Complexo do Alemão, Zona Norte, 15 de maio. Moradores descem becos e vielas carregando cinco cadáveres enrolados em lençóis e papelão, que são levados até a entrada da favela Nova Brasília. Os corpos ficaram ali, na chuva, até que amigos e familiares viessem identificar e buscá-los. À medida que as famílias em todo o Brasil enfrentam um número crescente de mortos pela Covid-19, as favelas continuam perdendo vidas, mas não apenas para a pandemia, e sim para outro perigo mais familiar: a “guerra às drogas”.
A operação policial começou às 6h da manhã, quando membros do BOPE e Core da Polícia Civil invadiram as favelas Fazendinha, Alvorada, Loteamento e Nova Brasília, em caveirões. “Acordamos ao som dos tiros e granadas”, relatou um morador de Nova Brasília que pediu para não ser identificado. “Eles entraram destruindo tudo. Aqui na porta, um carro foi alvejado.”
Em poucos minutos, os moradores compartilham clipes de áudio de metralhadoras e explosões no WhatsApp, filmando a polícia de suas janelas, enviando relatos de tortura e assassinato a facadas, ao grupo local de comunicação e direitos humanos Coletivo Papo Reto, uma prática cada vez mais comum entre moradores de favelas em situações de operações policiais para se protegerem de abusos policiais e violações de direitos humanos.
O site de notícias Voz das Comunidades, também do Complexo do Alemão, publicou vídeos de carros e casas destruídas, transformadores de luz pegando fogo, tubulações de água cortadas e caixa d’água furadas. Em um dos vídeos compartilhados pelo jornal no Twitter, é possível contar em um beco mais de oitenta cápsulas de fuzil no chão. Em seguida, veio o número de mortos. Ao meio-dia, a imprensa local confirmou pelo menos seis mortos da operação. O número logo aumentaria para treze.
“Eles foram empurrando mesmo, atirando para os becos. Tá tudo destruído, as casas furadas de bala. O pessoal tudo em pânico. Não dá pra descrever em palavras o que a gente passou, porque é uma cena de uma guerra de verdade. Aqui a sensação da gente é de que só não joga míssil porque a gente tá no meio de uma capital, mas é só isso para diferenciar de outros lugares [de guerra]”, relata outra moradora de Nova Brasília, aos prantos, com voz embargada, por telefone, que também pediu anonimato.
“A guerra bélica mata muito, mas o pós-tiroteio deixa danos irreversíveis e isso não tem como curar fácil. É crise de pânico, transtorno pós-traumático, depressão, a pessoa morre mesmo sem a bala. Não é uma bobeirinha. A gente vive essa coisa de operação em cima de operação desde 2013. Tinha parado. Agora, em meio a uma pandemia vem essa chacina do nada!”, completa a moradora.
Na Fazendinha, uma das outras favelas do Complexo do Alemão, outra moradora, que também pediu anonimato, afirmou que policiais estavam encapuzados e sem identificação durante a operação. Ela também contou que parte dos policiais confiscaram celulares de alguns moradores para verificar mensagens e fotos em grupos de WhatsApp relacionados à operação.
De acordo com relatos de moradores, só não houveram mais mortes, porque todo o comércio não-essencial estava fechado desde quinta-feira (14 de maio) devido ao decreto municipal da pandemia. Farmácias, supermercados e a lotérica da favela de Nova Brasília abrem às 7h, mas não conseguiram devido a operação iniciada às 6h da manhã na localidade.
Além dos óbitos, segundo o jornal Voz das Comunidades, casas foram invadidas e moradores enviaram imagens relatando situações de violação de direitos humanos nos becos da favela. A Estrada do Itararé e a Avenida Itaóca foram fechadas para a retirada dos corpos.
“Nem o Básico Eles Enviam, mas Operação Policial Eles Mandam”
Estas foram palavras da mobilizadora e artista plástica Mariluce Mariá, indignada com a operação policial: “No meio de uma pandemia, com as pessoas já em pânico por falta de comida e atendimento médico e contato com outras pessoas, vem um tiroteio?”. Para ela, com a pandemia da Covid-19, o governo deveria enviar profissionais de saúde para melhorar o atendimento da população na UPA e na Clínica da Família da região, enviar máscaras e cestas básicas prometidas para a população, mas, ao invés disso, mandam balas.
“Nem o básico eles enviaram, mas operação policial eles mandam. Tiro, chega! O Estado tem que se preocupar em salvar vidas e não expor mais ainda a gente a morte”, denuncia a ativista do projeto Favela Art.
De acordo com Mariluce, as pessoas estão estressadas e vivem um processo de tortura psicológica devido a quantidade de informações verdadeiras e falsas sobre a Covid-19. “Isso confunde as pessoas que não sabem como agir. É muita tortura emocional e aí agora vem essa operação? Isso não era para estar acontecendo agora! Até porque o Estado quando quer, ele prende os maiores criminosos sem dá um tiro. Por que aqui na favela eles têm que entrar dando tiro em meio a uma pandemia?”, questiona.
“Fazer uma operação para matar treze pessoas e apreender oito fuzis? E o gasto de todos esses tiros disparados? Tem tiros dos dois lados? Tem! Mas, o que importa é para quem a gente paga imposto. É ao Estado. Quem tem obrigação de zelar pela nossa segurança é o Estado”, conclui Mariluce.
Máquina de Guerra Em Tempos de Pandemia
Favelas ao redor da cidade acordaram com o mesmo caos. De acordo com a plataforma de monitoramento Fogo Cruzado, a polícia do Rio realizou operações em pelo menos três outras favelas na mesma manhã: Cachoeira Grande, no Complexo do Lins; Morro do Engenho, no Engenho da Rainha; e Morro do São Carlos, no Estácio, todos na Zona Norte. As “ações” policiais se tornaram violentas em várias outras favelas, incluindo Santa Marta, Morro da Mangueira e Cidade de Deus.
“Bem no ínicio da manhã, por volta de 5:30h/6h o caveirão já rondava a favela e começaram os disparos”, afirma a mobilizadora Ingrid Siss, da Cidade de Deus, Zona Oeste.
Ingrid, coordenadora do Projeto Casa Dona Amelia, explica que acordou com a notícia de que na tentativa de tentar acabar com a aglomeração dentro da favela, a polícia veio para reduzir o número de pessoas nas ruas. Mas o que aconteceu não foi nada disso: “Vemos que o Estado, [supostamente] a fim de evitar mortes por contágio da Covid-19, derrama sangue através da letalidade violenta de sua atuação. Ontem passamos por horas de tiroteio em diferentes regiões da Cidade de Deus”, conta.
Como psicóloga, Ingrid acrescenta que a violência das operações policiais pode contribuir para uma variedade de problemas de saúde mental, como ataques de ansiedade, depressão e uma série de condições patológicas. Também, segundo ela, pode limitar a capacidade dos moradores de se protegerem contra o coronavírus. “Quando o Estado mantém sua ação violenta nesses territórios, reforça a ideia de que nada mudou e de que não há espaço para a criação de uma nova rotina de proteção e assistência”, explica.
Operações Policiais Durante a Quarentena
Na segunda quinzena de março, como o RioOnWatch reportou, o Rio registrou uma queda acentuada no número de operações policiais, de acordo com as medidas de quarentena determinadas pelo governo. À medida que o distanciamento físico diminuía, as operações se recuperavam, colocando os números de abril em pé de igualdade com janeiro e fevereiro de 2020. Pablo Nunes, coordenador de pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança, afirma que era muito cedo para dizer o que maio traria, mas chamou a operação no Alemão de “algo completamente abusivo, desmedido e sobretudo violento”. Mais tarde, a Rede espalhou uma nota por WhatsApp, denunciando a operação como “um momento chocante da história da segurança pública do Rio de Janeiro”.
“O que vimos hoje, no Complexo do Alemão, é mais da mesma rotina: a Polícia Militar fecha entradas, aterroriza moradores, deixa rastros de morte e corpos expostos nos becos”, declarou a Deputada Estadual Dani Monteiro ao RioOnWatch. Dani, nascida no Morro São Carlos, remete a política violenta de segurança pública do governador ao longo de 2019: “A necropolítica de Wilson Witzel, não esqueçamos, é aquela que prega que a polícia deve ‘mirar na cabecinha‘. A guerra às drogas tem sido o pretexto pelo qual o Estado opera frente à sociedade, e o resultado é o genocídio da juventude negra”.
“É inaceitável que esse tipo de operação aconteça, [ainda mais] em tempos de pandemia, em que os mais pobres estão ainda mais vulnerabilizados”, ressalta Dani que na semana passada apresentou um projeto de lei na Alerj, propondo a suspensão das operações policiais no período de quarentena.
A Comissão de Direitos Humanos da Alerj, chefiada pela Deputada Estadual Renata Souza, está atualmente em processo de análise dos áudios e vídeos de violações recebidas de moradores do Alemão. “A garantia dos direitos humanos dos moradores de favelas e periferias deve existir em um contexto com ou sem pandemia”, afirma Renata, cria do Complexo da Maré.
“É cruel constatar que falta água, saneamento básico, comida, mas não faltam operações policiais desse tipo. O governo deveria entrar com profissionais de saúde, cestas básicas e água potável para os moradores. É lamentável a opção por uma política de confronto em plena pandemia de coronavírus. Mas a aposta é numa política irracional que só gera insegurança e nenhum resultado concreto para a redução da violência, a não ser, se o objetivo real é apenas deixar corpos no chão”, enfatiza Renata.
O Complexo do Alemão Tem Histórico de Chacinas
O Complexo do Alemão já viveu outras chacinas. Em 18 de outubro de 1994, treze pessoas morreram durante uma invasão da Polícia Civil à favela Nova Brasília. Um mês depois da chacina, foi iniciada a “Operação Rio”, com a entrada das forças armadas na guerra às drogas. Em 8 de maio de 1995, menos de um ano depois, a história se repetiu. Em mais uma chacina, treze pessoas morreram em Nova Brasília. A maioria das vítimas apresentava perfurações no tórax e na cabeça.
Em 2007, em meio aos Jogos Panamericanos, o Complexo do Alemão esteve sitiado por cinco meses pelas Forças de Segurança Nacional. O ápice foi uma operação realizada em 27 de junho, na qual números oficiais apontam que dezenove pessoas foram mortas. Cada morto recebeu uma média de quatro tiros.
“A gente já passou aqui por outras situações. Eu me recordo da chacina de 2007, que aqui as pessoas falam que foi a Chacina do Tiro ao Pato [tiro ao alvo], porque os policiais falavam assim: ‘Vai, passa ali’ e aí atiravam! Matavam mesmo as pessoas rendidas!”, recorda uma moradora da área do Loteamento do Complexo do Alemão, que também por questões de segurança não será identificada.
Mas, para ela o confronto de hoje foi ainda pior. “A cena que eu vivi hoje, e ainda tô vivendo, foi uma coisa aterrorizante até mais do que uma chacina, porque a chacina atinge praticamente a pessoa que morreu e os familiares dela. A gente fica isolado. Mas, o que aconteceu hoje abalou todo mundo porque foi muito explícito. Muita gente envolvida nas cenas que não tinham nada a ver. Foi uma tortura ouvir”, relata.