Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas. Também faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
Em Niterói, na Grande Rio, há quase dois meses, moradores do Complexo do Viradouro, formado pelo Largo da Garganta e os Morros do Africano, da União, do Papagaio, do Viradouro, do Cruz, convivem com a rotina de uma ocupação policial. Iniciada em 19 de agosto, a operação está sendo realizada mesmo diante da ADPF das Favelas, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringe operações policiais em meio à pandemia da Covid-19, exceto em caso de “absoluta excepcionalidade”.
Seguindo os trâmites legais, de acordo com a Secretaria de Estado de Polícia Militar, a operação no Complexo do Viradouro foi notificada ao Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro. Porém, até o momento não há informação se o MP tinha ou não conhecimento de que se tratava de uma ocupação policial, tampouco, sabe-se a “excepcionalidade” alegada pelo Estado para justificar a ação.
O que é de conhecimento público é que a ocupação policial—que está instalando cabines policiais blindadas para monitorar a região no final de obras de melhorias na comunidade, realizadas pela Prefeitura de Niterói—trouxe para os moradores do Complexo do Viradouro, além das comunidades vizinhas do Morro do Zulu e do Atalaia, um cotidiano de medo e militarização, com abusos policiais e violações de direitos humanos.
Neste relato, Eloanah Gentil, moradora do Morro da União, narra o movimento de resistência organizado pelas moradoras, majoritariamente negras, do Complexo do Viradouro, onde residem mais de 6000 pessoas.
Minha favela foi invadida pela polícia, através da Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (CORE), da Policia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), Batalhão de Operações Especiais (BOPE), Batalhão de Ações com Cães (BAC) e o Batalhão de Polícia de Choque (BPChq). O motivo foi uma guerra de gigantes: o poder paralelo e o prefeito de Niterói, Rodrigo Neves. Desentenderam-se e pronto, sobra para nós. Entre prefeito e poder paralelo cá estávamos nós, as moradoras do Complexo do Viradouro.
Depois de três dias de violência policial e abuso de poder com os moradores e esculacho nas casas, a Associação de Moradores resolveu fazer uma manifestação. Desci o Morro para participar. Apesar de toda a coerção policial, estava motivada. No entanto, algo gritava naquele contexto: só haviam descido as moradoras pretas retintas que moravam no morro ou no pico do morro. Os poucos homens presentes tinham status, eram da diretoria da associação, e não tinham nenhuma estratégia de ação ou de proteção. Não tinham Plano B e nem estavam abertos a ideias ou sugestões. O outro homem presente era meu irmão, Gugu (Alessandro Conceição), que já é um ativista.
Lá estavam mulheres negras, retintas—algumas lideranças do alto de seus morros, quase todas chefes de família—são as que movimentam e cuidam do Complexo. Pensando bem, não é nada novo ou absurdo o fato dos homens ocuparem posições de status, até mesmo nesse momento de protagonismo feminino. Absurdo é as mulheres serem protagonistas e lideranças e, propositalmente, não ocuparem formalmente esse lugar. De qualquer forma, naquela situação tão adversa, já nascia a união das mulheres para lutar contra o abuso de poder policial. Salientado isso, a manifestação não rolou. Eufóricas, com nosso grito de paz abafado, fomos para casa frustradíssimas. O combinado, dos homens, era retornar no dia seguinte, às 10h da manhã de um sábado chuvoso, mesmo com todas as mulheres falando que não ia rolar. Resultado: não rolou.
Os dias iam passando e a violência policial e abuso de poder só aumentavam e, mesmo desmotivada, ainda muito inquieta e sufocada, troquei um papo reto com meu irmão Gugu e disse o que faríamos dentro de nossas possibilidades. E aí, foi a junção do papo reto com os “ismos” acadêmico. Primeiro mudamos o nome de manifestação para protesto. Reuni a mulherada do morro, conversamos e resolvemos fazer um protesto pacífico, com lençóis escrito #LarDeMoradoraRespeite e colar uns panfletos em nossas portas e portões com a informação de canais de denúncia.
Levamos dois dias na produção e organização, também acionei redes como o Centro de Teatro do Oprimido (CTO), Vidas Negras Importam-Niterói e União de Juventude Socialista (UJS). O protesto aconteceu, foi bastante potente e eu estava ali com a mulherada do morro usando o favelês, e com as ONGs, imprensa e no material audiovisual usando os “ismos”, tudo ao mesmo tempo e me fazendo entender. Pode parecer bobagem, mas a linguagem é super importante para conseguirmos realizar algo na favela.
Mudamos o nome “manifestação” para “protesto” porque a palavra manifestação tem um sentido negativo nas favelas, tanto pelo significado da palavra para os evangélicos, quanto pela imagem vendida pela mídia. Depois tivemos que dizer o papo reto das consequências que nossa ação podia ter. Em primeiro lugar, as mulheres pediram para ter seus nomes resguardados e, por último, pediram que não houvesse nenhuma intervenção política e sim “a gente pela gente“. Assim nasceu o nome do protesto e no dia 26 de agosto foi realizado o protesto pacífico “A Gente Pela Gente” no Morro da União.
A mobilização foi crescendo e avançamos das linguagens virtuais para o presencial: surgiu a Ocupação Cultural Artística do Viradouro (OCA), uma contra ocupação para desmistificar a falácia que na favela só tem bandido; articulamos com a Associação de Moradores, com o Instituto Conexão Favela e Arte, com a escola de samba Folia do Viradouro e as barbearias da localidade; além de mapear e entrar em contato com os talentos artísticos do Complexo. Nossa! Trabalhoso, desafiador, porém estávamos motivadas pelo desejo de respeito e dignidade, de sermos cidadãs dentro de nossa própria favela, dentro de nossas casas. E no dia 5 de setembro foi realizada a primeira edição da OCA.
Conseguimos realizar quatro edições da OCA, tudo coletivamente, com o aumento de parcerias e com muita solidariedade das moradoras, crianças e adolescentes do Complexo. Conseguimos até nomear aquelas mulheres, moradoras do Complexo, mais envolvidas na ocupação: Eloanah Gentil, Priscila Rezende, Fabiana Silva, Larissa Santos, Natasch Silva e Aline Christine Santos.
Essas mulheres revolucionaram esse momento de arbitrariedades. Hoje, onde tem faixa ou lençol com a frase #LarDeMoradoraRespeite, a polícia não entra, e, caso ocorra, entra com respeito. Como bem nos ensinou Lélia Gonzalez: “Negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido…ao gosto deles”.
Nossa ação pela favela vai continuar, iremos sempre pela linha da cultura, da nossa oralidade. Temos, já agendada, uma atividade para o mês de outubro e outra para o novembro negro. Tudo isso só foi possível, porque somos sementes de lideranças anteriores, como Isa da Silva, Efigênia da Silva, Dona Marlene, tia Lia e muitas outras.
Cria e criada do Morro da União, no Complexo do Viradouro, em Niterói, tiro minha mordaça para falar. Com Teatro das Oprimidas, uso um alto falante coletivo para dizer que não aceitaremos mais o abuso de poder e o extermínio do povo preto.
A favela é nossa! Respeite!
Eloanah Gentil é moradora do Morro da União, no Complexo do Viradouro. É mãe, mulher preta favelada, produtora cultural pelo IFRJ, integrante do colegiado gestor do Centro de Teatro do Oprimido (CTO/RJ), multiplicadora da Rede Magdalena Internacional Teatro das Oprimidas, artivista da luta antirracista, curinga do Coletivo Madalena Anastácia e graduanda em administração pela Universidade Estácio de Sá.