Entrando em Cena: Empoderamento e Mobilização Comunitária Através do Teatro do Oprimido na Maré

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O Teatro do Oprimido (TO) é uma forma de teatro participativo–internacionalmente celebrado, inventado no Rio–em que não há espectadores, apenas “espect-atores”. O TO foi criado originalmente pelo escritor, diretor e político Augusto Boal nos anos 60, primeiro no Brasil, e em seguida desenvolvido durante seu exílio na Europa, no período da ditadura.

“Brecht costumava dizer que o espectador deve permanecer alerta. Eu acho que ficar alerta não é suficiente. O espectador tem que dizer ‘pare!’ e entrar na cena”, disse Augusto Boal. Uma das técnicas mais importantes do TO é o “fórum teatral”, em que os “espect-atores” reimaginam a resolução de uma cena ao entrar na cena e alterar seu curso.

Teatro do Oprimido na Maré

O Teatro do Oprimido no Complexo da Maré começou nos anos 90. Atualmente, há três grupos na Maré. Marear começou na varanda de Janaína Salamandra, que atua como Curinga (facilitadora) do grupo. Sua filha, Carina Santos, reuniu alguns colegas da escola para fazer uma oficina de TO com sua mãe, e essa experiência deu início à formação do grupo. Logo depois, o Centro do Teatro do Oprimido (CTO), localizado na Lapa, no Centro do Rio, com patrocínio da Petrobras, iniciou a iniciativa “Teatro do Oprimido na Maré”.

Ao receber financiamento, que foi direcionado a transporte, lanches, adereços e cenários, o projeto formou outros dois grupos: MaréMoTO e Maré 12. Atualmente, há 35 jovens participando nesses grupos, com dezesseis no Marear, o maior grupo. Os participantes variam entre 15 e 23 anos. A iniciativa patrocinada foi finalizada no início de 2015.

Gabriel Horsth, 19 anos, do grupo Marear, credita as oportunidades de teatro na Maré à sua formação política. Ele começou no teatro aos 13 anos, através de outros grupos comunitários, e então começou a fazer TO com o Marear, em 2011. Maiara Carvalho, 21 anos, começou no TO há dois anos, quando um amigo a convidou repetidamente a participar. Ela inicialmente insistiu que era “muito velha”, com 18 na época. No entanto, quando ela assistiu pela primeira vez uma apresentação de TO, ela se viu indignada na platéia e resolveu entrar na cena. Essa participação terminou com Maiara se juntando oficialmente ao grupo Maré 12 no fim da tarde.

Para além da sua comunidade física, Gabriel, Maiara e outros multiplicadores do CTO estão envolvidos na criação de uma iniciativa de TO no DEGASE, sistema correcional para adolescentes em conflito com a lei.

A Paisagem Cultural da Maré

Gabriel Horsth e Maiara Carvalho são rápidos em pontuar que os grupos de TO são parte da paisagem cultural única existente por toda a Maré em termos de teatro, jornalismo comunitário e pesquisa comunitária. Existem cerca de 100 organizações sociais na Maré, incluindo o Observatório de Favelas, Redes de Desenvolvimento da Maré, e Conexão G, a primeira organização LGBT numa favela. Além dos grupos culturais e outros projetos sociais, as associações de moradores da Maré também são fortes.

Gabriel vê a totalidade desses grupos como “o lugar em que a resistência está [na Maré]. Ao longo dos anos, conseguimos construir uma história muito legal, mas falta muito. Contudo, é o que faz com que Maiara e eu estejamos aqui, jovens moradores de favela, nesse espaço. É o que nos formou. Muitos jovens moradores de favela não têm isso”.

Participação Inspiradora

Parte do poder do TO em inspirar a participação da comunidade está no fato de que ele não pede às pessoas que digam o que pensam ou sentem, mas sim que mostrem. Como Maiara e Gabriel explicam, o fórum teatral procura evitar “personagens”. Em vez disso, procura tocar nos sentimentos e nas ideias de que os participantes não têm consciência: “Tudo é dito no que não é dito”.

Eles enfatizaram que o momento certo para um espect-ator entrar em cena é depois que o conflito principal ocorreu: “As pessoas já estão sendo assassinadas e perseguidas. Temos que nos concentrar no que faremos depois, em quais são as alternativas”.

Para aquecer os participantes, TO utiliza jogos como “A Máquina” ou “Canto da Sereia”. Em “A Máquina”, os participantes criarão uma “máquina”–por exemplo da favela ou da ocupação militar na comunidade–com cada participante fazendo um movimento repetitivo ou som que eles imaginam que seria parte das “engrenagens” de tal cenário ou situação.

Depois, eles se reúnem para um debate: Por que esse movimento? Por que esse som? O que está por trás disso? Gabriel disse que a “máquina” que o grupo Marear fez da ocupação policial foi “difícil, pesado e cru… quando começamos a debater isso, você começa a ver como o nosso corpo fala das nossas realidades”.

No jogo “Canto da Sereia” os participantes fecham os olhos e pensam em uma história pessoal de opressão e, em seguida, fazem um som que eles associam com aquela opressão. Depois que todos os participantes começarem a fazer seus sons simultaneamente, o grupo reúne sons semelhantes em quatro grupos. Cada grupo compartilha suas histórias de opressão e, normalmente, descobre que histórias muito semelhantes estão por trás dos sons semelhantes.

“Minha história poderia ser o fim da sua história, ou o começo. Então sabemos que esse grupo tem uma história para contar”, explicou Maiara. Nesse ponto, a história será feita como fórum teatral, “não porque elas mereçam ser contadas, mas porque elas têm uma urgência em serem contadas. Minha história é pessoal, mas a nossa história vai além do pessoal e se move para o contexto social”.

O estado presente na sua ausência

A participação de Gabriel e Maiara no TO decorre, em parte, de uma convicção de que a Maré é um lugar profundamente necessitado de alternativas. A expansão da iniciativa do TO na Maré começou durante a ocupação militar da Maré, que começou antes da Copa do Mundo de 2014, em abril de 2014 e trouxe forças militares para a comunidade, incluindo 1.180 policiais militares (incluindo as forças especiais do BOPE), 250 fuzileiros navais com fuzis, 21 tanques blindados e quatro helicópteros. A ocupação foi definida para durar quatro meses, mas se prolongou por 15 meses. Nos primeiros 15 dias da ocupação, 16 pessoas foram mortas e 160 presas.

“O estado está presente na sua ausência”, Gabriel cita a jornalista comunitária da Maré, Gizele Martins. Compartilhando o sentimento, ele explica como perceber isso foi um momento decisivo em seu pensamento. “Eu estava sempre falando que desejava o estado mais presente. Mas ele está presente. Quando ele está presente, ele está presente dessa forma, com os tanques”.

No artigo que Gabriel e Maiara escreveram em conjunto sobre a ocupação para a Metaxis, publicação impressa do TO, eles descrevem cenas horripilantes, como a experiência de outra participante do Marear, Tailane: “[Os militares] me pediram para acordar meu filho, que tem apenas um ano de idade, e abrir sua fralda”, supostamente para ver se ela estava escondendo alguma coisa ali.

Esse tipo de prática foi normalizada durante a ocupação devido a uma mandado coletivo estabelecido durante a ocupação. Gabriel descreve sua movimentação entre partes da favela e as ações de impedimento por policiais que o assediaram bem como seus amigos, às vezes com insultos homofóbicos. Ele explicou que a iniciativa do TO na Maré enfrentou desafios para que os participantes chegassem até os ensaios devido ao ambiente de tensão.

Embora o objetivo declarado da ocupação fosse abrir caminho para as UPPs, dois anos depois a comunidade ainda não recebeu uma UPP. Em março de 2016, o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, disse que a UPP não seria instalada na Maré neste ano por conta do déficit orçamentário do estado.

O território na Maré é disputado por três diferentes facções de drogas e milícias, e a vida retornou às normas pré-ocupação. Confrontos entre policiais e traficantes são comuns, assim como as operações policiais fechando escolas, creches, hospitais, o comércio e impedindo a livre circulação dos moradores. A frequência e a intensidade dessas operações cresceram dramaticamente nos meses próximos às Olimpíadas e continuaram ao longo do evento global, desencadeando uma campanha pelos direitos da comunidade como resposta.

Gabriel explica a atual situação na Maré como “resíduo da ditadura nessas comunidades, que é pesado”. Ele diz: “nunca vou parar de lutar, mas viver em um lugar onde eu posso morrer a qualquer momento, onde às vezes eu não consigo ir para o trabalho por causa de tiroteio, e onde balas perdidas frequentemente passam através das paredes, nos aflige”.

A família de Gabriel, em particular, sofreu com a realidade do dia-a-dia da Maré. Dois dos irmãos de Gabriel foram mortos e relacionados com o tráfico, um morto em uma operação policial, e sua irmã mais nova morreu como resultado de negligência médica. Gabriel escreveu uma peça baseada na história de sua mãe e de outras mulheres da Maré, chamada “Verniz: Mataram meu filho“, sobre uma mulher que enterrou cinco filhos, insistindo que todos os seus caixões fossem pintados com verniz marrom. A peça ganhou o primeiro lugar em um edital para propostas do Ministério da Cultura. Ela foi apresentada em novembro, em diferentes casas particulares da Maré, por Gabriel, Maiara, e outros três participantes do Marear, em um esforço para desconstruir o teatro tradicional.

Além das ocupações e operações policiais, Gabriel e Maiara explicam como sentem que a estrutura da favela “é feita para dar errado”, tendo as escolas como um exemplo particularmente forte, e ecoando alguns dos sentimentos dos alunos que ocuparam escolas de ensino médio no início deste ano, na “Primavera Secundarista” no Brasil.

Eles descrevem como a administração do Prefeito Eduardo Paes anunciou planos para construir novas escolas entre a Nova Holanda, território dos traficantes do Comando Vermelho (CV), e na Baixa do Sapateiro, território dos traficantes do Terceiro Comando (TC). A escola que existe lá não tem aulas na maior parte do ano devido ao fogo cruzado, e tem buracos de bala salpicados ao longo das portas.

“’No dia em que o morro descer e não for carnaval’ [citando a famosa letra de samba], você precisa de uma estrutura que é bem montada para dar errado”, explica Gabriel. Maiara esclarece: “Quando a gente fala sobre ‘descer ladeira abaixo’, nós não falamos de forma violenta. São pessoas mobilizando, pessoas falando, pessoas protestando contra esse sistema que é contra essa imensa população do Rio que vive nas favelas. Nós estamos sempre em segundo plano, ou nem mesmo nos planos, mas no dia que estivermos em primeiro plano, muita coisa vai mudar, no Brasil, no mundo”.

Legislando de baixo para cima

O TO na Maré trabalha diretamente para colocar as agendas de política pública das favelas “nos planos” através do “Teatro Legislativo”. O Teatro Legislativo é uma técnica do TO que emprega o fórum teatral participativo, mas nesse caso convida os políticos a participarem, com o objetivo de formular propostas políticas concretas.

Cada um dos grupos na Maré tem um foco temático: Maré 12 tem foco em sexismo; MaréMoTO tem foco em gênero; e Marear tem foco na discriminação espacial contra os moradores da favela em relação ao mercado de trabalho.

No ano passado, o Marear realizou uma peça de fórum teatral convidando advogados a participarem e ajudarem a comunidade a entender o que é legalmente possível para combater a discriminação espacial, pela qual moradores da favela alegam ter sofrido discriminação, depois de terem revelado seus endereços em processos de contratação. Após a cena, os membros da comunidade sugeriram propostas, advogados analisaram a viabilidade e três propostas foram elaboradas para uma votação da comunidade.

A proposta vencedora foi a de impor consequências não para o empregado culpado de discriminar, mas para a empresa, obrigando-a a entrar em uma “lista negra” de discriminação espacial. Isso significa que a empresa deve doar dinheiro para projetos sociais na comunidade, e que deve ser temporariamente impedida de receber certos subsídios governamentais.

Gabriel disse, “enquanto eu vejo política em tudo, [através do Teatro Legislativo] foi a primeira vez que eu fui até a ALERJ. Eu nunca tinha participado tão concretamente na política”.

Recepção da Comunidade ao TO

O TO na Maré foi recebido de braços abertos pela comunidade. Através do fórum teatral e suas soluções reimaginadas para situações comuns de sexismo e outras formas de violência, Gabriel e Maiara ouvem a resposta da comunidade, que ajuda os participantes a verem novas estratégias para responder a situações em suas próprias vidas, e estratégias que planejam usar.

“A ideia é continuar mobilizando. Não é de um dia para o outro, é um processo. [TO] é uma preparação para a realidade, é um despertar”, explica Gabriel.

Isso foi particularmente pungente no caso do teatro legislativo: “Você vê a comunidade participando em toda a estrutura de política pública, a comunidade sendo ouvida, e a lei sendo elaborada a partir daí”.

Avançando

Enquanto as peças do fórum teatral do TO acontecem “nas ruas, escolas, espaços parceiros, praças, onde quer que sejamos convidados”, os atores do TO precisam de espaços de confiança para ensaiar e para guardar adereços e cenários. Gabriel e Maiara dizem que esse tem sido seu maior desafio ultimamente, particularmente desde que o financiamento inicial da Petrobrás para expansão do projeto terminou no ano passado.

Depois que o projeto da Petrobrás foi aprovado, os grupos expandiram-se geograficamente para além das áreas da Nova Holanda para o Piscinão de Ramos e Baixa do Sapateiro. Eles ensaiaram em espaços doados por parceiros, com a Maré 12 na Clínica da Saúde Américo Veloso, o Marear no Observatório de Favelas, e o MaréMoTO no Museu da Maré. No entanto, não há mais espaço para eles no posto de saúde, nem na escola para onde se mudaram temporariamente depois, e o Museu da Maré está enfrentando uma ameaça de remoção.

“Assim que achamos um espaço, não demora muito para que alguém o peça de volta. E temos muita coisa para guardar que não podemos perder. Se perdermos nossos cenários, não teremos os recursos para reconstruí-los agora”, diz Gabriel. Maiara adiciona: “Para que mais jovens acordem, nós precisamos de um espaço. Espaço para teatro, esportes, artes. O Teatro do Oprimido tem sido um espaço privilegiado para nós. É surreal. Nós nos tornamos cidadãos políticos”.

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