Esta é a terceira matéria sobre o assunto que está em destaque no RioOnWatch: o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
O Estado não pode ser eximido de sua responsabilidade em prover serviços de saúde, de abastecimento de água, de recolhimento de esgoto e de proteção social nunca, ainda mais neste momento crítico de pandemia. Enquanto isso, como sempre, reagindo a essa lacuna estão os moradores de favela. Não é a primeira vez que organizações comunitárias se mobilizam para cobrar uma atuação adequada e efetiva do Estado, ou ofertar soluções aos seus territórios—não só protagonizando soluções, mas denunciando prioridades equivocadas ou ações necropolíticas do poder público, por meio das quais o Estado decide, todos os dias, de fato quem vive e quem morre na nossa sociedade.
Já falamos em matérias anteriores de ações virtuais—centradas principalmente na disseminação de informações qualificadas e destinadas especificamente às favelas—reunidas sob a hashtag #COVID19NasFavelas e sobre as campanhas de arrecadação de doações para moradores de favelas. Esta matéria, por sua vez, foca nas ações que estão sendo feitas nos próprios territórios.
Ações nos Territórios
No Complexo da Maré, na Zona Norte, a Redes da Maré distribuiu ao longo da semana passada 530 cestas básicas de alimento e 530 kits de higiene, além de quentinhas para pessoas em situação de rua. Os produtos que integram as cestas e as quentinhas foram adquiridos dentro da Maré, como forma de fortalecer a economia local. Também estão mantendo diálogos com líderes religiosos para conscientização para evitar aglomerações.
Também na Maré estão circulando carros de som e estão sendo colocados faixas e cartazes em estabelecimentos comerciais, associações de moradores, bares e igrejas com informações sobre prevenção, higienização e sobre a importância de permanecer em casa, como parte de uma iniciativa dos coletivos de comunicadores Maré Vive, Maré 0800 e AmarÉvê, e sob a orientação de profissionais de saúde. Também estão sendo produzidos vídeos e imagens para serem compartilhados nas redes sociais ou impressos, que podem ser acessados aqui. Gizele Martins, comunicadora e integrante do Maré 0800, diante do desamparo e da falta de importância dada à pandemia nas favelas, pelos governantes, disse em entrevista: “[nós nas comunidades] decidimos nos organizar, como sempre o temos feito, e começar por tomar decisões sobre o tema. Não vamos ficar sem fazer nada. Nunca a gente fez isso”.
“O que nós conseguimos foi reunir um grupo de comunicadores comunitários para pensar um plano que possa se adequar às diversidades e complexidades da favela da Maré no Rio de Janeiro”, continuou ela. “Aqui moram pessoas que não sabem ler e não têm acesso a internet ou a mídias de comunicação tradicionais. Por isso, a primeira [ação] que nós fizemos foi pedir aos profissionais da saúde, que conhecem a realidade nossa, para gravar áudios com as recomendações fundamentais. […] também devemos ser muito cuidadosos com as pessoas que saem para colar cartazes. É muito importante não distribuir panfletos nas mãos, porque isso aumentaria o risco de espalhar o vírus”, disse ela.
Similarmente, no Complexo do Alemão, a articulação #JuntosPeloComplexodoAlemão, que já existia mas foi reativada pelas instituições que compõem o Gabinete de Crise do Alemão, está instalando faixas informativas e distribuindo doações, inclusive de água, já que o conjunto de favelas é um dos que têm sido mais afetados pela falta de água. Uma das faixas, inclusive, pede que aqueles que estão com abastecimento de água compartilhem com os vizinhos que não estão.
Além disso, eles realizaram na última sexta-feira uma reunião com o assessor técnico responsável pelo atendimento junto às comunidades da CEDAE, Guilherme Campos, envolvendo as associações de moradores e manobreiros de água (funcionários da CEDAE ou da associação de moradores responsáveis por abrir e fechar a água, manobrando-a para os diversos lugares do morro), para tratar do problema. O diretor comprometeu-se a aumentar o número de manobreiros, colocar carros pipa à disposição das comunidades e inspecionar as duas principais bombas que abastecem a favela, instalando também uma reserva para que não haja interrupção do fornecimento em caso de queima de uma bomba, como medidas de enfrentamento imediato ao coronavírus. No médio prazo, prometeu ativar os reservatórios das regiões da Matinha e da Alvorada e construir uma rede de abastecimento próprio para a Fazendinha, que não conta com uma e enfrenta falta de abastecimento com maior frequência.
Uma das instituições que integra a frente, o Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, lançou um funk falando sobre a prevenção em relação ao vírus como estratégia de comunicação. A B.A.S.E., organização que atua com jovens em Santa Cruz, na Zona Oeste, com o MC Tchelinho, do grupo Heavy Baile, também gravou um funk de conscientização. A letra diz “esse papo é pra favela, pras irmãs e pros irmãos […] vê se tu pega a visão: devemos lavar a mão, alcool em gel é a parada, se espirrar tampa com o braço e não põe a mão na cara […] não vou pra aglomeração, pro pagode pro bailão, daqui a pouco tá tranquilo pra voltar pra curtição”.
Também a Cidade de Deus e a Vila Kennedy, na Zona Oeste, contam cada um com seu gabinete de crise, que estão distribuindo água, alimentos e material de limpeza para a população. Além da distribuição das doações, buscam fazer pressão sobre o Estado para que cumpra com suas obrigações, como por exemplo garantir o abastecimento de água—na Cidade de Deus, toda a região do Brejo, a mais vulnerável dentro da comunidade, não possui água encanada, dependendo de poços construídos pelos próprios moradores. Por sua vez, a organização Favela Vertical, que atua com comunidades do Gardênia Azul, está enviando cartazes informativos para moradores que têm impressora distribuírem para seus vizinhos.
Iniciativas semelhantes estão buscando e distribuindo doações por toda a cidade do Rio, como também na região metropolitana, como é o caso da rede #NaMinhaFavelaNão, formada por quatro organizações comunitárias de São Gonçalo. “As entregas serão feitas com equipes reduzidas e equipamentos de prevenção para evitarmos aglomerações e possíveis contágios”, disse em entrevista Thamiris Santos, idealizadora do Por Gentileza, uma das organizações integrantes que atua no antigo Lixão de Itaoca, no Complexo do Salgueiro.
Já os catadores da Cooperativa de Reciclagem Transvida, que atua na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, inovaram e estão costurando máscaras de TNT a baixo custo e distribuindo para as suas filhas adolescentes, que integram o Instituo Lar dos Sonhos. “A gente começou fazendo quase de brincadeira com as adolescentes, para nos proteger quando saísse na rua. A gente ia fazer um trabalho de formação sobre semente e resolvemos falar da ‘semente da saúde’, sobre preservar a saúde e a atividade foi fazer uma máscara. Tomou uma proporção que agora as meninas pediram pras mães produzirem”. Agora eles estão buscando doação de TNT para produzir para toda a comunidade.
Propostas de Políticas Públicas
As soluções propostas por mobilizadores das favelas do Rio passam não só por ações nos territórios, mas por propostas de políticas públicas para mitigar os efeitos da crise e garantir maior proteção aos moradores.
A Associação de Moradores da Rocinha, em parceria com outras favelas, enviou para o governador do Rio, Wilson Witzel, uma carta com 17 propostas oriundas das favelas, que incluem: a liberação de cestas básicas e kits de higiene; garantir a distribuição de água da CEDAE em todas as favelas e dar prioridade ao atendimento nos locais em que haja a falta d’água; recomposição dos Agentes Comunitários de Saúde nas favelas onde o governo estadual atua na saúde básica e garantir a proteção para todos os trabalhadores da saúde na favela com o kit de equipamentos de proteção individual (EPI); garantir o atendimento aos casos graves aos moradores das favelas aumentando o número de leitos na rede pública e privada bem como aluguel de hotéis desativados; suspensão imediata de remoções, de despejos judiciais ou extrajudiciais nas favelas, e proibir os despejos nas favelas por não pagamento dos aluguéis; garantir o aluguel social e ampliação do número de beneficiados; isenção do pagamento de luz elétrica e proibição de corte de luz elétrica, água e comunicações; afastamento de todas as trabalhadoras grávidas, lactantes e mães com filhos até 12 anos, e trabalhadores do setor público e privado que pertençam ao grupo de risco que moram nas favelas com garantia da licença remunerada e a manutenção do emprego; garantir auxílio moradia, auxílio alimentação e renda básica para trabalhadores do mercado informal, autônomos, MEI, domésticas, diaristas, cuidadores e cuidadoras; estabelecimento de mecanismos de controle de preços para produtos de higiene e da cesta básica; e transparência na divulgação de dados sobre saúde da população das favelas.
Já a carta-manifesto Corona na Baixada, assinada por diversos indivíduos e instituições atuantes na Baixada Fluminense, também pede: renda básica para trabalhadores informais; distribuição de material de higiene para moradores de favelas, periferias e pessoas em situação de rua; e garantia do acesso à água (que também é um problema crônico em vários bairros da região). Além desses pontos, clama por: testagem para todos os pacientes com suspeita de contaminação pelo vírus; medidas para redução da circulação de pessoas; higienização das ruas; reforço da patrulha Maria da Penha e de ações contra violência contra mulheres e LGBT+ durante a quarentena; e uma política de segurança pública pautada pela inteligência e que integre ações de prevenção ao vírus. Com relação a esse último ponto, o Ministro da Justiça, Sergio Moro, inclusive autorizou que estados e municípios desloquem os recursos não utilizados destinados ao enfrentamento à “criminalidade violenta” para ações de segurança pública e defesa social no combate aos efeitos da Covid-19, mas nestes territórios, teme-se que só irão reforçar o controle de circulação dos corpos negros.
Além destas iniciativas, a Federação das Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) fez uma carta manifestando preocupação acerca da situação do abastecimento de água no estado diante da ameaça do coronavírus, para pressionar a CEDAE a garantir o fornecimento permanente e de qualidade do serviço, e convidam membros de associações de moradores, projetos sociais, grupos culturais, igrejas ou organizações da sociedade civil que atuam em favelas e periferias onde falta água a assinar a carta aqui.
Vitórias Políticas
Essas e outras mobilizações já estão gerando resultado. No Rio de Janeiro, a nível estadual, já foram sancionadas a proibição do corte de água, luz e gás por falta de pagamento, cestas básicas e bolsa auxílio para famílias de alunos que tiveram aula suspensa, inclusão de produtos de higiene (como álcool gel) na cesta básica e uma renda mínima emergencial de meio salário mínimo para empreendedores da economia popular e da cultura.
E, a nível federal, centenas de coletivos e organizações foram bem-sucedidos na campanha por uma Renda Básica Emergencial para trabalhadores informais e autônomos, aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado, e que segue para aprovação do presidente. O projeto garante R$600 por adulto sem emprego formal e R$1200 no caso de mães solo durante três meses, mas a articulação reivindica que seja estendida para seis meses e abarque também trabalhadores formais que tenham seu salário reduzido por conta da quarentena.
Redes de Suporte
Finalmente, dentre as articulações por soluções, também encontramos redes de suporte visando ajudar com o impacto psicológico da pandemia, do isolamento e confinamento, da redução da renda, do risco de perda do emprego e mesmo da sobrecarga com os trabalhos domésticos e da necessidade de entreter crianças em casa. A iniciativa Mãe de Cria, por exemplo, oferece ajuda pedagógica online para mães de crianças de favelas e periferias, que inclui roteiros de brincadeiras, orientações pedagógicas, histórias para contar e outros recursos (mães que se encontram em situação de vulnerabilidade causada ou agravada pela pandemia podem ainda se cadastrar no mapeamento Segura a Curva das Mães para receber assistência).
Orientações trabalhistas para o contexto da pandemia podem ser encontradas aqui e há um plantão remoto com advogadas e advogados trabalhistas funcionando nos números (21) 980318363 e (21) 987603459. Profissionais dispostos a oferecer assistência psicológica gratuita podem ser encontrados aqui. Um guia geral com orientações para prevenção do coronavírus para a população das periferias e favelas pode ser encontrado aqui. Se você mora em uma favela que ainda não tem um coletivo articulado ou tem pessoas com suspeita de estarem contaminadas, você pode conseguir apoio no número (21) 999313719 ou procurar a FAFERJ (no e-mail comunicacaofaferj@gmail.com) ou o grupo SOS Coronavírus (no e-mail coronasosrj@gmail.com).