Este é o terceiro artigo de uma série sobre tecnologia da informação e comunicação nas favelas do Rio, do pesquisador convidado Jeffrey Omari*.
Ao longo deste ano no Rio, criei uma rotina de visitar a praia de Ipanema às tardes de domingo. Trabalhando próximo, na feira hippie, todo domingo, transforma o passar de tempo na praia todas as semanas fácil e conveniente. No domingo do dia 20 de setembro, eu deixei a feira e fui em direção a praia, como costumeiramente faço. Cheguei ao posto 9 e comecei minha caminhada usual até a Pedra do Arpoador, perto do posto 7. Ao chegar no posto 8, bem perto do Arpoador, eu pude sentir que algo estava diferente. Já que eu visitava essa praia no mesmo horário toda semana, eu me acostumei com as vibrações cariocas rotineiras da orla, mesmo quando a praia estava cheia. Nessa semana em particular, entretanto, o comportamento da vasta multidão de pessoas tanto na praia, quanto na Avenida Viera Souto, sugeria que o clima estava pesado.
Eu estava sozinho nesse domingo e decidi ir para casa e retornar algum outro dia, quando o movimento estivesse menos intenso. O metrô que peguei na praça General Osório em direção ao Centro estava lotado, o que normalmente é incomum para uma noite de domingo. Eu já andei em vários trens lotados no Rio mas, como na praia, a energia da multidão nesse trem estava particularmente diferente. Eu só estava indo para casa, mas parecia que estava indo para um jogo de futebol no Maracanã. Apesar do barulho das conversas no trem, não observei nenhum desrespeito. Parecia ser apenas, majoritariamente, crianças e adolescentes indo para casa após um dia na praia liberando energia jovem, como crianças e adolescentes fazem.
Eu percebi no dia seguinte, entretanto, que as cenas incomuns que eu observei na praia e no metrô ofereceram uma pista para o caos que tinha se desencadeado no domingo na orla do Arpoador, Copacabana e Ipanema. A loucura na praia foi o resultado de arrastões, que historicamente ocorrem nas praias do Rio, geralmente nos meses de verão. Nos finais de semana, quando o tempo está quente, as praias da Zona Sul atraem grandes massas de toda a cidade, incluindo grupos de adolescentes, em sua maioria afro-brasileiros da Zona Norte, que querem brincar e relaxar na praia. Uma pequena minoria, mais inescrupulosa, vai para a praia na intenção de realizar arrastões.
Enquanto os moradores da Zona Sul reagiram usando o Facebook e o Whatsapp para mobilizar justiceiros–uma estratégia em que vigilantes “fazem justiça” contra os arrastões com suas próprias mãos–a prefeitura respondeu fichando jovens negros inocentes na delegacia e eliminando certas linhas de ônibus da Zona Norte para a Zona Sul, de modo a dificultar que cidadãos da Zona Norte frequentem as praias. Essas medidas chegaram ao mesmo tempo em que o Congresso nacional votava uma lei controversa que, ainda esperando aprovação no Senado, diminuiria a maioridade penal. A força coletiva dessas iniciativas deixou muitos com o sentimento de que a juventude desprivilegiada carioca, que historicamente vem sendo estigmatizada na mídia convencional, está agora sob um ataque ainda mas ferrenho conforme as Olimpíadas se aproximam. De acordo com um morador do Complexo da Maré, Walmyr Junior, “escolher estigmatizar a juventude da favela como criminosa reafirma a posição da sociedade branca, heteronormativa da classe média da Zona Sul e pelo corte da ligação entre as Zonas Norte e Sul, revelando a existência de um apartheid carioca”. Como morador da Zona Norte, Walmyr Junior descreve as experiências viscerais da divisão econômica e social que existe na relação entre sua comunidade e os moradores da Zona Sul.
Na semana seguinte aos acontecimentos na praia, eu visitei as Naves do Conhecimento, em Madureira e Triagem. Esses centros, e cada uma das outras cinco Naves do Conhecimento (Padre Miguel, Irajá, Penha, Santa Cruz e Vila Aliança) estão localizados nas zonas Norte e Oeste, que são geograficamente remotas e dramaticamente diferentes em termos de cenário da Zona Sul. O que é dolorosamente óbvio sobre as comunidades-sede das Naves do Conhecimento é que elas estão ao mesmo tempo submetidas às políticas de inclusão digital e exclusão social. Enquanto aproveitam os benefícios de seu recém encontrado acesso tecnológico promovido pela prefeitura, são esses mesmos moradores que estão simultaneamente lutando contra a segregação promovida pela mesma prefeitura.
Ao visitar a Nave do Conhecimento, o que inicialmente me surpreendeu foi o vasto investimento em recursos humanos e financeiros nesses centros que visam ao mesmo tempo promover a inclusão social e digital. De acordo com o Secretario de Ciência e Tecnologia do Rio, Franklin Dias Coelho, a “missão das Naves do Conhecimento é superar essas diferenças (sociais e tecnológicas) e integrar a cidade”.
Enquanto as Naves do Conhecimento do Rio oferecem cursos de educação digital e instrução através de computadores interativos, este esforço de inclusão digital aparenta focar primeiramente na disponibilidade física de hardware e computadores que facilitam o acesso à internet. O contraste entre os investimentos em tecnologia da prefeitura nas favelas e seus esforços recentes para prevenir que os moradores digitalmente incluídos da Zona Norte visitem os espaços públicos da Zona Sul demonstra que a prefeitura vê divisões sociais na tecnologia e sócio-geografia como problemas diferentes. Todavia, as questões de inclusão tecnológica e exclusão social estão intrinsicamente entrelaçadas.
Mobilizado por grupos ativistas como o Coletivo Papo Reto, moradores das favelas e outras comunidades da Zona Norte tem suas próprias ideias para o que constitui integração real. Eles fizeram uso de sua inclusão digital para organizar protestos pacíficos, via Facebook e mídia social, para afirmar seus direitos aos espaços da Zona Sul onde eles enfrentam a exclusão.
Além de prover o acesso tecnológico necessário para fazer o link entre a separação digital, a prefeitura deve considerar como a tecnologia poderia ser aproveitada para promover um processo mais amplo em direção à inclusão digital e a integração urbana. O acesso ao mundo todo pela internet não é o suficiente quando o acesso físico à cidade é restrito.
*Doutorando da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, Jeffrey Omari estuda o acesso à internet e direito digital no Rio de Janeiro.