As Olimpíadas surgiram como um festival esportivo na Grécia Antiga, antes da Era Cristã, no entanto, foi esquecida com o passar dos séculos. Só na década de 1890, os Jogos Olímpicos foram ressuscitados pelo barão Pierre de Coubertin, depois de mais de 1.500 anos de pausa. Desde então, o Comitê Olímpico Internacional esteve por trás de todos os Jogos. O episódio “Olympics: Behind the Five Rings“, ou “Olimpíadas: por Detrás dos Cinco Anéis“, do programa de podcast Throughline da rádio pública norteamericana NPR, explora, com ajuda do historiador olímpico, Jules Boykoff, como o Comitê transformou o evento esportivo grego em um empreendimento comercial internacional, que apesar de aparentar um festival de bons sentimentos, é nocivo em tantos aspectos.
Os Jogos Olímpicos Tóquio 2020 chegam ao fim neste dia 8 de agosto de 2021 e serão lembrados não só pelas quebras de recordes Olímpicos ou por histórias de superação, mas também pela pandemia do coronavírus. Realizada com um ano de atraso e sem público ou venda de ingressos, esta edição das Olimpíadas vai causar prejuízo recorde à cidade-sede, o que preocupa os organizadores. Apesar das circunstâncias serem únicas, Tóquio não está sozinha: orçamentos e débitos gigantescos são o normal das Olimpíadas.
Os Jogos, segundo Jules, que é professor da Pacific University no Oregon e ex-jogador profissional de futebol, viraram um empreendimento bastante lucrativo para o Comitê Olímpico Internacional, que ele chama de “Capitalismo de Celebração”. Aproveitando-se do trabalho incrível de atletas de todo o mundo, investidores e especuladores transformam cidades de acordo com seus interesses políticos, econômicos e culturais. Capitalismo de Celebração, segundo Jules, é um estado de exceção, em que as regras normais são suspensas, o orçamento público arca com enormes quantias, e empresas privadas lucrem.
“As Olimpíadas sempre estouram o orçamento. Houve um estudo da Universidade de Oxford que investigou todas as Olimpíadas entre 1960 e 2020 e encontrou que, em todas sobre as quais há dados confiáveis, excedeu-se o custo previsto.”
Por detrás destes megaeventos está o Comitê Olímpico Internacional, que controla o evento com punhos de ferro. Fruto da elite de séculos atrás, condes, duques e barões fundaram o Comitê trazendo de volta à vida a Olimpíada e seus mitos—da Grécia Antiga e os inventados na modernidade. Até hoje é este o principal perfil das pessoas que governam o COI.
As Olimpíadas modernas foram sendo realizadas sem grandes entraves até que, em 1976, pessoas de todo o espectro político de Denver, no Colorado, EUA, se uniram, após a aprovação e desenvolvimento da mesma, contra a realização dos Jogos de Inverno em sua cidade. A preocupação dos moradores da cidade era com o impacto ambiental dos Jogos nas montanhas da região, além dos altos custos. A mobilização da população local articulou um referendo, no qual 60% dos eleitores locais rejeitaram a continuidade da organização dos Jogos.
Com isso, Denver foi a única cidade-sede confirmada das Olimpíadas até hoje a conseguir se livrar dos Jogos e seus impactos nocivos. A mobilização popular contra os Jogos por todo o espectro político salvou a próxima geração de herdar dívidas impagáveis e de ver sua cidade transformada de modo contrário ao interesse público.
No mesmo ano, nos Jogos Olímpicos de Verão de Montreal de 1976, políticos locais prometiam a seus eleitores receosos que este seria o primeiro jogo completamente autofinanciado. Essas promessas não se confirmaram de um modo assustador: as Olimpíadas geraram uma dívida de mais de US$1,5 bilhões aos contribuintes canadenses, que acabaram sendo pagos ao longo de 30 anos. A partir deste legado de prejuízo e com medo de perder oportunidades futuras para o negócio olímpico, o Comitê Internacional Olímpico elegeu em 1980 como seu presidente o Juan Antonio Samaranch, um fascista espanhol, Ministro do Esporte durante a ditadura de Francisco Franco. Antonio Samaranch estava determinado a não deixar Montreal se repetir e a transformar a imagem das Olimpíadas de um fiasco do ponto de vista fiscal para as cidades-sede, com forte oposição popular e com apoio à organização restrito às elites locais.
O fascista espanhol queria transformar o legado de falência deixado por Montreal e o de ativismo contra os Jogos deixado por Denver em um modelo de negócio lucrativo, e em um espetáculo mundialmente popular.
Contudo, ainda por conta do fracasso de Montreal, só restou uma candidata interessada pelas Olimpíadas de Verão de 1984, Los Angeles. A cidade então se viu em um lugar de poder sobre o COI, e estabeleceu uma condição: que a prefeitura de Los Angeles não arcasse com os custos da realização dos Jogos. Isto ia contra a Carta Olímpica, mas a prefeitura de Los Angeles conseguiu então pressionar para que ela fosse modificada para incorporar um papel maior de patrocinadores e da iniciativa privada. Los Angeles 1984 então virou o modelo de realização dos Jogos através de entidades privadas e resultou em um sucesso financeiro, com um lucro de US$225 milhões para o Comitê Olímpico Internacional.
A preparação da cidade em termos de segurança também teve consequências duradouras sobre populações negra, latina e pobre em Los Angeles e arredores. A cidade, a partir das Olimpíadas agora tocadas em parceria com patrocinadores-investidores, adquiriu armas, veículos, aeronaves e os mais atuais equipamentos para o policiamento dos Jogos. Itens que, com o fim dos Jogos, entraram para o arsenal policial da repressão diária nos bairros de baixa renda da cidade. E as populações marginalizadas perceberam essas mudanças no policiamento: sentiam que suas comunidades haviam sido ocupadas pelas forças policiais. Os Jogos não eram populares em Los Angeles em 1984.
Um sucesso financeiro para poucos e um desastre para muitos, foi o resultado de fato dos Jogos de 1984 em Los Angeles. E que fique evidente: os atletas, em teoria os responsáveis pelo espetáculo, não são os que ficam ricos com o evento. Quem se aproveita são os patrocinadores e investidores internacionais, e a elite local, sobretudo na especulação imobiliária, gentrificação e em obras de infraestrutura que tipicamente não servem a população local. Sentimento comum às cidades-sede.
Anti-Olympic organizers in Tokyo have been documenting the heavy police presence at their demonstrations. The #olympics inevitably arrive with the intensification of policing. 📹by @tsuraiDeth_shi pic.twitter.com/kl5IwFlr3y
— Jules Boykoff (@JulesBoykoff) August 6, 2021
“Durante o # Tokyo2020 #Olympics, houve vários protestos anti-Olimpíadas em Tóquio sob o slogan #NOlympicsAnywhere.”
“Os organizadores anti-olimpíadas em Tóquio têm documentado a forte presença da polícia em suas manifestações. As #olimpíadas chegam inevitavelmente com a intensificação do policiamento.”
Em 1992, nas Olimpíadas de Verão de Barcelona, os Jogos tiveram seu melhor desempenho reputacional. O evento atingiu as massas através da televisão como o maior evento televisionado da história. A televisão vinha sendo usada para cobrir as Olimpíadas desde os Jogos da Alemanha nazista de 1936, onde Hitler mesclava transmissão esportiva com defesa do regime e da ideologia nazistas. Mas em 1992, as Olimpíadas se tornaram um evento de massa, um espetáculo televisivo com trilha sonora de Freddie Mercury e orçamento estratosférico. Neste ano, o Dream Team norteamericano deu show. Barcelona, sobre o prefeito socialista Pasqual Maragall i Mira, se utilizou do evento para realizar uma revitalização de sua região portuária, em geral vista como um legado para a cidade, e passou a ser vista como um exemplo dos efeitos urbanos positivos que as Olimpíadas poderiam gerar para uma população.
Com essa popularidade, o negócio olímpico e as elites locais de grandes cidades viram a possibilidade de agir com algum nível de apoio público. No entanto, em 1996 em Atlanta, a higienização social deu o tom dos Jogos, com remoções e a criminalização intensiva dos pretos e pobres da cidade em nome da segurança, o que não impediu um ataque terrorista ao evento. Até mesmo ativistas dos direitos civis e grandes lideranças negras se opuseram à organização das Olimpíadas no estado da Georgia.
Padrões nocivos à população local se mantiveram nas cidades-sede após 1996. Além deles, há também denúncias recorrentes de corrupção atreladas aos Jogos. Nas Olimpíadas de Inverno Salt Lake City 2002, investigações do FBI apontaram o recebimento de propinas e presentes por membros do Comitê Olímpico Internacional para assegurar a realização do evento na cidade estadunidense, às custas dos cofres públicos.
Até que nas Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016, este modus operandi atingiu sua expressão máxima. Em uma das cidades mais desiguais do mundo, parte da população se revoltou contra os impactos negativos das Olimpíadas para a cidade: grandes gastos, policiamento militarizado, criminalização da pobreza, ocupações policiais em favelas, gentrificação e remoções, com 77.000 pessoas removidas na cidade.
Heloísa Helena Costa Berto foi uma das 77.000 pessoas que sofreram as remoções olímpicas. Ex-moradora da Vila Autódromo, a ialorixá tinha um Terreiro de Candomblé em sua comunidade. Seus orixás estavam presentes e interligados com a natureza da região em que ela vivia e praticava sua fé. O terreno em que ela “plantou o axé”, onde houve o assentamento de santo, é considerado um lugar sagrado nas religiões de matriz afro-brasileiras. Como uma indenização financeira substitui um local sagrado? Heloísa Helena, e tantos outros, foi removida de forma brutal.
Rio 2016 também foi exemplo quando se trata de “greenwashing”. Foi propagandeado como o evento mais ecologicamente correto da história, que deixaria como legado o plantio de uma floresta—a Floresta dos Atletas—o replantio de áreas degradadas, a despoluição de 80% da Baía de Guanabara e também das lagoas da Rodrigo de Freitas e Jacarepaguá, contudo, nada disso se concretizou. Não há legado ambiental positivo das Olimpíadas Rio 2016. Encoberta-se a degradação ambiental com a narrativa ecológica.
Autoritarismo, pouca participação popular, grandes débitos públicos, grandes lucros da iniciativa privada, realização dos interesses do grande capital, transformação elitista das geografias das cidades-sede, gentrificação, remoções, criminalização da pobreza, militarização dos aparelhos de repressão do Estado e degradação ecológica. Esses estão mais confirmados nos Jogos Olímpicos do que os atletas. Condições que não deveriam ser pressuposto do maior festival esportivo do mundo.