Esse primeiro relato advindo da Vila Autódromo inaugura uma série sobre o impacto da pandemia do coronavírus no dia a dia das favelas, em parceria com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego.
O que restou da favela Vila Autódromo, na Zona Oeste do Rio, após as truculentas e insistentes remoções no período que antecedeu as Olimpíadas de 2016—visando à especulação imobiliária e às trocas de favores entre políticos e empresários—consiste em apenas 20 famílias, menos de 4% das famílias que moravam originalmente aqui.
Nós já vivemos normalmente em um isolamento sem igual—não somos assistidos por quase nenhum serviço público, a não ser a coleta de lixo três vezes por semana. Com a quarentena, tivemos que aprofundar esse isolamento, redobrar os cuidados e procurar seguir as orientações divulgadas pelos meios de comunicação.
Todos, não só aqui mas em todo Brasil, ficamos apavorados com as notícias que vinham de países como China e Itália, os quais tiveram as maiores perdas em termos de óbitos, e tiveram por vezes que escolher quem ia viver e quem ia morrer. Diante disso, não podíamos ficar de braços cruzados. Precisávamos nos adequar o mais rápido possível, principalmente sabendo da enorme precariedade do nosso sistema de saúde. Nesse momento, isso é o que mais nos assombra: o medo de ter que parar lá.
Aqui na favela Vila Autódromo, como somos poucos, conseguimos rapidamente nos organizar. A solidariedade aqui sempre foi regra. Mesmo antes, quando éramos no entorno de 700 famílias. Sempre fomos bastante solidário uns com os outros—uns claro com mais afinidade com os outros, e até hoje não é diferente.
Uma das nossas grandes preocupações, além de nos mantermos vivos no meio dessa pandemia, com certeza é com relação ao nosso sustento. As contas não param de chegar. Temos toda a preocupação com o nosso alimento, com nossa dispensa.
Vimos nessa semana uma luz no fim do túnel com a aprovação de uma ajuda de custo no valor de R$600 para os trabalhadores informaies por 3 meses. Os trabalhadores informais são cerca de 40% dos trabalhadores do Brasil. Uma fatia considerável: estamos falando de 38 milhões de pessoas. Sabemos também que a maior preocupação do governo não é com sua população pobre. Somos tratados como lixo. Para eles, do governo, só importa a nossa mão de obra barata e explorada. O governo somente se preocupa com a crise econômica que a pandemia pode trazer e as possíveis consequências para quem está no poder, como uma maior probabilidade de impeachment, por exemplo.
Nesse momento de crise a distribuição de renda é o mais necessário, mas nossos governantes insistem em dar para a população pobre sempre as migalhas, as sobras e os restos. Esse valor de R$600 ainda é muito pouco para quem não tem nenhuma outra renda. As famílias terão que optar entre comer ou pagar as contas. Como a dor da fome é maior, quem sobreviver à pandemia se verá endividado.
Estamos acompanhando pelas mídias os acontecimentos nas favelas e é muito triste ver que várias favelas estão sem água. Se as principais orientações dos médicos e infectologistas, de todos os órgãos de saúde e da Organização Mundial da Saúde, estão centradas no cuidado com a higiene, como segui-las sem água? Entra governo e sai governo e nenhuma gestão realiza um projeto voltado para resolver o problema do abastecimento de água e do saneamento básico precário, problemas que estão intimamente entrelaçados.
Antes das remoções, nós tínhamos muito problemas com o abastecimento de água na Vila Autódromo. Nossa água era clandestina, mas nós não queríamos que fosse assim: fizemos na época vários ofícios através de nossa associação de moradores pedindo a regularização da água junto à CEDAE, mas nunca fomos atendidos. Na nova Vila Autódromo, nós testemunhamos a regularização do serviço aqui. Agora pagamos a água mensalmente e, graças a Deus, nossa água não tem faltado.
Outra grande preocupação é acerca da orientação das autoridades médicas de manter distanciamento de no mínimo um metro e meio entre as pessoas. No entanto, ainda vemos os BRTs lotados todos os dias. Por que não aumentam a frota, como fazem durante o Rock in Rio? Um evento que aumenta a circulação de pessoas na linha em 100.000 pessoas, mas nos quais os ônibus não ficam lotados porque eles colocam um ônibus atrás do outro. Onde estão esses ônibus? Por que em um momento perigoso de uma pandemia como essa, que já matou mais de 30.000 pessoas e tem mais de 600.000 infectados no mundo, eles não colocam esses ônibus para circular para evitar o contato e o contágio entre as pessoas?
Nesse período de quarentena, sinto que na comunidade estamos todos vivendo à sombra desse fantasma chamado coronavírus. Todos assustados com a possibilidade de o pior acontecer a qualquer um e a qualquer momento. Em nossa comunidade não está sendo tomada nenhuma ação especificamente por parte do governo. Entre nós, moradores, existe a ação da solidariedade: nos ajudamos mutuamente no que cada um pode.
Nosso dia a dia consiste em todos dentro de suas casas, nos falando menos que o normal. Sabemos muito bem que se formos contaminados ficaremos entregues à nossa própria sorte. Nós graças a Deus não temos nenhuma suspeita de coronavírus até o momento. Isso porque estamos tomando todos os cuidados uns com os outros para que continue assim e porque, com nossa resistência e nossa luta, conseguimos obter saneamento básico, água e asfalto adequados. Não temos dúvidas que se esses serviços conquistados aqui fossem realidade em todas as favelas do Brasil e do mundo o risco de contágio seria muito menor. Saudações comunitárias e solidárias a todos!
Luiz Claudio da Silva nasceu em 14 de novembro de 1962 na favela da Rocinha, filho de mãe solteira e doméstica. Sempre estudou em escolas públicas e cresceu como toda criança de periferia. Casado e pai de uma filha, mudou-se para a comunidade da Vila Autódromo em 1994, onde reside até os dias de hoje. É professor de educação física e ativista. Participou com seus vizinhos e apoiadores da resistência da Vila Autódromo às Olimpíadas do Rio, em 2016. É um dos organizadores do Museu das Remoções e continua como membro voluntário do museu recebendo visitantes do Brasil e todo o mundo.