméstico, alfaias de faina, alfaias religiosas e brinquedos. O objetivo é migrar todo seu acervo com mais de 4.000 itens museológicos para o digital.
“Será disponibilizado todo o material sobre a memória da Maré para pesquisadores, moradores e pessoas que se interessem por essa história. Cerca de 25% do acervo [físico] do museu já está no acervo online. Para isso, a gente está produzindo pesquisas que vão gerar publicações sobre memória, então, estamos trabalhando em várias frentes para produzir a partir das pesquisas, novos produtos. Especialmente os produtos que a gente está gerando com publicações, acho que isso pode dar um retorno bem interessante para a comunidade. Mas, é claro que esse material vai ter versão digital. Queremos reforçar as redes sociais do museu, criando espaços de memória nelas.” — Antônio Carlos Vieira
Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é formada em jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.
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