Militarização se Globaliza: Quantos Mais Têm Que Morrer? [VÍDEO]

Policias militares durante operação no Complexo da Maré. Foto por: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

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O Julho Negro, articulação internacional de luta contra o racismo, a militarização e o apartheid, organizado pelos movimentos de favelas e de mães e familiares de vítimas do Estado, realizou sua sexta edição na última semana. O movimento, que começou com uma troca com ativistas norte-americanos do Black Lives Matter para o Rio de Janeiro em 2016, hoje conta com trocas entre vários países. Este ano o Julho Negro aconteceu entre 26 e 31 de julho, de forma virtual em função da pandemia do coronavírus.

No primeiro dia de evento, às 19h, foi realizada a mesa “Guerra pra Quem?” junto ao lançamento do minidoc “Julho Negro: contra o Racismo, a Militarização e o Apartheid”,  de David Amen, produção da série antirracismo do RioOnWatch. O principal objetivo da programação do VI Julho Negro foi conectar as lutas do Sul Global.

Durante a mesa “Guerra pra Quem?”, foi discutida a cumplicidade entre os aparatos repressivos do Brasil e a ocupação israelense na militarização da Palestina.

O evento ocorreu em meio à agressiva expansão colonial na Palestina e poucos dias depois de mais um registro de violações de direitos nas favelas do Parque União e Nova Holanda, no Complexo da Maré, na Zona Norte, com a detenção de mais de 40 moradores durante mais de 24h de operação policial.

Policias militares durante operação no Complexo da Maré. Foto por: Gabriel de Paiva/Agência O GloboA articulação internacional do Julho Negro e suas organizações denunciaram a ação policial na Maré nos dias 16 e 17 de julho e expressaram um sentimento em comum com os palestinos: o de abandono, ante o silêncio internacional, além de poucas organizações e movimentos que se posicionam contra a violência. “Iremos esperar acontecer uma [outra] chacina para nos movimentar?” É o que se perguntam também os palestinos que enfrentam a ocupação sionista: “Vamos esperar outro massacre massivo em Gaza? Outro bombardeio?”

Oficiais da Border Police ou Polícia de Fronteira em área de maioria PalestinaNa Maré as casas eram arrombadas, a população vivenciava tiroteio e era obrigada a ver caveirões pelas ruas sem parar—entre os quais, blindados israelenses comprados por valor milionário pelo governo estadual—além de helicópteros que sobrevoavam as favelas no Rio de Janeiro. Enquanto isso, mais de 1.300 colonos invadiam mais uma vez a Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, sempre amparados pelas forças israelenses, agredindo violentamente e prendendo palestinos em seu local de oração.

As palavras de ordem mais ouvidas entre os israelenses de ultradireita que tomam as ruas da Cidade Velha de Jerusalém são “morte aos árabes!”, “Maomé está morto!”, “a segunda Nakba está vindo!”, “vocês vão todos para campos de refugiados!”, “a Palestina não existe!” e a mais próxima à realidade carioca “árabe bom é árabe morto”, tantas vezes ouvida no mote “bandido bom é bandido morto”. São situações absurdas, expressões territorializadas do colonialismo militarista baseado no racismo, no apartheid e na necropolítica. Arrombavam casas na Maré enquanto invadiam Al-Aqsa e o Domo da Rocha.

Tradução do post acima da Al Jazeera Inglês:

“A última incursão israelense a Al-Aqsa acontece enquanto Jerusalém Oriental se prepara para uma marcha nacionalista judaica hoje mais tarde.”

“Snipers foram para os telhados próximos aos portões do complexo da mesquita [de Al-Aqsa] e começaram a atirar balas de borracha em todo mundo… Ao mesmo tempo, um número gigante de forças policiais invadiu [a Esplanada das Mesquitas] de todas as direções.” – Nour Mtour, testemunha palestina

Protesto de Palestinos no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém, com faixas onde se lê 'Salvem Sheikh Jarrah' e 'Parem a Limpeza Étnica' em Março de 2021. Foto por: Ahmad Gharabli/AFPA limpeza étnica e a expansão colonial concentradas sobretudo em Jerusalém seguem agora sem os holofotes da mídia hegemônica, distanciadas da vista de muitos que se indignaram contra esse processo no pequeno bairro palestino de Sheikh Jarrah e o massacre que durou onze dias em Gaza no mês de maio. Na estreita faixa, em que cerca de 250 pessoas foram assassinadas no período em função dos bombardeios israelenses, incluindo mais de 60 crianças, as quase 1.500 famílias que tiveram suas casas destruídas e outras 13.000 que tiveram as estruturas domiciliares seriamente danificadas vão demorar muito para conseguiram reconstruí-las. 

O bloqueio israelense que já dura 14 anos impede até mesmo a chegada de material de construção, além de itens hospitalares, medicamentos, gás para aquecimento, eletricidade, alimentos, água etc. Além do trauma, muitos moradores perambulam pelas ruas, e a miséria aumenta. A crise humanitária é dramática. E os palestinos vivem essa situação sem saber quando o próximo drone vai soltar bombas novamente sobre suas cabeças. 

Não se sabe também quando será a próxima operação policial no Rio ou mesmo chacina, como ocorreu também no mês de maio no Jacarezinho, em que foram assassinadas 29 pessoas. Inúmeras outras ficaram feridas, na operação mais letal da história da cidade. Além de também ter durado mais de 24h, foi fruto do mesmo modus operandi da operação na Maré nos dias 16 e 17 de julho: casas invadidas e numerosos abusos contra moradores.

Casa invadida pela polícia sem mandado judicial na favela do Jacarezinho vira local de execução sumária feitas por policiais. Neste dia 28 moradores perderam suas vidas. Foto por: Silvia Izquierdo/AP

Tudo isso acontece, como denuncia a Articulação Internacional do Julho Negro, “como uma afronta e total descumprimento da medida cautelar que suspende as operações policiais no contexto da Covid-19 expedida pelo Supremo Tribunal Federal”. Assim como ocorre aqui em relação à medida legal, a afronta ao direito internacional é velha conhecida dos palestinos. O “nós por nós”, que ecoa das comunidades fluminenses, é a realidade percebida ainda pelos que resistem à ocupação. 

Mesmas Armas

Charge Palestinos e negros oprimidos pelas políciais e solidários. Charge por Latuff, 2020.

A solidariedade internacional efetiva e permanente é urgente, assim como o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) a Israel. Somar-se ao movimento articulado pelos palestinos é também lutar contra o racismo e a militarização aqui. Em artigo intitulado “O que há em comum entre as favelas do Jacarezinho, da Maré e a Palestina?”, Gizele Martins, comunicadora comunitária mareense e integrante do movimento de favelas do Rio, aponta que são muitas as semelhanças: 

“No dia 15 de maio, logo pela manhã, deparei-me com uma postagem compartilhada no Facebook de um palestino: era a imagem de uma criança palestina morta por causa dos bombardeios israelenses em Gaza. A criança segurava uma moedinha na mão. Logo lembrei de um caso que ocorreu em 2008, no Conjunto de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, quando o menino Matheus Rodrigues, de apenas oito anos, ao sair de casa para comprar pão, levou um tiro da Polícia Militar e morreu na porta de sua casa. Ele também segurava em uma de suas mãos uma moedinha de um real.

Nesse dia, na Maré, lembro que, para reprimir a população que protestava contra o assassinato, a mesma polícia que matou Matheus voltou ao local com o carro blindado para afastar os manifestantes. São infâncias perdidas dentro de dois territórios que sobrevivem ao massacre cotidiano ocasionados pelo racismo, pela militarização e o apartheid. Lutemos contra as políticas militares e das mortes, lutemos juntos, da Palestina às favelas do Rio, pelo direito à vida! É pela vida!”

Ouvir as vozes que resistem heroicamente e se recusam a se silenciar diante da barbárie e unir a luta de povos oprimidos e explorados é condição imprescindível para que não mais o sangue palestino, pobre, negro ou indígena continue a ser derramado. Para que todos e todas sejamos livres.

Parte dessa luta é se mobilizar a partir das edições do Julho Negro contra o que nos mata, seja na Palestina, seja nas favelas. As bandeiras contra o racismo, a militarização, o apartheid e a ocupação certamente marcaram presença, mesmo que virtualmente.

Assista “Guerra para Quem?”, no primeiro dia do VI Julho Negro, Aqui:

Sobre a autora: Soraya Misleh é jornalista palestino-brasileira, mestre e doutoranda em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP), e autora do livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina“.

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