Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas e parte de nossa parceria com o The Rio Times. Para a matéria publicada no The Rio Times, clique aqui.
Enquanto o Estado do Rio de Janeiro avança para se tornar o epicentro da Covid-19 no Brasil, moradores de favelas encontram-se lutando por suas vidas contra o novo coronavírus, e além disso, por causa de um perigo mais antigo e familiar: a polícia.
A força policial mais mortal do Brasil, talvez do mundo, a polícia do Rio é conhecida por incursões com caveirões e helicópteros nas favelas, conhecidas simplesmente como “operações policiais”. Ostensivamente dirigidas a facções de tráfico de drogas locais, tais operações muitas vezes deixam casas destruídas e jovens negros mortos.
Novas evidências mostram que essas incursões não apenas continuaram durante a pandemia, como também aumentaram em frequência e letalidade.
De acordo com um novo relatório da Rede de Observatórios da Segurança (ROS), um órgão nacional de monitoramento, as operações policiais do Rio aumentaram 27,9% em abril de 2020 em comparação a abril de 2019. O número de civis mortos nessas operações aumentou 57,9% no mesmo período. “Os policiais estão aumentando a violência”, disse Pablo Nunes, coordenador de pesquisa da ROS, pelo WhatsApp. “[Eles estão] agindo como se as favelas não tivessem que estar lidando sozinhas com a pandemia.”
Dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP), de abril de 2020, referentes ao número total de civis mortos pela polícia do Rio—uma categoria mais ampla do que as de civis mortos durante as operações policiais—ainda não foram divulgados. No entanto, é provável que o total dos assassinatos cometidos pela polícia corresponderá, proporcionalmente, às descobertas da ROS. Neste caso, abril de 2020 será o mais sangrento da história da polícia do Rio.
Rio 2019: O Ano Mais Violento
O salto nas operações vem na sequência de um ano de violência policial de nível recorde. Encorajada pela retórica linha dura do governador recém-eleito Wilson Witzel, a polícia do Rio de Janeiro matou 1810 civis em 2019, o número mais alto desde que os registros oficiais começaram em 1998 e quase o dobro do número de mortos pela polícia dos EUA em todo o país em 2019. 80% eram pretos ou pardos.
Ao assumir o cargo, Witzel extinguiu a Secretaria de Segurança Pública, que era a agência executiva responsável pela coordenação da atividade policial. Em seu lugar, as forças da Polícia Civil e da Polícia Militar do estado ganharam maior autonomia, com as duas instituições ganhando o status de secretarias. A combinação, do encorajamento violento (Witzel sugeriu que atiradores policiais deveriam atirar em alvos criminosos “nas cabecinhas“) e a supervisão desmantelada, resultou em impunidade por assassinatos extrajudiciais: uma excepcional análise, recente, do New York Times concluiu que os policiais do Rio “costumam atirar sem restrições, protegidos pelos superiores e por líderes políticos, confiantes de que, mesmo que sejam investigados por assassinatos ilegais, não serão impedidos de voltar às ruas”.
Estatísticas preliminares mostram que 2020, mesmo com a pandemia, pode estar seguindo os passos de 2019. Os dados mais recentes do ISP, de janeiro a março de 2020, revelam poucas mudanças: em comparação com o mesmo período de 2019, os assassinatos pela polícia caíram apenas 2%.
Março de 2020 ofereceu um vislumbre de esperança. Os assassinatos pela polícia caíram 14% em comparação com março de 2019, em consonância com as conclusões da ROS sobre as operações policiais de março de 2020. Devido à polícia ter mudado seus esforços para reforçar o cumprimento das medidas de contenção à Covid-19, promulgadas em 16 de março, o número de operações policiais despencou, caindo 74% em comparação com a primeira metade do mês. O número de civis mortos em operações policiais em março de 2020 caiu para 15, em comparação com 36 em março de 2019.
No entanto, essa paz durou pouco. Após a suspensão de duas semanas, a baixa das operações terminaria abruptamente no início de abril, quando a polícia voltou a reprimir as facções de traficantes, reduzindo a atenção dada à contenção da Covid-19. Pablo atribuiu esse retorno a uma perda de liderança na comunicação e na manutenção de um entendimento em comum da gravidade da pandemia. “Eu acho que isso acabou. Isso não faz mais eco dentro das corporações, e cada uma delas está perseguindo seus interesses”.
Os dados preliminares indicam que maio pode não ser diferente. Entre 1 e 19 de maio, a polícia realizou uma quantidade idêntica de operações que no mesmo período do ano passado, mas matou 16,7% mais civis, segundo o relatório da ROS.
Vidas Interrompidas, Doações Interrompidas
Os números de maio fornecem mais evidências da quantidade surpreendente de violência policial que moradores e ativistas de favelas estão enfrentando nos últimos dez dias, incluindo:
- 15 de maio, Complexo do Alemão, Zona Norte. Chacina de treze em uma operação policial nas favelas de Nova Brasília e Fazendinha.
- 18 de maio, Acari, Zona Norte. Iago César dos Reis Gonzaga, 21 anos, foi supostamente torturado durante uma operação policial. Ele foi levado em um veículo da polícia e encontrado no Instituto Médico Legal (IML) no dia seguinte.
- 18 de maio, Complexo do Salgueiro, São Gonçalo, Grande Rio. João Pedro Pinto Matos, de 14 anos, é baleado no estômago quando a polícia invadiu a casa de um parente. Ele foi levado em um helicóptero da polícia e encontrado no IML no dia seguinte.
- 20 de maio, Cidade de Deus, Zona Oeste. João Vitor Gomes da Rocha, 18 anos, foi baleado durante uma operação policial. Rocha foi levado em um caminhão blindado para um hospital da Zona Oeste e declarado morto minutos depois.
- 21 de maio, Morro da Providência, Centro. Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, foi baleado durante uma operação policial. Ele foi levado para um hospital próximo e declarado morto na chegada.
Se as mortes em si não bastassem, as operações policiais impediram diretamente os esforços da comunidade para mitigar os efeitos da Covid-19. Das operações listadas acima, as de Acari, Cidade de Deus e Morro da Providência coincidiram com distribuições vitais de cestas básicas para os mais necessitados que perderam renda devido a medidas de quarentena e, portanto, seus meios de subsistência. Entre 13 de março e 22 de maio, a plataforma de monitoramento de tiroteios Fogo Cruzado contou oito casos separados em que a distribuição comunitária de alimentos foi interrompida por tiroteios. Todos os oito casos envolveram a presença da polícia.
Enquanto isso, em documentos oficiais, a única justificativa dada pelas operações pela polícia é “reprimir o tráfico de drogas”, sem nenhuma outra palavra sobre por que seria justificável aumentar as operações neste momento atual, em meio a um aumento nas mortes pela Covid-19 nas favelas.
“Essas iniciativas que buscam alimentar a população que mais está sofrendo com a pandemia, têm sido violentamente atrapalhadas por essas operações da polícia”, afirmou Pablo, lembrando que a missão declarada da Polícia Militar é “Servir e Proteger”.
Em resposta ao clamor público, Witzel realizou uma videoconferência em 22 de maio com deputados estaduais do Rio, chefes de polícia e membros da sociedade civil—incluindo o morador da Cidade de Deus e membro da Frente CDD, Rodrigo Felha, fundador do grupo de teatro juvenil Os Arteiros—que solicitou a polícia a melhorar o diálogo com os mobilizadores comunitários e a evitar operações policiais durante as campanhas de socorro da Covid-19.
“Acho que podemos realizar essa integração para que a gente possa criar maior comunicação, e evitar, que no momento de uma necessidade de operação de busca e apreensão ou ação de inteligência das polícias, haja pessoas prestando serviços humanitários nestes locais”, disse Witzel.
Independentemente, simplesmente limitar as operações durante a distribuição de alimentos pouco diferença fará para lidar com o impacto mais duradouro da violência do Estado. Após a chacina de sexta-feira, 15 de maio no Complexo do Alemão, o ginásio local de boxe juvenil e o programa social Abraço Campeão cancelaram suas distribuições de alimentos e kits de higiene até o final da semana, citando a presença contínua da polícia e o potencial de mais tiroteios.
“A gente literalmente está levando alimentos para uma galera, para que as famílias aqui do Complexo do Alemão não morram de fome”, disse o fundador Alan Duarte em um áudio do WhatsApp. Referindo-se aos voluntários mototaxistas locais que ajudaram no programa a distribuir cestas básicas, ele acrescentou, “a gente tem que sempre colocar a segurança deles em primeiro lugar. É desafiador porque você não sabe se está se protegendo de balas ou de um vírus que pode te levar até a morte”.