Rede de Mães Contra a Violência do Estado: Uma Entrevista com Mônica Cunha

Hoje é o Dia Internacional da Mulher

Click Here for English

O Relatório Anual Estado dos Direitos Humanos no Mundo lançado pela Anistia Internacional no mês passado descreve a impunidade contínua no Brasil quanto à violência policial e o aumento no nível de violência policial, de moda geral, especificamente no estado do Rio de Janeiro. Ano passado, mais de 3.000 pessoas em todo o país foram mortas por policiais em serviço, representando um aumento de 37% em relação a 2013, de acordo com a Anistia Internacional.

Mônica Cunha perdeu seu filho, Rafael da Silva Cunha, dez anos atrás devido a violência policial quando ele tinha vinte anos. Desde o momento que Rafael entrou no sistema de medidas sócio educativas—DEGASE—quando ele tinha quinze anos, Mônica tem sido ativa na luta pela reforma deste sistema e em apoiar outras mães com filhos nesta situação. Sentamos com Mônica na sede da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência para conversar sobre sua vida, seu caminho na militância, sua liderança, o movimento pela reforma do sistema penal e as alegrias e os desafios de ser mulher no Brasil.

Durante a entrevista, Mônica aconselhou um membro da Rede num caso de violência doméstica, recebeu uma ligação sobre o nascimento de um bebê—em suas palavras “mais uma mulher negra guerreira para a luta”—e parabenizou uma técnica trabalhando no internet por ser uma mulher num campo dominado por homens. Confira a entrevista exclusiva do RioOnWatch com Mônica para o Dia Internacional da Mulher.

RioOnWatch: Onde você nasceu?

Mônica: Eu nasci aqui no Rio, eu nasci em Botafogo. Eu brinco com minhas amigas que eu sou uma menina da Zona Sul, mas eu já completei 51 anos e eu fui morar lá na Baixada, na Zona Norte, enfim, na Zona Sul só nasci e fiquei só até os 15 anos.

RioOnWatch: O que é a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência?

Mônica: Esse espaço ele é constituído por mães e familiares que têm seus entes queridos assassinados pelo Estado. A Rede nasceu a partir de uma chacina há 12 anos, no Morro do BorelA primeira mobilização recebeu o o nome de “Posso Me Identificar”. Foi uma chacina na qual foram assassinados cinco jovens que não tiveram nem condições de se identificar. [Os policiais] taxaram no peito destes homens que eles eram bandidos, que eles eram traficantes e os mataram. E não eram. Eram só jovens, moradores do Borel que foram assassinados por policiais. Todas essas pessoas, familiares e amigos de vítimas de chacina, se sentiram sensibilizadas e revoltadas por estarem morrendo, a toda hora, pessoas nas suas favelas e resolveram se juntar.

A Rede tem esse espaço, que é um espaço longe de comunidade, longe da favela, longe de lugares que sejam perigosos. É um lugar neutro. Porque a gente aqui não tem separação por facção, não existe isso de que “só vou receber a vítima de tal lugar”. Não! Aqui tem vítima de todo o Estado de Rio de Janeiro. Você sofreu alguma violação pelo Estado morando dentro do Estado de Rio de Janeiro, você pertence a Rede Contra a Violência.

E a ideia da rede também é de ser parceiro de núcleos que estão nascendo dentro das favelas que estão dando apoio dentro da favela aos familiares dos que são assassinados. A partir do momento que eles acolhem, eles entram em contato conosco e a gente entra numa parceria, tratamos de fazer esse encaminhamento juntos. Então isso é muito bacana, sair um pouco aqui da centralização. A Rede não tem que ser uma centralidade. Ela é, mas tem que fazer aquela coisa ampla: tem que ensinar a própria favela como lidar com suas vítimas, e isso a Rede vem fazendoEntão isso também é uma expectativa para 2016 e 2017, porque hoje tem alguns núcleos, já tem em Manguinhos, Cantagalo, Alemão, Pavão-Pavãozinho, Borel, Jacarezinho, mas a gente quer dar continuidade a outros.

Monica telefone

RioOnWatch: De quais outras formas a Rede presta socorro às famílias?

Monica: As vezes, precisamos acolher alguém de imediato que está sofrendo alguma violação, alguma perseguição, que está sendo ameaçado. Então a gente acolhe aqui por um, dois dias. Para conseguir outro lugar para essa pessoa ir. Então, é uma coisa imediata… a gente pega mais as ameaças por parte da polícia, isso é real, porque as vezes a pessoa que foi vitimizada, quer realmente falar, quer realmente mostrar, quer apontar quem foi e acaba se prejudicando. E muitas vezes nem passou a vitimização na própria pele, mas viu um vizinho, viu uma outra pessoa e está cansada de ver aquilo, então agora tem que falar. E acontece que ela está arriscando a própria vida. Por que o Estado que te mata vai te proteger? Qual segurança você tem? O Estado já teve um programa de proteção. Só que hoje em dia, é um fracasso. A gente não pode confiar mesmo.

RioOnWatch: Por que você está na Rede? Por que está na luta?

Mônica: Eu faço parte do nascimento da Rede. Mas não porque na época eu tinha um ente querido assassinado. Eu sou mãe de três filhos homens, com muito orgulho. E fui mãe com muito orgulho do Rafael da Silva Cunha, que aos 15 anos, se tornou um adolescente autor de ato infracional. E assim começa minha militância.

Mas nessa época, eu tinha uma vida diferenciada desses familiares dos adolescentes autores de ato infracional. Eu era considerada classe média, meus filhos estudavam em colégio particular. Eu tinha uma estrutura financeira razoável, então achava que isso não ia acontecer nunca comigo, que não me pertencia.

Só que a gente também sabe que tem uma parte dessa sociedade que tem a vulnerabilidade de se tornar autor de ato infracional com mais facilidade, pela dificuldade da vida. Por mais que eu esteja falando dessa estrutura que eu tinha, eu era uma mãe solteira. Eu que levava o sustento para os meus filhos, então eu tinha que sair todos os dias. Esse país é um pais machista e ainda sofremos preconceito com isso, então comigo não foi diferente. Como eu tive que ser mãe solteira no sentido de sair para trabalhar para sustentar-lhes, eles ficaram sozinhos. E como eles não eram mais crianças, eram adolescentes, tiveram que se moldar sozinhos.

Então eu tive esse dissabor de ter um filho dentro do sistema DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), que me levou a conhecer uma realidade que eu não conhecia. De fato eu não sabia que existiaPorque é muito fácil quando você só vê na televisão ou lê jornal.

Então comecei a entender tudo que hoje eu entendo mais um pouco: Quais eram as razões que levavam esses adolescentes a serem autores de atos infracionais? São diversas razões. É o desamor, sim. Porque a mulher que trabalha muito que tem tudo nas suas costas. Porque a mulher tem que ter múltiplas funções, então essas múltiplas funções não lhe dá o direito de ficar livre 24 horas lambendo sua cria, olhando sua cria, como deveríamos. Porque não temos essas oportunidades, temos que lutar nesse país capitalista a todo momento. Tudo tem um preço, tudo tem um valor, você vale quanto pesa, então você acaba prejudicando a quem mais ama: nossa família, nossos filhos, que a gente teve por amor. Isso aconteceu comigo.

RioOnWatch: Como foi o seu processo de entrar na militância?

Mônica: Eu tive que entender esse processo na minha vida, tive que conhecer o Estatuto da Criança e de Adolescente, tive que saber que o adolescente mesmo ele sendo autor de ato infracional, ele tem direitos. E não era um bandido como as pessoas me falaram. Ele não era um monstro, ele não era um bicho. Eu não pari um bicho, eu não pari um monstro, eu pari um ser humano. Eu pari uma criança, que veio com muito amor, muito carinho. Eu dei muito amor, eu fiz tudo como qualquer outra mulher faz.

Então a partir daí, com esse meu interesse, com esse meu empenho, eu fui entrando na militância. Não era minha intenção. A minha intenção era tirar meu filho da situação de ser um autor de ato infracional. Era livrar meu filho daquele sistema. Essa era minha intenção, mas acabei que eu fui me abrindo. A gente sempre é uma liderança porque quem manda em casa é a mulher. Essa era minha liderança dentro de minhas quatro paredes ali na minha vidinha. Não nasci uma mulher liderança de movimento, não nasci uma mulher que inspira outras no sentido de ir à luta pelos seus direitos. Só depois essa mulher nasceu, o que me deixou orgulhosa.

Mônica Cunha na sede do Rede

RioOnWatch: Quais foram as primeiras coisas que você percebeu visitando a unidade DEGASE?

Mônica: Eu vi nas filas que existiam três coisas que me chamaram a atenção. A primeira era a cor, todas eram negras igual a mim. Então, logo eu percebi, que mulheres negras são as que mais sofrem e são os filhos dessas mulheres negras que ficavam encarcerados. A segunda é que eram mulheres que tinham baixa escolaridade, tinham até sabedoria de vida porque todas trabalhavam, mas tinham baixa escolaridade, elas não sabiam ler. Eu tinha escolaridade um pouco mais alta, naquela época eu só tinha o ensino fundamental. Hoje, eu completei ensino médio e tenho o técnico.

Então numa pedra eu comecei ler o Estatuto para as outras mães. Porque um agente me deu o Estatuto e disse que ali estariam as respostas para minhas perguntas. Aí eu comecei a ler sozinha e realmente percebi a necessidade delas também saberem. Eu perguntava: ‘Só eu tenho que saber? Meu filho não está ai sozinho!’ As outras também têm que saber. Eu ia para essa pedra, pedia para elas chegarem cedo, todas com nossas coisas que levávamos para nossos filhos: refrigerante, biscoito, almoço e tal. Colocávamos nossas bolsas no chão, e ficávamos em pé. Eu ficava em pé na pedra e lia o Estatuto, só no que diz ao respeito ao autor de ato infracional.

Enfim, e a outra coisa que eu percebi, pai naquele momento não existia. Tinha uma fila de 40 a 50 mães, tias, avós, e tinha dois ou três pais. Então cadê esses homens? A presença deles faz diferença. E eles não estão nessa hora, eles se escondem, eles são covardes. Não só o Estado nos viola, nos humilha, nos oprime, mas também os homens que são pais dos filhos, é raro que eles estejam com a gente, é raro que eles sejam parceiros, que de fato sejam pais, amigos, companheiros. Então veio todo esse processo.

RioOnWatch: E como é que ler o Estatuto para as outras mães se transformou no Movimento Moleque?

Mônica:

O Estatuto fala no artigo 227 que todo ser humano, todo adolescente, toda criança, tem direitos, a ter moradia digna, a ter escolaridadea ter convivência com a família. Por mais que ele tenha cometido algum ato infracional, ele não pode ser tratado igual a um bandido, ele não cumpre pena, e as medidas socioeducativas são para ressocializar esse adolescente para sociedade. Então a partir dali houve um divisor de águas, não só para mim, mas para elas. A gente entendeu o que tinha nos acontecido e a partir desses artigos do Estatuto, a gente começou a se questionar: Por que? Por que quando um morador de favela é esculachado pela polícia, não é uma coisa sem querer. Por que isso não acontece no Leblon? Isso tem um porquê. Então é esse porquê que você tem que buscar.

O Estado tira nossos filhos, o Estado tira nosso dinheiro, o Estado nos oprime, mas ele não tira nosso conhecimento. Ele só tira quando nos mata. E o saber que nós temos quando se une com o saber universitário se torna muito mais forte, mesmo quando as mães e os familiares não têm o saber universitário. O saber das mães é muito forte, porque ela carrega no seu corpo, na sua alma, na sua pele, a dor de ser violentada. Então o que essa mulher tem para falar e tem para mostrar, é muito rico, porque é ela que faz a diferença. Então assim nasceu o Movimento Moleque, que não tem seu próprio espaço e é um dos movimentos que a Rede acolhe.

Monica palestrando

RioOnWatch:E qual é sua perspectiva sobre DEGASE?

Mônica: O DEGASE deveria ser uma unidade ressocializadora. Acho que não é, que pelo contrário, ele prepara aquele adolescente para virar, não é nem um bandido, mas um autor de ato infracional. Não é bandido, não, que bandidos estão em Brasília. Bandido tá lá, de colarinho branco, gravata… aquele é bandido. Não, as unidades DEGASE, elas preparam o adolescente para vir a ser assassinado. E que hoje a coisa está tão ruim, que os meninos nem estão tendo que entrar na unidade DEGASE porque estão morrendo antes.

Não é para tornar-se bandido, não tem como tornar-se bandido, [estes meninos] não são donos do tráfico. Não são eles que pegam as drogas em casa, não são eles que vão pegar as armas de tráfico, não são. Esses meninos, eles mal conhecem a favela em que moram. Eles nem saiem para ir no shopping perto da casa deles. Como é que eles vão lá no Paraguai, na Colômbia pegar armas, pegar drogas. Não são os bandidos que a sociedade acha e pensa.

RioOnWatch: E onde foi criado o Rafael? Como ele era? O que ele gostava de fazer?

Monica: Rafael foi criado na Zona Norte, ali no Riachuelo.

Olha, o Rafael era lindo, era um sarará de olho verde, lindíssimo. Adorava viver. Nós tínhamos uma coisa em comum, nos éramos do signo de virgem. E é uma característica de virgem gostar de viver. Isso meu filho tinha, era mulherengo demais, mas na medida possível era respeitador. Realmente. Ele não acreditava que adolescentes poderiam ser ressocializados, porque quando ele passou naquele sistema ele viu o absurdo que era. Ele dizia para mim: “Mãe ninguém sai dali, ninguém consegue sair dali, para trabalhar, para uma vida normal”. Enfim, era carinhoso, dia das mães eu lembro, ele puxava o bonde para de manhã me dizer feliz dia das mães, chegava correndo com uma coisa que tinha feito na escola, correndo com presentinho ali na frente, queria ser o primeiro a entregar o presente. Enfim, era meu parceiro, era meu amigo sabe? Foi a primeira pessoa com quem eu fui a um baile funk. Não que os outros não sejam, mas ele era mais.

RioOnWatch: Como é que ele morreu? Como aconteceu?

Mônica: Meu filho foi assassinado no dia 5 de dezembro de 2006. De joelho, no bairro do Riachuelo, que tem duas favelas, Rato Molhado e Jacaré. Ele foi assassinado ali entre uma favela e a outra. De joelho no meio da rua por policiais civis. Não foi uma troca de tiro, porque eles até tentaram colocar isso no boletim como auto de resistência”, mas não foi auto de resistência, foi execução sumária mesmo, porque é execução sumária quando uma pessoa está de joelho e tem uma pessoa por cima de outra com a arma. Ele se chamava Rafael da Silva Cunha e ele tinha na época 20 anos. Ele se tornou autor de ato infracional com 15 e foi assassinado com 20. Ele durou cinco anos nessa vida.

RioOnWatch: Quais foram os impactos da morte do Rafael na sua vida?

Mônica: Na época, foi um baque muito grande para todos nós. Mas imagine para mim que já estava nesse movimento, e que tinha quase certeza que meu filho serviria de lição para os outros. Então, quando ele foi assassinado, eu fiquei perdida no tempo e não tomei as providências que hoje eu faço questão, que eu aconselho, oriento, para que todas as mães tomem, que é adquirir a justiça. Eu não fiz isso no meu caso, não por fraqueza, não por medo, não por covardia, e sim por ter ficado muito abalada, muito muito muito. Me isolei, por mais que eu já pertencesse a um movimento, mas eu fiz questão de me isolar mesmo, de não deixar ninguém se aproximar de mim. Entrei numa depressão profundíssima. Tinha um caçula, que hoje tem 22 anos, mas na época tinha 12. Então, tentei suprir ele como um meio para esquecer e os anos foram passando.

Além da dor ser profunda–‘ah não é uma dor física’, é uma dor física sim, vou te dizer que é–dor na minha alma, dor nos meus ossos, dor na minha cabeça–eu adquiri doenças reais. Eu digo que o Estado colocou um kit de depressão, síndrome de pânico, câncer, enfim. Foi um kit.

RioOnWatch: Qual foi o impacto na sua família e na sua comunidade?

Mônica: Ah, muito grande. Muito grande. O impacto é desesperador. Para todos. Eu namorava com o pai dele, mas na época… enfim, você fica querendo buscar culpados. Não só o Estado, mas aquele primeiro momento você fica querendo buscar culpados também entre os seus e si mesma. Você se sente culpada porque você não estava naquela hora, você não estava ali para pegar a mão da polícia e tirar a arma dele. Você sente culpada porque não morava com o pai, enfim… Ele também podia fazer uma coisa se estivesse do meu lado.

Então é tanta culpabilização que você coloca em si. Por eu na época ter mãe, pai, tio, eu culpei todo mundo que não me ajudou. Porque eu fiquei muito sozinha para tentar tirar ele dos atos infracionais. Então quando ele foi assassinado eu fiquei meio revoltada com o mundo. E foi onde me recusei a buscar apoio naquele momento e foi quando eu adquiri as doenças. Não é que você não adquire doenças quando você tem apoio, porque a dor é muito profunda, mas eu adquiri de um modo mais forte ainda.

RioOnWatch: E como é que você conseguiu continuar na luta apesar dessa dor toda?

Mônica: Eu tive que fazer dessa luta uma luta de verdade porque você olha para você mesma e olha para um filho pequeno e vê que ele necessita de você. E também porque o celular já existia, e tinha as mães me ligando, dizendo que precisavam de mim, precisavam da minha força. Então, foi isso que foi me tirando do buraco. Eu fui adquirindo força para estar de novo na luta. E fui, meio capenga porque inteira não vou ser nunca. Mas eu digo que felicidade assim nós não temos. Temos momentos felizes. Mas temos que sobreviver, porque depois que você perde um filho, você sobrevive, todo dia vai ser um dia.

Eu sou mãe de mais dois filhos, tenho seis netos. Meu neto mais velho está com 15 anos, minha caçulinha, Valentina, tem 2 meses. Têm todas essas pessoas que eu amo muito, que eu quero ver crescer, que eu quero ver casar, nas quais eu quero acreditar. E eu preciso acreditar que a minha família pode seguir num fluxo normal. Que eu tenho meus filhos, para casarem, crescerem, ter sua maturidade e sair da casa da mamãe, construirem suas famílias, enfim, o ciclo normal da vida. Não quero acreditar que aquilo que me aconteceu, que ter um filho assassinado, que morreu antes de mim, seja normal. Isso não é normal, o normal não é isso.

Para ir até aqui hoje, eu preciso desse povo. Eu preciso estar aqui, eu preciso estar junta delas. Que hoje já não é mais uma coisa só porque eu admiro, não. É porque eu necessito. Eu não sei fazer outra coisa, e eu não sei viver sem estar junto desse movimento. Esse movimento me acolhe, esse movimento me mantém viva. Com esse movimento, cada vez mais eu aprendo, e cada vez mais eu posso repassar. É o movimento que nos sustenta para nos manter de pé. Porque todos nós temos outros filhos, todos nós temos famílias. Nós somos esposas, somos amantes, somos mulheres, algumas têm formação superior, somos trabalhadeira, somos avós, somos tias. Como é que continua a vida? Só essa união nos faz continuar.

11205127_828966260521765_1650953806014229892_n

RioOnWatch: O que você acha que é diferente na experiência da mulher no ativismo? Quais são os desafios, os benefícios?

Mônica: Nós acreditamos que a mulher, ela pode mudar sua história–ela pode mudar. Como isso tem que acontecer? É trazendo esse conhecimento, é tirando aquela mulher de dentro da sua casa e mostrar que ela tem como se empoderar, mostrar para ela um Estatuto, mostrar a Constituição, mostrar para ela todos esses orgãos que existem, mostrar para ela que ela tem que cobrar, mostrar para ela que o público somos nós. O público não é uma coisa abstrata, o público somos nós! Que esse dinheiro público é tirado de nossos bolsos. Então essa mulher ela faz a diferença, com seu filho, com seu marido. Ela tem que buscar. A meta principal do Moleque e a Rede é essa.

É colocar essa mulher, ela mesmo, na frente da batalha. A mulher empoderada grita pelos seus direitos, pelos seus filhos, pelo seu marido. Quando o marido está preso, quem visita é a mulher. Quando o filho está preso, quem visita é a mulher. Quando seu filho morre, a primeira a chegar no cemitério é a mulher. Então essa mulher briga pelos seus direitos, pelo seu ser.

E a vontade é poder nascer de novo para o conhecimento. Porque quando essa mulher começa a conhecer os seus direitos, a conhecer os seus caminhos, essa mulher muda. E ela não só faz, ela reúne multidões de outras mulheres, sua filha, sua prima. Faz um café, faz um lanche, e já vai repassando o que ela aprendeu. Então é essa experiência de troca que temos. Eu acho fabuloso, eu acho muito rico. A mulher nunca quer ficar com um conhecimento que aprende só para ela, a mulher ela faz questão de repassar pro outro. E sem conhecer, sem ter vínculo! Ela está no ponto do ônibus e vê você chorando, já vai!

RioOnWatch: E os desafios?

Monica: Olha, o desafio é ser mulher nesse país de hoje. De sempre, de hoje não, de sempre. Hoje, tá um pouco melhor. Está um pouco melhor porque temos acesso ao conhecimento. Antes, não tínhamos, antes éramos totalmente boicotadas, pelo pai, pelo avô, depois pelo marido, e até mesmo pelo filho quando ele virava homem. E hoje não, hoje nós vamos mesmo. Pode ter boicote, mas a gente vai. A gente se reúne, a mulher faz panelaço, mas assim é difícil ser mãe, muito difícil. E principalmente ser mulher negra, aí é mais difícil. Porque a mulher negra ainda traz, na cor do seu corpo, a discriminação racialporque ter no seu corpo a cor negra ainda é um desafio muito maior. Você tem que todo dia provar que você é mulher negra, mas é trabalhadeira, têm direitos, e tem direito de viver, de parir. Tem direito de criar seus filhos, tem direito de trabalhar e ganhar também um salário digno, tem direito de entrar para a política. Então o desafio ainda é muito maior sendo mulher negra.

RioOnWatch: O que você passaria como recado mais importante para um jovem frustrado com o estado das coisas ou interessado em se engajar com questões sociais?

Mônica:

Então eu acho que esse adolescente, esse jovem, ele tem que entender. Que lugar é esse? Que cidade é essa? Que uns podem, outro não? Porque que o prefeito do Rio, ou o governador do estado do Rio de Janeiro, proibiu que jovens, crianças e adolescentes que moram em favelas ou baixadas ou na Zona Norte do Rio de Janeiro, frequentem as praias da Zona SulPor que será? Por que que o prefeito manda fazer poças, não praia, poças, lá em Madureira, lá em Ramos, porque ele é bonzinho, que quer que nos divertirmos? Não, porque eles querem fazer o apartheid.

Então quando esses jovens tiverem consciência que eles são seres humanos, que eles têm direito, que a cidade, o Estado é deles, aí a coisa muda. Então quando os seres humanos, principalmente as mulheres, estiverem mais empoderadas, se colocarem mais, para tentar de uma vez por todas acabar com essa separação, você pode ter certeza, que tomaremos de fato o poder. Mas com consciência, não para tomar o poder por tomar, e sim com consciência.

RioOnWatch: De que forma você gostaria de ver a presença da polícia na comunidade, seu ideal de segurança pública?

Monica: Primeiro, tirando a polícia. Essa polícia não é de segurança pública, nem aqui nem na China. Pelo amor de Deus. Para quê polícia na comunidade? Quando nasceu essa UPP, os planos que foram traçados no nascimento da UPP, foram muito bonitos. Mas na prática, isso virou um horror. Que essa UPP nada mais é que uma polícia assassina. Então não pode existir uma UPP dentro de colégio dentro da favela para poder botar medo nos meninos e meninas estudantes.

Claro que vai ficar muito difícil não existir policial dentro do Rio, dentro do Brasil. Eu acho que isso é até uma utopia… mas, que não exista dessa forma, essa forma não funciona. Essa forma só mata, ela só mutila, ela só arrasa, ela só destrói. Dessa forma não pode existir. E só tem um grupo dentro dessa sociedade que é prejudicado—pobre, negro, e faveladoEntão isso é só para nós. Então vamos começar experimentar a polícia como ela é para todos. Porque quando começar atingir eles da mesma forma como nos atinge, eu tenho certeza que eles vão querer que seja diferente.

RioOnWatch: Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Mônica: Isso não é normal. O Estado não pode matar na forma que ele está matando. O Estado não pode nos punir da forma que ele nos pune. Porque esse recorte que o Estado faz, quando a gente vê esses assassinatos percebemos que é muito grave e você tem certeza que você vive dentro de um Estado que é racista, que é genocidaIsso não quero para mim, não quero para meus netos, meus bisnetos. Eu quero uma mudança. Não vou dizer para você que eu quero uma utopia, que eu quero tudo rosa, tudo azul, nada disso. Mas eu quero um país justo, um país digno. [Rafael] era um ser humano igual a qualquer pessoa. No fim ele se tornou autor de ato infracional sim, mas nem por isso eu preciso ficar isolada, nem por isso eu tenho que estar perdida, nem por isso eu tenho que conviver com os meus dias como se fosse o fim do mundo, como se eu fosse uma aberração. Não, claro que não. Então nisso eu acredito e nisso eu trabalho.

E que nesse dia 08 de março de 2016, que a mulherada, independente da cor e de onde mora, de fato se une. Que não permitam que as suas crianças e os seus jovens sejam assassinados da forma que está acontecendo. Que de fato todas as mulheres tomassem para si, enquanto pertencimento, cada criança e cada jovem que morresse nesse Estado e sentissem como se fosse um dos seus. Um que você tivesse parido. Que aí sim a gente vai fazer a diferença, não olhando um menino desse na rua como um filho da outra, e sim como se fosse seu próprio filho. Quando a gente pega para si, a gente quer mudar. Quando a gente fala, ‘olha ele é do outro’ a gente não dá importância. É isso.